As mulheres no futebol
“Venho solicitar a clarividente atenção de Vossa Excelência para que seja conjurada uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, senhor presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de moças, atraindo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar este esporte violento sem afetar, seriamente, o equilíbrio fisiológico das suas funções orgânicas, devido à natureza que dispôs a ser mãe. Ao que dizem os jornais, no Rio de Janeiro, já estão formados nada menos de dez quadros femininos. Em São Paulo e Belo Horizonte também já estão se constituindo outros. E, neste crescendo, dentro de um ano, é provável que em todo o Brasil estejam organizados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja: 200 núcleos destroçadores da saúde de 2,2 mil futuras mães, que, além do mais, ficarão presas a uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes.”
Este texto faz parte de uma carta datada em abril de 1940. Assinada por um cidadão brasileiro de nome José Fuzeira, a missiva foi encaminhada ao então presidente da República, Getúlio Vargas. Pelo texto, é perceptível o quanto era difícil para a sociedade brasileira aceitar que as mulheres pudessem optar pelo futebol como esporte a ser praticado. Mas mesmo assim existem registros de partidas de futebol feminino em pelo menos três oportunidades no início do século XX: um evento beneficente para a construção de um hospital para crianças pobres em 1913, um jogo entre senhoritas de dois bairros da zona norte de São Paulo, em 1921, e torneios envolvendo mulheres do subúrbio carioca que formavam times com nomes criativos, como Eva Futebol Clube, em 1941, que suscitou a acima referida reação do senhor Fuzeira.
Aceitava-se a prática de esportes pelas mulheres desde que não houvesse contato físico, pois uma das questões mais presentes naqueles dias era a preocupação com a função materna. Acreditava-se que esportes que exigissem mais do corpo da mulher – e que as sujeitassem a sofrer traumas nos órgãos reprodutores – pudessem prejudicar a sua capacidade de procriar filhos fortes. Isso sem falar da beleza das formas que sempre foi uma das qualidades mais valorizadas nas mulheres brasileiras e que poderia ser transformada para pior se praticassem um esporte como o futebol. Ficariam com os músculos e quadris enrijecidos, o que as tornaria mais masculinas. E aqui está a questão central. Todas as que tinham coragem de se apresentar para um jogo de futebol eram tachadas de masculinizadas.
Às mulheres era dedicada uma gama específica de atividades em que elas poderiam expor as suas capacidades. Como, por exemplo, a arte de costurar ou de cozinhar. Era inadmissível que elas tentassem assumir novas posições na hierarquia social. O papel predominante era o de dona de casa e das várias funções que esse termo abriga. Fora disso, lhes era negado o direito buscar oportunidades e novas opções de vida.
As duas primeiras partidas foram eventos isolados e não chegaram a provocar muita rea-ção, mas o campeonato realizado no subúrbio do Rio de Janeiro em 1940 era por demais organizado para passar despercebido dos conservadores de plantão. O público que afluía a esses jogos já era em bom número – interessado principalmente na estética das atletas – e a competição possuía até um produtor ou patrocinador que oferecia prêmios às jogadoras. Com o aumento da divulgação, a discussão acirrou-se de forma incontrolável, envolvendo o governo federal que até então pouco se preocupara com o segmento esportivo.
Não havia legislação esportiva e tampouco algum grau de organização nacional para os desportos em geral. Finalmente, por meio de um decreto-lei, o presidente da República tomou a decisão de proibir alguns jogos – esportes não definidos – entre mulheres, pois esses seriam incompatíveis com a natureza feminina. O texto era bastante subjetivo, mas ficava claro que o objetivo era limitar a prática de apenas um determinado esporte: o futebol feminino.
Em uma época em que as mulheres começavam a ocupar espaços que antes só cabiam aos homens e adquirindo direitos, como o do voto, instala-se uma limitação para a prática desportiva que só poderia ter nascido em um regime fechado como o Estado Novo de Getúlio Vargas. O gesto opressor desestimulou o recém-namoro das meninas com esse esporte e interrompeu por muito tempo o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil. Hoje ele está regulamentado, mas continua abandonado.
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Fonte: CartaCapital