Não em Cabul – onde foram salvos de serem destruídos pelos Talibã, graças à coragem do pessoal do antigo museu –, mas em exposição itinerante, na paz da cidade de Ottawa, batizada pela rainha Victoria como capital de sua colônia canadense em 1858, prêmio de consolação entre os britânicos escoceses de York (hoje Toronto) e os quebequenses de Montreal. Apenas 16 anos antes, o exército da rainha de 23 anos havia destruído o Desfiladeiro de Cabul – e deixou suas antiguidades para serem vendidas a retalho pelos bazaars de Cabul.

Estranhamente, como tantas vezes acontece com a história do Afeganistão, os tesouros de Bagram e Ai Khanum e Tillya Tepe pareceram-me estranhamente não-afegãos. Por que teria de estar em Ottawa, para ver numa perfeita capital coríntia, que mal se vê em Atenas? Ou, numa fivela de ouro e turquesa, Dionísio e Ariane montados num monstro? Não esmerilhei a mitologia grega, na Escola de Sutton Valence em Kent? O que andaria fazendo lá o Harpocrates – Horus criança – do Egito? Ou as mulheres de grandes seios do Kama Sutra de Bagram? Não deveriam estar protegidas numa caixa de vidro em Delhi?

Aí, precisamente, está o problema. As antigas cidades afegãs localizam-se ao longo da Rota da Seda entre Roma e China, e sua arte abraça deuses gregos, princesas chinesas, damas indianas e – sob risco total de genocídio cultural – Budas. Os afegãos de hoje exibem no rosto os mesmos traços da Rota da Seda: o rosto fino dos indianos, feições tadjiques-chinesas, os olhos verdes dos gregos e de Alexandre.

Alexandre espalhou o próprio nome pelas cidades da antiguidade, como todos os imperadores romanos. Graças a Deus, não inventou a locomotiva a vapor! Ou leríamos, nas estações no Egito, daqueles trens lentos: “O 11:05 da Central de Alexandria faz escala em Alexandria Charax (hoje, Basra), Alexandria Areion (hoje, Herat), com baldeação para Alexandria Margiana (hoje, no Uzbequistão) e Alexandria Eschate (hoje, Khojat, no Tadjiquistão), Alexandria Caucaso (Bagram) e Alexandria Arachoton (Candahar).”

Mas com que delicadeza os reis daquelas terras adornam seus palácios e casas! O corpo de marfim de um leão de Bagram voa com asas de águia e, contra os inimigos, usa o bico de papagaio. De um túmulo em Tillya Tepe – no Uzbequistão, a “Colina Dourada” (100 quilômetros a oeste de Mazar-e-Sharif) – vêm as jóias das jovens, ormanentos de flores, corações, máscaras, gotas de chuva, quadrados, triângulos; o fragmento de um monumento funerário, presente de Clearchos, aluno de Aristóteles, com inscrição em grego e sabedoria do século 4º: “Criança, aprende boas maneiras; jovem, aprende a controlar as paixões; na meia idade, a ser justo; na velhice, a dar bons conselhos; e então, a morrer sem remorso.” Há laca da China, galos com cabeça humana, peixe com escamas de vidro, peixes tambà ©m nas taças romano-egípcias e, talvez a peça mais inesquecível, uma coroa de ouro e turquesas, ajustável para vários tamanhos de cabeça – e desmontável, para ser levada nos deslocamentos da caravana nômade.

Um capitel helênico de Balkh – em 300 aC, a maior cidade afegã, a leste de Tillya Tepe – destruída por Genghis Khan quase mil anos depois. Sobrevoe Candahar e Helmand – de fato, os sítios de Lashkar Gar do século 4º. aC – sim, um dos quatro campos de carnificina preferidos dos anti-Talibã – e é ainda possível ver as paredes cobertas de areia de cidades esquecidas que foram apagadas do mapa pelo mesmo Ghengis Khan.

E por quê, pergunto-me eu, tanto nos aplicamos a destruir nossa própria história, de nossa própria humanidade? Os afegãos destruíram e pilharam, durante a guerra civil – o magnífico museu de Hadda, perto de Jalalabad, foi queimado depois da invasão soviética de 1979 –, e o Museu Nacional de Cabul foi atacado por míssil e incendiou-se em 1994, quando já era usado como base militar. Em Beirute, o Museu Nacional sob fogo cruzado na guerra civil de 1975-1990, os sarcófagos fenícios, cravejados de fragmentos de bombas. As grandes bibliotecas de Sarajevo foram deliberadamente bombardeadas e reduzidas a ruínas nos anos 90s. A destruição da herança de civilização dos iraquianos, em 2003, é desgraça hoje tanto para iraquianos quanto para norte-americanos.

Sobre a entrada do museu de Cabul há hoje uma frase persa: “Uma nação permanece viva quando permanecem vivas a cultura e a história.” Mas é possível crer que esses objetos afegãos de ouro sobreviverão ao século 21 na nova casa em Cabul? Os Talibã, cortesia dos sauditas e dos paquistaneses, dedicam-se deliberadamente a destruir a história física do Afeganistão. A Bagram, primeiro chegou o exército soviético – naquela base, ensinaram os afegãos a usar eletricidade, em vez de alicates, para extrair informação e unhas dos prisioneiros. – 21 anos depois, também a Bagram, chegaram os norte-americanos, ensinando a afogar os prisioneiros-vítimas. Da antiguidade, o Afeganistão aprendeu a cultura do ouro e das coroas adaptáveis e transportáveis. De soviéticos, norte-americanos e britâni cos, no século 20, aprenderam a cultura da tortura.

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Fonte:  The Independent

http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fisk-afghanistans-ancient-treasures-must-be-saved-1959650.html

Tradução: Caia Fittipaldi