Seminário conclui: é preciso voltar a Lênin
“Há uma tendência de os meios acadêmicos e políticos desprezarem o papel de Lênin como teórico. Mas suas contribuições são incalculáveis. A atualidade de Lênin é um patrimônio que tem de ser valorizado”, afirmou, na conferência de abertura do seminário, José Barata-Moura, ex-reitor da Universidade de Lisboa.
Convidado especial da Fundação Maurício Grabois, promotora do seminário, o pensador português elogiou a iniciativa de resgatar as ideias de Lênin em meio às comemorações dos 140 anos de seu nascimento. Segundo Barata-Moura, o leninismo ganhou mais força, coesão e coerência na década de 1910, a partir da maior incorporação da dialética hegeliana às suas análises.
Num livro como Materialismo e Empiriocriticismo, concluído em 1908, Lênin cita poucas vezes Hegel ao opor o materialismo ao idealismo burguês. A obra foi escrita no rastro de dois traumas nacionais: as rebeliões populares contra o czarismo (que foram duramente reprimidas) e a derrota do Império Russo na Guerra Russo-Japonesa.
Já nos Cadernos Filosóficos, que são de 1913, Lênin aprofunda “a dimensão filosófica do pensar — subsidia-se mais em Hegel para fazer uma releitura aprofundada no materialismo”, lembra Barata-Moura. “E é um livro também elaborado num período de refluxo, às portas da 1ª Guerra Mundial e em meio a muitas traições de altos dirigentes comunistas.”
Atitude filosófica
Num prefácio à Ciência da Lógica, de Hegel, escreve Lênin: “Não é possível compreender plenamente O Capital, de Marx, e particularmente o seu capítulo 1 sem ter estudado a fundo e sem ter compreendido toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, meio século depois nenhum marxista compreendeu Marx!”.
É nesse sentido que Barata-Moura destaca a “atitude filosófica” de Lênin, que, por sinal, não deixa de tecer críticas também a pensadores materialistas. “O pensamento leninista é uma prova de que, para estar diante do materialismo, não basta apenas conceber a matéria como categoria filosófica. Muitas matrizes idealistas ressuscitam disfarçadas, com figurinos mais sofisticados”, afirma.
“Lênin demonstra que a prática tem de ser um processo de verificação da objetividade de nossos conhecimentos — uma ação transformadora. Não é só com a filosofia que transformamos o mundo, mas, sem a compreensão concreta dos fatos, não há transformação duradoura”, ressalta o ex-reitor. “A teoria é uma peça montada sobre o contexto da luta de classes. É preciso representar no movimento presente o futuro desse mesmo movimento.”
Diferença brutal
O primeiro palestrante da tarde foi Aloísio Teixeira, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que iniciou sua exposição situando o contexto em que Lênin produziu a sua obra teórica. Ele explicou que era a época em que os bancos passaram a ter novo papel, as empresas iniciaram uma nova fase em suas formas de organização com a administração científica e a concorrência monopolista começava a se impor. Aloísio Teixeira lembrou que o termo imperialismo surgiu na época de Benjamin Disraeli, escritor e histórico dirigente político britânico — um símbolo do conservadorismo da era vitoriana.
Para ele, o debate marxista sobre o imperialismo revelou três visões — a de Lênin, a de Rosa Luxemburgo e a de Karl Kautski. Mas há um certo consenso de que o imperialismo tem algo de novo em relação aos impérios da antigüidade, ou mesmo àqueles dos albores da modernidade capitalista, que foram instrumentos de acumulação originária do capital, disse.
Hoje, explicou Aloísio Teixeira, existe uma diferença brutal entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Com a desvinculação do padrão ouro, no início da década de 70, o império norte-americano passou a usar também o dinheiro como símbolo do exercício do poder. Pela primeira na história, destacou, há uma relação de troca baseada em algo que não é real.
Desenvolvimento desigual
O segundo palestrante da tarde foi Luiz Fernandes, cientista político e professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), que iniciou sua intervenção enfatizando que lamentavelmente Lênin não é muito valorizado na academia. E até o termo imperialismo caiu em desuso. Mas, segundo ele, a obra de Lênin é fundamental para se entender a filosofia da atual ordem internacional, para a valorização da política.
Segundo ele, o pensamento leninista foi determinante para a revolução russa, mas é também indispensável para o entendimento da realidade atual. Luiz Fernandes destacou que o conceito de desenvolvimento desigual, na teoria do imperialismo, é um elemento importante para o entendimento do que acontece hoje. Ele citou o exemplo de nações da periferia do sistema capitalista que passam por um rápido processo de desenvolvimento, um fenômeno explicado por Lênin, e a neofinaceirização, determinante para a geopolítica atual.
Convicção inabalável
O terceiro palestrante, João Quartim de Maoraes, titular de filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também fez uma análise sobre a conjuntura em que Lênin desenvolveu sua obra e enfatizou o nexo político indissolúvel entre a teoria e a política. Para ele, a tese de Lênin de conformação de um partido de combate foi uma superação das debilidades da Segunda Internacional.
A firmeza de princípios de Lênin, disse João Quartim de Moraes, decorre da sua convicção inabalável sobre os preceitos do marxismo a respeito do desenvolvimento das relações de produção capitalista. Segundo ele, a capitulação da Segunda Internacional fez Lênin repensar a trajetória do marxismo. E o desenvolvimento da revolução, principalmente a partir da vitória sobre o nazi-fascismo em 1945, mostrou a pujança soviética, que pôs na defensiva as potências imperialistas.
A derrota da União Soviética e seu desmantelamento, disse João Quartim de Moraes, representou o início de uma fase contra-revolucionária. Para ele, as experiências de resistência merece uma observação atenta. O exemplo da China, que seria uma Nova Política Econômica (NEP) em proporções gigantescas, encerra contradições que precisam ser analisadas no debate sobre o caminho para o socialismo, destacou.
Preceitos mecanicistas
Renato Rabelo, presidente nacional do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), encerrou as palestras dizendo que o a derrocada do campo socialista representa uma derrota estratégica. Mas ressaltou que foi uma experiência inicial, um ensaio curto, de 1917 a 1989/91, que representa, na história, um período diminuto. E Lênin foi o grande pensador de uma teoria para a revolução do século XX, para a vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial e os êxitos das lutas pela libertação nacional.
A débâcle dessa primeira experiência socialista fez os Estados Unidos assumirem a posição hegemônica do imperialismo. Ou seja: uma ofensiva capitalista e imperialista em todos os terrenos, na qual se destaca a ofensiva financeira, denominada de neoliberalismo. Para Renato Rabelo, é preciso tirar ensinamentos dessa situação para desenvolver a teoria revolucionária, com uma compreensão materialista-dialética.
Ele disse também que no Brasil os comunistas ficaram presos a preceitos mecanicistas, como a inevitabilidade de duas etapas para a revolução, o modelo universal único de socialismo e o trânsito direto ao socialismo após a conquista do poder. Segundo Renato Rabelo, essa limitação dificultou o horizonte, a elaboração de um programa que refletisse a realidade do Brasil e de países semelhantes.
Voltar a Lênin
O presidente do PCdoB também comentou alguns aspectos da derrocada da União Soviética, que desabou por dentro. Para ele, a fusão partido-Estado foi uma doutrina para justificar uma determinada política de Estado. O resultado foi uma estrutura política que fossilizou, que levou a uma estagnação do modelo soviético de desenvolvimento econômico.
Toda essa reflexão, disse, levou à conclusão de que a época é de uma nova luta pelo socialismo, que não prescinde da contribuição de Lênin com sua atualidade em muitos aspectos. Renato Rabelo destacou que nas condições da luta revolucionária hoje, é preciso valorizar a tática de acumulação de forças para sair da defensiva estratégica e apontar para a transição ao socialismo. E para isso é preciso voltar a Lênin, concluiu.