Incontáveis vezes foi afirmado que a economia brasileira havia superado a crise. A retórica eufórica desconheceu que a economia argentina, confessadamente em crise, cresceu o PIB mais que o Brasil, em 2009. Desconheço qualquer prognóstico oficial quanto à crise mundial, porém os analistas sérios jamais estimularam a ideia de que o mundo haveria retomado a normalidade. Soros cansou de afirmar que a crise produz uma queda abrupta e sua recuperação é lenta e oscilante. Assim sendo, nenhum governo sério esteve tranquilo após a crise. Não houve a declaração arrogante dos tempos de Geisel, aonde um ministro (Mário H. Simonsen) afirmou: “bendita crise!” e prognosticou que o Brasil seria potência mundial em 2000. Pareceu que o sambista reafirmou que o Brasil “sacode a poeira e dá a volta por cima”.

O atual governo não praticou esse exagero, porém reitera que o futuro brasileiro estará na “integração competitiva num mundo globalizado”. Deveria monitorar a situação mundial e a marcha das principais economias; deveria informar aos brasileiros o cenário com que nos defrontamos. A Grécia cambaleia e é massacrada pelo espírito “animal” do capitalismo financeiro especulativo. É sabido que basta um sinal para que um estouro de manada destrua a nação emissora do sinal e desencadeie contágios progressivos. A Europa não digeriu a crise de 2009; com “morte anunciada” estão alinhadas diversas economias frágeis. Que o Brasil está integrado no festival especulativo, não deve pairar dúvida. O Bovespa é hoje o sinalizador dos “passeios” e estouros das manadas dos mercados animais irracionais. Qual é a posição brasileira? Quais são nossas salvaguardas? A insistente denúncia de formadores de opinião internos já repercute em diversos analistas internacionais? Iremos acompanhar a onda conservadora e restritiva que devastará a economia grega? Portugal e Espanha já anunciaram que cortarão seus gastos públicos. Barack Obama se declarou “altamente preocupado”; o presidente Meirelles gosta de levantar juros, valorizar o real e não teme a estagnação econômica. Se prevalecerem suas preferências, cortaremos gastos públicos (para aumentar o superávit primário e fazer frente aos juros que pagamos: os mais altos do planeta).

O termo de moda macroeconômico é “a bolha”. Foi “a bolha” imobiliária norte-americana que, explodindo, deu visibilidade e dramaticidade à crise de 2009. A “bolha” imobiliária japonesa de duas décadas atrás não teve a mesma emanação intensa. Portugal, muito antes da crise de 2009, já havia produzido uma “bolha” de construção civil. Consta que Lisboa tem mais de 100 mil imóveis prontos, fechados, sem comparadores a vista. O endividamento para a construção excessiva de imóveis não foi de grandes empresas; a partir de crédito pessoal e barato, milhares de famílias se endividaram construindo prédios. Será que Portugal sucederá a Grécia?

O Brasil tem uma “bolha” de crédito pessoal endividando as famílias. Nos últimos anos, foram aperfeiçoadas as formas de endividamento familiar e, em princípio, ampliadas as garantias dos credores. A população de veículos automotores duplicou em dez anos, superando, em muito, o crescimento do PIB, do emprego e do salário médio real. As famílias gastam quase 1/5 de sua renda com prestações e juros assumidos. O número de dias para quitação vem aumentando sem parar e se aproxima de dois anos. Antes da crise, havia venda de automóveis em 90 prestações sem entrada.

Quando uma família se endivida pela compra de um imóvel, ela deixa de pagar aluguéis e passa a dispor de um patrimônio que, em princípio, tende a se valorizar, pois a população urbana continuará crescendo. Quando uma família se endivida comprando um veículo ou eletrodoméstico, passa a consumir mais derivados de petróleo e/ou energia elétrica. A tendência da energia é ficar cada vez mais cara; o petróleo, por escassez, e no Brasil a energia elétrica pela opção neoliberal por uma “economia de mercado” que garante custo baixo para a indústria eletroitensiva e tarifa utraonerosa para o consumidor individual (família ou empresa) e para a iluminação pública.

No Brasil, criamos um sistema de mercado que confere a mais alta lucratividade às empresas distribuidoras de energia elétrica. Durante os dois mandatos de Lula, o lucro das elétricas cresceu 230% acima da inflação (Valor, 10/5/2010). Em termos de crescimento, os bancos comerciais brasileiros são campeões; em termos de lucratividade sobre o patrimônio, são as empresas elétricas de capital estrangeiro.

É perversa a combinação de juro real elevado e endividamento familiar crescente. A solução seria a elevação do investimento produtivo. O investimento governamental tende a ser vetado; o investimento privado se orienta para a especulação financeira. Em mãos de Deus está a bolha brasileira.

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Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ, foi presidente do BNDES; escreve mensalmente às quartas-feiras

Fonte: jornal Valor Econômico