O Procurador-Geral dos EUA Eric Holder tem agora certeza de que “os Talibã paquistaneses estão por trás do ataque. Sabemos que ajudaram na preparação. Sabemos que, provavelmente, ajudaram a financiar o ataque e que ele [Shahzad] trabalhou sob sua direção.” John Brennan, assessor de segurança nacional e contraterrorismo do presidente Obama disse basicamente a mesma coisa.

Dia 3 de maio, a Advocacia Geral dos EUA acusou formalmente Faisal Shahzad, 30 anos, da prática de cinco crimes, incluindo prática de ato de terrorismo e tentativa de uso de arma de destruição em massa. A acusação, formalizada numa corte de Manhattan, dizia que Shahzad admitira que recebera treinamento para produção de bombas no Waziristão, Paquistão, antes da tentativa, dia 1º de maio, de detonar um carro cheio de explosivos em Times Square. No carro, foram encontradas latas de gasolina, tanques com gás propano, fogos de artifício e detonadores.

Além dessas, não havia qualquer prova menos circunstancial. A noção de que os ultracentrados militantes pashtuns do grupo “Tehrik-e Taliban Pakistan” (Talibã Paquistaneses, TTP) conseguiriam executar atentado à moda da al-Qaeda com carros-bomba em Nova York é escorregadia como peixe ensaboado e mais flutuante que malabares financeiros em mãos malabaristas de Goldmans Sachs. O exército paquistanês, para quem não saiba, não acreditou nessa versão; nas palavras do porta-voz, major-general Athar Abbas, “Não creio que tenham capacidade para alcançar nível sequer próximo disso.”

O ministro paquistanês do Interior Rehman Malik considerou “prematuro” ligar New York e o Waziristão – e acrescentou que só a inteligência paquistanesa investigaria a questão (nenhum investigador norte-americano seria admitido). Mas jornais britânicos que noticiaram que equipes de investigação chegadas dos EUA estão em ação no Paquistão, inclusive em Rawalpindi, onde ficam as bases do exército e das agências de inteligência.

O próprio TTP, pelo porta-voz Azam Tariq, desmentiu toda a conversa, embora, de início, tenham reivindicado a autoria do atentado. Segundo os jornais, Tariq teria dito que “É trabalho nobre e digno, e rezamos a Deus para que mais muçulmanos sigam seu exemplo. Mas Faisal Shahzad não é membro de nossa rede.” Para o TTP, trata-se de “golpe arquitetado pelos EUA e seus aliados, para envolver jovens muçulmanos e pashtuns em atividades terroristas.”

Pode ser blefe. Mas faz sentido. A ‘bomba’ de Shahzad não funcionou; deu miserável chabu. O TTP realmente treina jihadis, em treinamento de poucos dias, sobre fabricação de bombas; os próprios instrutores foram treinados por jihadistas da al-Qaeda. Se Shahzad tivesse sido realmente treinado em campo de treinamento no Waziristão – conforme não se cansam de repetir os informes que não param de vazar para os jornais e televisões – seria de esperar, no mínimo, que a bomba funcionasse.

Ao mesmo tempo, corrente infindável de vazamentos ajuda a construir uma narrativa oficial segundo a qual Shahzad seria ligado ao Talibã do Paquistão (TTP), teria tido contato com os comandantes, teria sido treinado no Waziristão – e teria até sido apoiado pelo Imã Anwar al-Awlaki, nascido nos EUA e atualmente escondido no Iêmen – e que convenientemente acaba de ser definido como alvo para assassinato seletivo pelo governo Obama. Provas? Não. Nada de concreto.

Jornais do grupo McClatchy[1] mencionaram “seis funcionários do governo dos EUA” que afirmaram que “não se encontrou qualquer prova confiável” de que Shahzad “recebeu treinamento terrorista sério, seja dos Talibã do Paquistão seja de qualquer outro grupo islâmico radical”. Quanto ao pai de Shahzad, vice-marechal Baharul Haq (família da elite pashtun), foi ligado nos EUA com um dos altos comandantes dos Taliban – mas ninguém, no próprio Paquistão, soube dessa ligação. O vice-marechal foi só interrogado pela polícia do Paquistão.

Perfil de um Talibã norte-americano

Ninguém sabe com certeza se Shahzad realmente se encontrou com civis pashtuns no Waziristão arrasado até a morte por fogo dos aviões-robôs não tripulados dos EUA –, aparentemente o motivo base de seu ato de Jihad. Mas absolutamente não interessa que tenha visitado pessoalmente alguém ou algum campo, ou que só tenha ouvido falar de uns e outros. Com certeza, sentiu que tanto o nacionalismo pashtun quanto o Islã estavam sob ataque. Despejado da casa que tentava comprar nos EUA, processado pelo banco, e com o casamento, conforme vários relatos, em ruínas, Shahzad não precisaria de qualquer outro estímulo para “quebrar o espelho” e cruzar para o outro lado.

Já escrevi esse ano (“Yemen, the new Waziristan”, 11/2/2010, Asia Times Online, http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LB11Df03.html) que entramos na era dos nômades jihadistas virtuais – tipos que, noutros tempos, seriam personagens de Fyodor Dostoevsky ou de Albert Camus.

Shahzad cabe bem nesse perfil: jovem, globalizado e viciado na fantasia de uma Ummah (comunidade muçulmana) virtual. Ao que tudo indica, fez o salto conceitual entre idealizar uma Ummah de Internet e a urgência emocional de agir em campo. Como praticamente todos os neojihadistas – de Dhiren Barot (que planejou a “bomba da Bolsa de Valores em Wall Street”[2]) ao tímido Umar Farouk Abdulmutallab, da cueca-bomba – Shahz ad também rompeu todos os laços com a família. Afinal, como norte-americano-paquistanês, ele já estava numa prática ao vivo de desterritorialização.

E tudo sempre pode ter sido muito individual – sem necessidade de rede terrorista que orquestrasse a coisa. Acrescente-se – se se pode levar a sério alguns dos vazamentos – que Shahzad parece exibir traços de personalidade altamente narcíssica (ao que se diz, estaria “cantando como passarinho”). Nas palavras do professor Oliver Roy, escrevendo sobre neojihadistas influenciados pela al-Qaeda, Shahzad, à sua maneira, tornou-se um vingador solitário, espécie de herói à sua própria maneira “que encontra meio para redimir uma vida que não o satisfaz, e alcançar fama que o alça acima de um mundo no qual não encontra lugar.”

Imediatamente depois da (fracassada) bomba em Times Square, nada disso entrou em consideração. Sequer se deu atenção ao general David Petraeus, comandante geral das forças dos EUA – e sempre em campanha com vistas a 2012 –, que declarou que Shahzad agira “como lobo solitário”. A histeria correu solta – do senador Joe Lieberman, a postos para extirpar dos EUA todos os suspeitos de “terrorismo” (hoje, todos são suspeitos), aos jornais e noticiários de escândalos e boatos, a exigir o imediato embarque de todos os ditos suspeitos diretamente para as Comissões orquestradas pelo Pentágono.

A opinião pública nos EUA recusa-se a ver o que acontece nas ruas. Dentro dos EUA hoje, qualquer discordância pacífica pode ser criminalizada como ameaça “terrorista”. Cidadãos norte-americanos, como o imã al-Awlaki, podem ser “secretamente” assassinados em qualquer ponto do mundo onde estejam – mas se o assassinato acontecer nos EUA, será crime capital; a nova política pode ser o primeiro passo na direção de admitirem-se os assassinatos seletivos de cidadãos norte-americanos também em casa.

O governo Obama, a máquina de inteligência e a opinião pública dos EUA também se recusam a admitir como verdade o que acontece em plagas distantes, à revelia dos cidadãos. A guerra de aviões-robôs não tripulados contra o Paquistão – secreta, feita por mercenários e uma combinação das duas coisas – é considerada não só pelos pashtuns, mas pela maioria da opinião pública paquistanesa como o que de fato é: guerra que os EUA fazem contra o Paquistão; é matança sistemática, feita à margem da lei, de gente “desconhecida”, “invisível”. O governo Obama não admite sequer que esteja reavaliando essa estratégia. Isso, porque não a está reavaliando.

O timing do fracassado atentado à bomba em Times Square não poderia ser mais adequado – precisamente quando o governo Obama faz avançar a guerra para o interior do Paquistão; semana passada, autorizaram “secretamente” a CIA a atacar grupos maiores de combatentes pashtuns “desconhecidos”, invisíveis, de baixo escalão (com o inevitável “dano colateral”; mais de 400 civis foram assassinados por ataques de aviões-robôs, só em 2009). Ainda que o chefe do exército paquistanês general Ashfaq Parvez Kiani, amigo do Pentágono, não diga jamais um ai, tudo isso aparecerá, para a opinião pública paquistanesa, como o que de fato é: uma renovada declaração de guerra.

Estamos em plena era da Jihad nômade virtual. Esqueçam os Osamas; agora é hora dos Shahzads. A guerra ilegal, clandestina, dos aviões-robôs não-tripulados já desencadeou uma sequência terrível, absurda e mortal de contragolpes. Atenção, atenção: estão entrando em cena os Talibãs made in USA.

[1] Sobre o grupo, ver http://en.wikipedia.org/wiki/The_McClatchy_Company).

[2] Sobre o personagem e o caso, ver, por exemplo, http://www.dailymail.co.uk/news/article-487347/Prisoner-throws-boiling-oil-terrorist-leader-plotted-murder-thousands-dirty-bombs.html: foi preso em agosto de 2004, acusado de conspiração terrorista. Confessou ter planejado atentados à bomba contra a Bolsa de Valores de NY, a sede d o FMI e o Banco Mundial. Está preso, condenado a 30 anos de prisão. Barot nasceu na Índia, depois mudou-se com a família para o Quênia. Em 1973, o pai, banqueiro, foi obrigado a empregar-se como operário de fábrica, para sustentar a família. Originalmente indu, Barot converteu-se ao islamismo aos 20 anos. Pouco depois viajou ao Paquistão, em busca de treinamento e financiamento para seus planos. Há mais em http://www.dailymail.co.uk/news/article-487347/Prisoner-throws-boiling-oil-terrorist-leader-plotted-murder-thousands-dirty-bombs.html#ixzz0nj912Gmd

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Fonte:  blog “The Roving Eye”, Asia Times Online – http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LE12Df01.html

Tradução: Caia Fittipaldi