O esgotamento da “Terceira Via”
O debate no interior da esquerda sobre o futuro do socialismo pós-Muro de Berlim foi conduzido principalmente pelos ideólogos mais eminentes da social-democracia e do trabalhismo inglês, num momento em que a esquerda de orientação marxista dividia-se – em suas diversas vertentes teóricas – entre a perplexidade e a tentativa de explicações imediatistas.
Como a social-democracia já descartara – há muitas décadas – um projeto de ruptura com o capitalismo, sua opção por um novo caminho não a conduziu na direção de um eventual corredor entre o velho bolchevismo do partido único e a social-democracia, que triunfara em vários países da Europa. Sua opção foi a busca por um lugar situado entre o centro e a centro-esquerda, por ela representada, abrindo espaço para uma espécie de acordo “tácito” com alguns princípios fundamentais do projeto neoliberal, que advogava em favor do desmonte das conquistas do Estado de Bem-Estar como única maneira de “sair da crise”. O serviço foi feito.
As sucessivas crises do capitalismo global depois da queda da URSS demonstraram, porém, que a capitulação da social-democracia ao domínio do capital financeiro como tutor da vida pública universal e seu distanciamento dos movimentos sindicais e populares que lhe deram origem, empobreceram seu ideário político e lhe afastaram dos “de baixo”, vulgarizando sua agenda como uma agenda “materialista-economicista” no mau sentido. Terminou por enveredar para uma tentativa anêmica de salvar o capitalismo específico da globalização financeira, sem considerar o empobrecimento da sua base social e a sonegação de seus direitos básicos.
A social-democracia, portanto, não encontrou um caminho salvacionista, que consolidasse os “direitos dos pobres” – conquistados ao longo de décadas – mesmo dentro do modo de vida e das estruturas de poder da sociedade capitalista. Os frutos do progresso científico e da produtividade acabaram sugados pelo “rentismo globalizado” no desvario que redundou na crise do “sub-prime”. E, desta forma, a social-democracia européia foi perdendo, gradativamente, força social e legitimidade política. O caso inglês, neste sentido, é paradigmático.
Cumpre reconhecer que alguns acertos parciais do Trabalhismo inglês tiveram reflexo nestas eleições. A hegemonia trabalhista na última década foi capaz de produzir (ao menos) uma importante mudança no léxico político nacional, fenômeno atestado por um interessante levantamento da revista “The Economist” acerca dos recentes debates. David Cameron, líder conservador, apoiou-se no lema “Conservadorismo com compaixão”, explicitando um claro deslocamento ao centro de seu partido. Os temas que se relacionam com o “cuidado com os mais pobres” estiveram no centro dos debates eleitorais.
Além disto, alguns resultados sociais dos governos trabalhistas são relativamente positivos: o acesso à saúde foi ampliado significativamente, assim como o acesso ao ensino superior; meio milhão de crianças saíram da pobreza e os investimentos em educação foram duplicados nestes treze anos.
Entretanto, apesar de alguns avanços como estes, os governos trabalhistas não lograram resolver, nem ao menos parcialmente, os principais impasses do modelo sócio-econômico britânico. A desigualdade social, por exemplo, se manteve estável, incidindo fortemente sobre o nível de satisfação dos britânicos com seu país. Pesquisa recente revela que 71% da população acreditam que o país está se tornando um lugar pior para se viver.
Mas, afinal, qual o legado da “Terceira Via” em meio ao ocaso de uma hegemonia que até pouco tempo parecia tão sólida?
Não seria preciso um grande esforço de análise para concluirmos que a auto-intitulada “Terceira Via”, em sua tentativa de estabelecer “diálogos” com o neoliberalismo terminou engolida por este. O Trabalhismo inglês não foi capaz de preparar o país para resistir à crise mundial, que arrasou importantes instituições britânicas e ampliou o desemprego e a miséria. Economicamente, além de não blindar a economia britânica, também conduziu o país num ritmo de crescimento que só fez reduzir sua relevância na economia global, reforçando a centralidade da economia alemã no contexto europeu.
A descaracterização político-ideológica do Trabalhismo inglês foi tamanha ao ponto de a Inglaterra se transformar na grande fiadora da invasão dos EUA ao Iraque, ocasião na qual Tony Blair afirmou “não haver duvidas” que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.
A convergência do trabalhismo e dos conservadores para um centro anódino que não produziu novas alternativas de coesão e inclusão social e nem novas formas de controle público do Estado, não só confundiram o eleitorado de esquerda e social-democracia, como também não responderam ao necessário reencontro da esquerda com os valores democráticos e com as exigências dos novos modos de vida, incrementados pelas novas tecnologias informacionais.
Até mesmo o prestígio internacional, que outrora gozavam os próceres da “Terceira Via”, foi reduzido a pó e nem mesmo aquela parcela da social-democracia convertida aos dogmas neoliberais (como o PSDB no Brasil) tem coragem de assumi-los como referência hoje.
Ocorre que uma verdadeira “terceira via” – a que realmente poderia regenerar os valores humanistas da esquerda, depositária das idéias libertárias da ilustração e das grandes revoluções – jamais poderia emergir de uma parca “mistura” da idéia da democracia com a anarquia do mercado sem regulação.
Somente seria possível falar em uma “terceira via” a partir de uma síntese superior do republicanismo democrático com as idéias de emancipação herdadas daquela social-democracia anterior ao seu conhecido “racha”, determinado pela exceção da revolução russa.
Ao nos recordarmos do quanto foram incensados, mundo afora, os ideólogos da “Terceira Via” inglesa naqueles anos cujo pensamento de esquerda ainda caminhava, errático, pelos escombros do antigo muro, não deixa de parecer irônico que, neste início de século, seja exatamente da América do Sul que surjam ares renovadores no seio da esquerda mundial. E eles se expressam em plataformas concretas de governos democráticos, dirigidos por aqueles mesmos partidos de esquerda (por vezes aliados ao centro democrático) sobre os quais o trabalhismo inglês pretendeu despejar suas lições.
A esquerda do velho continente abre o século XXI diante do desafio de fundir o antigo humanismo libertário das grandes revoluções com a democracia assumida enquanto valor universal. E pode encontrar na América Latina um bom terreno de observação.
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Fonte: Leitura Global