Um clássico mais que contemporâneo
A história, no entanto, tem suas armadilhas. No mesmo ano, bem pouco tempo depois daquelas precoces comemorações entraria em colapso o modelo do neoliberalismo, cujo acontecimento trouxe a luz alguns questionamentos, em especial, a de evitar referenciar reducionismos teóricos e analíticos como o do 'fim da história’, tese que ganhou contornos de profecia. Mas social e politicamente catastrófica para a humanidade, a experiência neoliberal seria a pá de cal naqueles analistas que sustentavam a leitura de uma preponderância da mão invisível do mercado associado à idéia do estado mínimo.
Passado os anos, ainda são tempos difíceis para a humanidade, e igualmente para o Brasil, em que uma agenda política recoloca ao país desafios históricos que estavam aparentemente anestesiados; mas que se apresentam em 2010 com outras adjetivações, sem, no entanto, refletir diferenças estruturais e socialmente profundas em relação àquela do último século. Com ele, também se apresenta o desafio de aprendermos explicações e formulações para nós instrumentalizarmos intervir no processo político. Daí a importância de retomarmos os pensadores clássicos, clássicos que são assim referenciados pelos contemporâneos pelas instigantes pontuações que elaboraram em um tempo distante (ou não) bem como pelos instrumentos teóricos formulados para a compreensão dos desafios presentes.
Nessa linha, é que se apresenta em muito boa hora, a reedição do conjunto da obra de Nelson Werneck Sodré, autor clássico do pensamento social brasileiro, e que acontece às vésperas do centenário de seu nascimento. Sua obra é vasta e coerente, abarcando um conjunto de dezenas de livros e milhares de artigos, que versam sobre um arco de reflexões na história, literatura, sociedade, cultura e política.
Embora o autor ainda seja objeto de vivas polêmicas, cujas teses são reatualizadas no debate político contemporâneo pelos desafios que enfrentou em elaborar um projeto para a Nação; temos visto nos últimos anos um reexame mais categorizado (e menos preconceituoso) de seus trabalhos. A rigor, esta reflexão clássica orienta-se por um aspecto central, apreender a constituição da sociedade brasileira; exposto em um desafio que se apresenta como possibilidade de apreensão e superação em 03 livros referenciais: Introdução à Revolução Brasileira, História da Burguesia Brasileira e Formação Histórica do Brasil.
Nelson Werneck Sodré elaborou sua obra na condição de duas vocações, paralelas, confluentes e mediadas pela política. Uma delas, como intelectual, foi desenvolvida em grande medida extra-muros acadêmicos, sendo ele um dos últimos intelectuais públicos; daqueles que escreviam e dialogavam idéias para a sociedade e a nação; talvez isso, explique a constante reedição de seus trabalhos. A outra, vocação militar, exercida como oficial de artilharia do exército e que chegou a patente de General de Brigada, que está expressa em 02 livros para apreender o papel dos militares no Brasil: Memórias de um Soldado e História Militar do Brasil. Este último objeto da presente reedição, igualmente se distingue como um clássico. E por quê?
História Militar do Brasil trouxe ao debate político e ideológico uma outra leitura sobre os militares e sua intervenção na história do Brasil, diga-se, nada isenta de polêmicas. Mas diferente de algumas teses que sustentam a presença dos militares por razões endógenas, Sodré chama atenção que eles não estão ausentes do processo político, e muito menos dissociados das influências extra-muros da caserna. Os militares estão inseridos na sociedade e dela recebem influências da mesma forma que são por ela influenciados, se expressando historicamente no processo político pela intervenção da instituição militar ou por grupos, muitos deles nacionalistas, alguns de esquerda.
Na verdade, sua reflexão reflete aquela que é uma de suas teses mais controversas, e a que consequentemente, resultou numa reação contundente de alguns analistas: o exército teve uma formação democrática e assim interviu de forma progressista em muitas ocasiões na história do Brasil. Tese esta ainda sujeita a questionamentos por muitos analistas, mas que o autor não foge a eles, sustentando sua leitura com vasta fundamentação documental e teórica (além de prática pela condição de ter sido oficial do exército). Mas é possível identificar a atualidade de História Militar do Brasil? Se sim, de que maneira? Vamos ao debate.
Inicialmente, vale pontuar como é descrito o processo de constituição do livro, suas fases históricas e a qualificação que estas recebem do autor. A Fase Colonial é a primeira; seguida da Fase autônoma; tendo em 1930, iniciado a Fase Nacional, particularmente importante, e com ela um adendo: o Exército muitas vezes esteve ao lado do povo. A partir de 1945, o autor indica uma subfase, denominada Consulado Militar, iniciada em concomitantemente a Guerra Fria. Nesse momento último, é que se apresentou ao país, o debate democrático e nacionalista; a polêmica sobre o petróleo; as ameaças à Amazônia, confluindo essas questões no Clube Militar. Sodré participava da Diretoria do Clube, cuja chapa incluía oficiais nacionalistas (alguns advindos do tenentismo) e de esquerda, bem como dirigia sua prestigiada Revista. O Clube Militar pontificou naquela ocasião, uma das mais belas e significativas campanhas pela soberania nacional de nossa história: a luta de O Petróleo é Nosso; cuja vitória assegurou seu monopólio e a criação da Petrobrás.
Contudo, um parêntese se faz necessário. Podemos interpretar, sem risco de grandes equívocos, que a geração atual é caudatária da luta destes militares que hegemonizaram politicamente aquela tese patriótica e temos como seu maior legado hoje, o Pré-sal; segundo muitos analistas, nosso passaporte do futuro. Nelson Werneck Sodré foi um deles, cujo reconhecimento por aquela participação foi inexistente; muito pelo contrário, quase todos tiveram suas carreiras abortadas; sendo muitos transferidos do Rio de Janeiro para guarnições distantes; outros reformados, e até mesmo expulsos das Forças Armadas. Foi seu caso, exilado por alguns anos em uma distante guarnição de fronteira, tendo suas promoções na carreira militar ocorrido em grande medida, por antiguidade até às vésperas do golpe de 1964.
Alias, para uma apreensão aprofundada sobre sua trajetória pessoal, vale pontuar que a reflexão exposta em História Militar do Brasil, não está deslocada de outro clássico do autor, ‘Memórias de Um Soldado’. Em ambos os livros, ele não somente pensou, formulou e reformulou paradigmas, mas também resgata sua presença militante como personagem histórico, já que interviu em muitos momentos decisivos da história política brasileira. Neles estão presentes de forma articulada, o resgate das lutas dos anos 50, em que houve uma intensa reflexão sobre um projeto nacional e democrático associado aos movimentos populares; mas não somente, lutas que refletiram a resistência de setores militares em enviar tropas brasileiras à Guerra da Coréia. Em sua análise, a Fase Nacional descrita em História Militar do Brasil, é que reflete a tradição histórica e democrática que se expressaria em movimentos na confrontação ao Imperialismo e ao latifúndio. Como veremos, Sodré estabeleceu igualmente a distinção conceitual entre país e nação e o papel da instituição militar na particularidade da revolução burguesa em curso no Brasil; valorizando como missão das Forças Armadas, assegurar as liberdades democráticas e a livre expansão econômica nacional.
Com efeito, a tese central posta em História Militar do Brasil sobre a presença democrática dos militares é sustentada e reafirmada empiricamente; mas não somente, é também analisada no livro enquanto polêmica e controvérsias, visto que, além do resgate amplo, ele mesmo não se escuda em analisar os momentos que a instituição militar se pautou por posições conservadoras, quiçá reacionárias. Vale registrar que Sodré pagaria ainda um alto preço pela coerência de suas posições ao longo dos anos seguintes, sendo inclusive preso com o golpe militar. Mas Sodré não deixou de chamar atenção que a derrota das forças em 1964, foi uma derrota política, tendo inclusive lamentado que houvesse uma radicalização à esquerda no pré-64; aspecto este que teria contribuído para o golpe na medida que resultaria no isolamento das forças políticas progressistas e nacionalistas.
Como ressaltado, Nelson Werneck Sodré não abdicou desta tese histórica e duas questões se apresentam para sustentar sua leitura sobre a questão democrática e os militares. Uma delas, a composição social do exército, ao qual, ele é um expoente. Sodré chama atenção que a instituição era composta em grande medida por membros advindos da pequena burguesia e que no seu tempo (mas também nos períodos subseqüentes), o exército era quase que a única possibilidade daqueles jovens ascenderem socialmente. De forma correlata, sustentou neste livro, que o exército pela sua vascularização nacional, era uma instituição que expressava a integração bem como possibilitava milhares de jovens educação, e isto não é pouco em um país como o Brasil.
Um outro fundamento importante desta tese é aquela em que chama atenção para os vários momentos da história do Brasil que os militares estiveram ao lado do povo. E são muitos. A campanha da abolição e a conseqüente proclamação da República é uma delas; exemplos dignificantes de patriotas são citados em generais como Floriano e Lott; ou referenciados nas suas páginas as expressões do movimento tenentista, bem como a Coluna Prestes; como também a Campanha do Petróleo é Nosso; ou aqueles movimentos de resistência como o 11 de Novembro e a posse de João Goulart; como exemplos de manifestações progressistas e democráticas dos militares ao longo da história. Mas em seu livro, o autor também não se abstém de analisar criticamente as situações que os militares se envolveram ou foram envolvidos negativamente, e não faltam exemplos como a campanha de Canudos; a chamada Intentona Comunista e suas conseqüências em que uma versão foi veiculada como fato; atuação golpista em 1937; a Doutrina Góes Monteiro; e especialmente, algo de triste memória, o golpe de 1964. Ainda assim, Sodré defende que a história dos militares é um componente da história do Brasil em seus avanços e recuos, nada isolada do processo político brasileiro. Fica ainda, no entanto, uma indagação: em que medida, essa tese se apresenta contemporaneamente? Ou melhor, há alguma factibilidade da questão democrática e nacional quando analisamos as Forças Armadas hoje? Vamos por partes.
Há pistas importantes para corroborar esta hipótese, especialmente, na última parte de História Militar do Brasil. O livro foi publicado em 1965, um ano após o golpe, quando ainda se verificava uma luta interna entre as várias facções do exército quanto aos rumos que o processo iria decorrer. Ao mesmo tempo em que o autor privilegia o resgate da questão democrática; objetiva, na conclusão, com uma proposta de intervenção política para setores específicos da oficialidade no pós-64 (afinal, com os processos de expurgo nas FA, não havia mais esquerda militar, movimento de subalternos e marinheiros como componentes a influir; além de ser politicamente impensável), muitos deles insatisfeitos com possíveis desdobramentos de uma intervenção de longo prazo. É bem provável que essa última e diferenciada parte conclusiva tenha sido elaborada logo depois do golpe, quando a ditadura militar estava envolvida em distensões internas e o quadro político indefinido. Ao que parece, o autor indicava para setores militares uma política de resistência à ditadura a partir do aprofundamento de uma perspectiva democrática que estava posta no debate, mas sugeria igualmente a (re) valorização da questão nacional, incorporando osmoticamente o popular na configuração de um projeto de nação.
Contemporaneamente, há uma nova geração de militares emergindo no cenário político e, vale dizer, inegavelmente tem pautado sua presença pela disciplina, pelo cumprimento do dever submetido às normas democráticas advindas do processo de transição. Evidentemente, há muitas inquietações políticas, e mesmo uma agenda não equacionada, em especial quanto à extensão da anistia aos setores cassados e aos subalternos; ou mesmo a inconclusa questão sobre a punição aos torturadores e a abertura dos arquivos militares. Em seus últimos artigos, afirmava que as diferenças do pré 64 estavam superadas; portanto, havia que estabelecer pontes de diálogo, especialmente no setor nacionalista no sentido de aproximar os militares e a sociedade civil. Talvez, esta tenha sido sua última missão, quiçá, o seu último combate; e com ele a perspectiva retomarmos um projeto de Nação.
A atual agenda política, em alguma medida, não difere daquela que ele esteve envolvido em 1964; e com a queda do neoliberalismo em 2009; alias denunciado por ele como farsa, quando esteve em voga nos anos 90 em um de seus últimos livros (com o título, Farsa do Neoliberalismo). Por essa razão, sua obra se apresenta como um imperativo para repensar a Nação, em que o papel do Estado ganha centralidade e, com ele, a perspectiva de um projeto nacional, que seja efetivamente democrático e popular. Afinal, como bem pontuou o autor em um ensaio ‘Quem é Povo no Brasil’ , os militares fizeram parte do povo em várias ocasiões de nossa história. Em sua análise, Povo teria por significado maior (e que difere do conceito de população), a confluência de vários segmentos a favor das causas democráticas e progressistas; portanto nada mais coerente que somar a esta opção, os militares, e em reconhecê-los como ator importante deste processo de construção; algo atualmente em curso em outros países da América Latina em que eles assumem papéis relevantes com este objetivo.
A partir de História Militar do Brasil, podemos identificar pistas sobre a sua contemporaneidade. Temos algumas hipóteses. Pesquisas recentes demonstram que a composição social do exército, tem se alterado, aproximando daquela que foi uma constante ao longo do século XX (tendo inclusive oficiais filhos de praças). Paralelamente, a instituição tem tido uma intervenção social pedagógica, já sinalizada pelo autor em várias partes do país, particularmente na Amazônia. Por sua composição social estaria mais próxima da tese exposta pelo autor; e por sua presença no processo político incorporando causas nacionalistas (de maneira tímida e não publicamente); os militares – por hipótese – estariam se inserindo gradual e democraticamente no debate político. Controvérsias e rumores em curso sobre a real imobilidade dos militares também fazem parte do debate político e acadêmico, mas nada que tenha abalado o processo advindo da constituição de 1988. Hipóteses factíveis ou não, é um dado a ser contemplado.
Todavia, ainda permanecem as dificuldades em lidar com as seqüelas da intervenção militar de 1964, e que se fazem presentes através da atuação de alguns oficiais de extrema direita militar, que criam dificuldades neste diálogo ao resgatar um espírito de corpo; embora muitos jovens militares lamentem serem penalizados por uma dívida de gerações anteriores e que absolutamente não lhe dizem respeito. Talvez, este seja um ponto a ser superado, e explique certa timidez por parte de muitos nacionalistas em se posicionarem propositivamente nas grandes questões nacionais; nada distante daqueles que estiveram face a face de uma agenda correlata e foram partícipes legítimos do processo político brasileiro ao longo da história, como os muitos exemplos citados pelo autor neste livro. Seguramente, aspectos da atual agenda nacional como o Pré-sal; a questão da internacionalização Amazônia; entre outros temas, podem e devem demandar sua opinião como atores diretamente envolvidos no processo. Mas não somente.
A reforma agrária, uma tese histórica dos primeiros tenentes desde os anos 20, e, equivocadamente operacionalizada por muitos militares como políticas de colonização ou reassentamento podem vir a ser um ponto de identidade e aproximação com os movimentos sociais, particularmente ao ser resgatado e valorizado na perspectiva de um projeto nacional. Um indicativo positivo desta possibilidade é a recente formulação da Estratégia Nacional de Defesa (END), plano idealizado por setores militares e civis no sentido de propor uma política de defesa ao país que, pioneiramente aponta que sua factibilidade passa pelo seu equacionamento da questão fundiária. Embora esta tese não teve a mesma dimensão que outros aspectos elencados no documento, e tendo sido expressa de forma bem residual, somente seu reconhecimento significa um passo à frente como política de diálogo e aproximação com os movimentos sociais do campo. Faltou, no entanto, chamar esses últimos como agentes diretamente envolvidos e interessados para somar e influir nas decisões bem como no esforço de implementação.
Contudo, este aspecto, parece estar evoluindo no debate político no Brasil, havendo inclusive um gradual consenso em qualificar o golpe de 64 como ‘Civil Militar’ (e não somente golpe militar); em que pese, haja manifestações condenáveis (muitas vindas de setores acadêmicos) que procuram suavizar aquele período como Ditabranda. Outros indicativos também sugerem a contemporaneidade do debate proposto por Nelson Werneck Sodré. Há em curso – polemicamente, diga-se de passagem – movimentos de jovens militares no sentido de democratizar as Forças Armadas, e nesta linha, atuam algumas entidades de praças; sem deixar de mencionar a gradual presença de militares estudando universidades, bem como participando de congressos acadêmicos. No Congresso Nacional, uma tímida evolução é perceptível pela interlocução da instituição com os militares, havendo inclusive uma gradual especialização de parlamentares na temática Forças Armadas, sendo alguns de seus interlocutores mais categorizados, deputados de esquerda. Ao que parece, ocorre de parte a parte, um diálogo sem maiores constrangimentos ideológicos. Mesmo a atual proposta sobre o reequipamento das Forças Armadas numa perspectiva estratégica, saltou os muros da caserna incorporando outros setores não militares neste debate.
Estes aspectos correlatos, sem dúvida, já seriam suficientes para recomendar ao leitor que, História Militar do Brasil não é somente um livro de história, e sim a história como processo em curso; reflexo de uma tese clássica que é contemporânea em seus desafios; especialmente no quesito de que se podem pensar os militares como atores nacionais na construção de uma sociedade efetivamente democrática. Sua leitura soma ao resgate de uma reflexão sobre seu papel na agenda nacional, contribuindo para o diálogo destes com outros segmentos nacionais e populares, superando preconceitos e agravos; leia-se os reconhecendo como um componente do povo; tese igualmente cara a Nelson Werneck Sodré, mas que os confluiria conjuntamente com os vários atores nacionais no desafio maior: a construção da nação brasileira.
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1 – A título de ilustração, este pressuposto se sustenta particularmente em relação à reflexão marxista, enterrada como em outras ocasiões históricas; sendo verificado nos últimos tempos em vários países do mundo (mesmo na Alemanha pós queda muro), uma expansão extraordinária de suas obras e sua melhor tradição no mercado editorial, e isso não foi diferente no Brasil.
2 – A rigor, não há também uma apreensão da instituição militar em sua leitura de forma homogênea; ela reflete bem como se legítima no processo político, na medida que, os grupos e classes que se apresentam na sociedade ao lado das causas nacionais e patrióticas.
3 – Por hipótese, se o autor tivesse vivido mais alguns anos, é bem possível que esta parte última sofresse algum grau de reelaboração, já que sugere nela uma reflexão que pudesse vir a ser uma contribuição ao processo político. Esta é uma hipótese, alias, factível, na medida que é uma característica de Sodré em dialogar e reavaliar pontos de seus livros entre uma edição e outra.
4 – Ensaio histórico editado inicialmente para a Coleção Cadernos do Povo Brasileiro e reeditado numa série que comporia a clássica Introdução à Revolução Brasileira.
Professor de Teoria Política da FFC/Unesp – Marília.