Chama-se Aida mas não tem nada de comum com a heroína verdiana, salvo talvez a pigmentação mais carregada que qualquer mulher do norte europeu. De resto, nem é europeia: nasceu longe, para lá dos mares, no Peru, país já banhado pelo Pacífico, e decerto só as múltiplas penúrias que fustigam as gentes da América Latina a empurraram para os caminhos incertos da emigração.

Agora está entre nós, a trabalhar não apenas para garantir a sobrevivência própria mas também, suponho, para enviar algum dinheiro que ajude os que ficaram na terra de origem. Sei que teve sete filhos, não sei das suas idades nem de quantos porventura já melhor ou pior ganham as suas vidas. Mas sei, isso sim, que por muito bem que por cá a tratemos não é por gosto que continua emigrada, semiperdida entre gente estranha e, inevitavelmente, todos os dias a revisitar com nostalgia memórias do passado.

Mas sei mais, infelizmente: sei que a Aida soube um dia destes que tinha sido assaltada por uma doença, e doença grave, daquelas que põem em dúvida a perspectiva de haver futuro. Está a ser cuidada num hospital português, vai submeter-se a uma cirurgia, tenho informações que apontam para uma ampla possibilidade de sobrevivência.

Mas sei, e se não o soubesse seria fácil adivinhá-lo, que a angústia a visita. Também que encara a pior das possibilidades e que, perante ela, deseja fazer, ainda que morta, a definitiva viagem de retorno que tanto tem desejado em vão fazer em vida.

Do Peru, das mulheres e dos homens que lá nasceram e lá habitam, a televisão portuguesa fala pouco.

Um dia destes, porém, abriu uma excepção, e mais de um canal nos contou que uma jovem peruana de 18 anos, grávida, viajando de comboio aparentemente de regresso de uma viagem ao mítico Micchu Picchu, fora acometida pelas dores do parto e, apoiada por dois médicos que viajavam no mesmo comboio, dera à luz ali mesmo uma criança do sexo masculino. Tudo correu bem, vimos que bebé e mãe estão com bom aspecto, e a única nota funesta reside no facto de à criança ter sido aplicado o sobrenome de Rail (que, segundo prestimosamente explicou uma das jovens jornalistas que nos deram a notícia, quer dizer «comboio» em inglês).

Pela ideia de chamar Rail a um jovem peruano, permito-me supor que a companhia proprietária do comboio é norte-americana. Em compensação, ao nascituro foi dado o direito de viajar gratuitamente durante toda a sua vida que, naturalmente, se aguarda longa. O que parece sugerir que a empresa espera manter aquela concessão ferroviária durante muitos e bons anos, sem temer nacionalizações nem drásticas transformações tecnológicas no âmbito dos transportes terrestres.

Sentado diante do televisor vi o rosto fresco da jovem mãe peruana e lembrei-me de Aida, dos seus sete partos talvez decorridos com apoios bem menores que os afortunadamente presentes no comboio que regressava de Micchu Picchu.

Mais exactamente: lembrei-me não só de Aida mas das muitas Aidas que decerto partiram um dia do Peru e se terão espalhado por diversos lugares do mundo na busca de um quotidiano menos agreste e na expectativa de poderem enviar, das longes terras onde se fixariam, alguns dinheiros que minorassem as privações dos que ficavam.

E pensei, sem a menor intenção de desvalorizar a pequenina aventura da jovem parturiente, que conhecer as estórias de algumas dessas Aidas teria seguramente maior interesse, mais riqueza informativa, maior capacidade didáctica, que o caso do nascimento do jovem Rail. Uma jovem peruana deu à luz num comboio que descida do Micchu Picchu. Não acontece todos os dias, nem de longe, mas não é significativo de coisa nenhuma.

Centenas de Aidas deixam provavelmente o Peru todos os anos, transportando consigo o sonho de um dia voltarem. Vivas.

E esse é que é o fenómeno que exigiria a atenção da TV se a TV fosse mais que uma máquina de embalar e um negócio com diversos tipos de dividendos.

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*Correia da Fonseca é amigo e colaborador de odiario.info

Fonte: ODiario.info