Relato de uma visita à Palestina
“A maioria das crianças foi baleada na cabeça ou na parte superior do corpo. Os alvos mais comuns das balas de aço revestidas com borracha foram os olhos das nossas crianças”
Hanan Ashrawi, ministra da Educação Superior Palestina, denunciando em 2000 a “violência indiscriminada e o reinado do terror” promovido por Israel nos territórios ocupados.
Relato de visita de Leonardo Severo à Palestina em novembro de 2000
Quase dez anos se passaram desde que estive em Gaza em novembro de 2000 acompanhando como jornalista do Hora do Povo uma delegação da Federação Mundial das Juventudes Democráticas (FMJD), entidade consultiva da Organização das Nações Unidas (ONU). O objetivo da visita era permitir que representantes do Brasil, França, Itália, Grécia, África do Sul, Nova Zelândia, Índia e Chipre pudessem ver de perto a barbárie promovida por Israel nos territórios ocupados e dar o seu testemunho pessoal. Naquele tempo, um milhão de pessoas, 75% refugiadas, encontravam-se confinadas em um espaço de apenas 362 quilômetros quadrados. Hoje, somam um milhão e meio, o equivalente à população de Recife ou Porto Alegre, sob escombros e vitimadas pela guerra química.
Os guardas israelenses não entenderam como havíamos conseguido driblar as inúmeras barreiras erguidas para manter sitiadas as cidades palestinas e, enfim, chegado à Faixa de Gaza. Adel, nosso motorista “árabe-israelense”, disse simplesmente que não tinha visto nada. Todos na van confirmaram e o soldado foi contatar um superior. Voltou acompanhado do mais velho e de outros, todos já com o dedo no gatilho das metralhadoras. Pediram os passaportes e ficaram surpresos com a variedade das procedências. Para quê nos dirigíamos à cidadela da sub-raça?, nos inquiriam. Confirmaram não haver ali nenhum palestino, nos olharam fixamente, checaram as fotos e após algumas palavras em hebraico decidiram nos liberar. Mal sabíamos que no outro dia iriam bombardear indiscriminadamente a simpática e milenar Hebron, de onde acabáramos de partir.
PASSOS PESADOS
Ainda carrego comigo a sensação do ar carregado no acesso de chegada a Gaza, da aduana militarizada, da polícia israelense monitorando todos os movimentos. Após o sim dos guardas, começamos a caminhada em direção ao “lado inimigo”, onde nos aguardava uma representação palestina. No corredor, de cerca de um quilômetro completamente murado – ainda não havia o gigantesco muro construído por dezenas de quilômetros – se sobressaíam rolos de cercas de arame farpado, semelhantes às dos campos de concentração nazistas, despejando pontas e sombras fúnebres que emprestavam contorno ainda mais cinzento à paisagem, já tingida pela fumaça, e tornavam os passos mais pesados.
Uma sensação claustrofóbica, intensa e constante nos acompanhou durante toda a visita ao árido e minguado território, cuja concentração populacional já se encontrava entre as maiores do mundo. Ali, em tempos de “normalidade”, os poucos trabalhadores palestinos que tinham autorização passavam numa catraca eletrônica, tendo de apresentar aos guardas sionistas suas carteiras e digitais, com a comprovação do emprego em Israel. Atualmente, o portão está fechado, o que impede milhares de pais de família de garantirem o seu sustento.
Em meio à grave crise econômica, que somava então centenas de milhares de desempregados, obrigando boa parte da população a sobreviver da ajuda internacional, hospitais lotados de feridos, ausência de medicamentos e equipamentos, corre-corre nos corredores das enfermarias em meio ao cheiro da morte… Fotografei ambulâncias crivadas de balas, um sem número de crianças alvejadas, o caos materializado em poças de sangue, urros de dor e lágrimas da perda de entes queridos.
Como se me estimulasse a não desanimar, o pequeno Tarek, de apenas 11 anos, fazia o V da vitória, com o braço estilhaçado por balas de fuzil. O pai, ao lado, olhava com admiração a determinação do filho em continuar com o ato simbólico de expulsão do invasor, tantas vezes repetido como odiado e temido pelos agressores israelenses. Um gesto altivo, que desvela a certeza da continuidade da insubmissão.
O sangue que jorrava generoso daqueles jovens era o resultado da punição israelense pelo levante popular palestino, pela segunda Intifada, iniciada após uma provocação do carniceiro Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém Oriental, acompanhado por sua guarda pretoriana. Vale destacar que Sharon já havia chacinado mais de duas mil crianças, mulheres e idosos nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, no Líbano, em 1982, o que dá a dimensão do ato de profanação ao lugar sagrado.
LEVANTE POPULAR
Lembrei da primeira Intifada, em 1987, iniciada precisamente em Gaza, após um caminhão militar israelense ter atropelado vários trabalhadores palestinos, em levante popular que durou até 1993. Como flashes, se sucedem imagens da nossa visita, somadas a outras, como a do assassinato do menino Mohamad El Dura, de 12 anos, no bairro de Al-Braj, em Gaza, com o pai pedindo para que os soldados de Israel parassem de atirar. A imagem correu mundo, bem como a cínica “justificativa” do porta-voz do governo israelense: “ele já esteve em manifestações”. Visitamos o bairro de Al Braj e a guarnição de onde foi chacinado. Uma aberração sem limites. Deparávamos com a covardia da ocupação em cada cidade e, praticamente, em cada esquina.
Recordo de uma conversa com psicólogas, em Ramalah, e a descrição do impacto do terror e da incerteza das crianças palestinas quando ouviam as diárias movimentações militares israelenses. Um temor plenamente justificável, racional, perfurando a pureza com ponta de baioneta, antecipando o fim da infância.
Durante a nova Intifada, relatou Hanan Ashrawi, ministra da Educação Superior Palestina, “a maioria das crianças foi baleada na cabeça ou na parte superior do corpo. Os alvos mais comuns das balas de aço revestidas com borracha foram os olhos das nossas crianças”. Ela denunciou a “violência indiscriminada e o reinado do terror” promovidos por Israel.
Nos olhos das crianças? Infelizmente era isso o que queria dizer a presença nos hospitais de tantos meninos com os olhos vendados. De um lado, um soldado israelense com mira telescópica e a mais avançada tecnologia made in USA; mãos insurgentes de outro, jogando pedras no invasor, carregadas de esperança. Como punição, tiros certeiros. Naqueles dias, as 52 vítimas infantis mais graves só puderam ser encaminhadas à Alemanha em um vôo de emergência após ampla pressão da comunidade internacional em apoio à reivindicação da Autoridade Nacional Palestina.
Da mesma forma que havia preferência por atirar contra as crianças palestinas balas de aço revestidas com borracha – para cinicamente cegar e mutilar, sem o ônus da morte – contra os manifestantes, em geral, a ordem era matar. Os bombardeios israelenses contra um cemitério de Gaza em meados de janeiro de 2009 dão um quadro de até onde vai a perversão, que não permite descanso sequer aos mortos palestinos.
DIREITOS HUMANOS
Segundo Ashrawi, renomada lutadora pela paz e pelos direitos humanos, cujas atuações nas conversações de paz em Oslo, Madri e Washington ganhou reconhecimento internacional, “a política de atirar para matar ou aleijar permanentemente está em vigor no exército israelense”. Descrevendo a violência indiscriminada de então – potencializada agora na enésima potência – Ashrawi lembrou que o exército de ocupação sionista se utilizou de “munição letal, tanques e helicópteros bombardeios”, buscando impor sua política de anexação ilegal e “tentando fomentar um sub-país de bantustões isolados, dentro do regime de apartheid de Israel”. Os bantustões foram a forma clássica utilizada pela minoria branca para reprimir os negros durante o regime de segregação racial na África do Sul, sustentado política, econômica e “moralmente” ao longo dos anos pelos governos dos EUA e Israel.
“O objetivo de matar é claro: 60% dos palestinos mortos recebeu um tiro na testa”, denunciou o doutor Jihad Mashal, vice-presidente da União dos Médicos da Palestina, alertando que “com os territórios fechados pelas tropas de ocupação, a maioria dos transportes está parado, com gravíssimas consequências para a saúde da população”.
Conforme o diretor da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Palestina, Mohammad Abu-Arthieh, “a violência utilizada por Israel é planificada. Não há limites. Os alvos podem ser as mulheres e crianças, as ambulâncias que estão ali para socorrer ou mesmo os jornalistas que estão simplesmente trabalhando”. Naqueles dias, 30% das vítimas eram crianças e 15% dos feridos haviam ficado aleijados permanentemente. “É uma aberração inteiramente desproporcional as tropas de ocupação responderem às pedras dos manifestantes com armas de grosso calibre, tanques e helicópteros-bombardeiros. Os israelenses atiram à queima-roupa, mesmo dentro das mesquitas. Israel tenta transformar a Palestina em uma terra sem gente, usando de uma repressão atroz para obrigar os palestinos a abandonarem o seu território”, acrescentou.
A partir de junho de 1967, numa espécie de segundo tempo da ocupação israelense iniciada em 1948 após a proclamação do Estado de Israel, nada menos do que 73% da Cisjordânia e da Faixa de Gaza foram invadidos pelos sionistas. Alegando “motivos militares” ou “razões de segurança”, eles impuseram sua política de assentamentos com centenas de milhares de colonos judeus ortodoxos armados até os dentes.
Para quem teima em ficar, Israel realiza um brutal racionamento sobre a água e a eletricidade alheia. Isso ocorre em Gaza e mesmo na Cisjordânia, onde o potencial aqüífero, o maior do Oriente Médio, é quase inteiramente saqueado. Dos 678 milhões de metros cúbicos de água, nada menos do que 560 milhões – 82,5% – eram usurpados por Israel. Como lembrou o engenheiro geofísico Yosef Anwar Awayes, que concluía doutorado sobre Conflitos Internacionais de Água, “no final da Guerra de 1967, no mesmo dia 6 de junho em que Israel invadiu a Palestina, a Ordem Militar nº 2 foi justamente a determinação de que, a partir daquele momento, todos os recursos hídricos da região passariam a ser assaltados pelos invasores”.
O EXEMPLO DE ARAFAT
Naquele início de novembro, a confirmação da tão esperada reunião com o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Yasser Arafat, nos encheu de ânimo. Despachando normalmente, sentado em sua cadeira, Arafat olhou em volta e sorriu. Largou a caneta com que assinava os documentos e veio sentar-se conosco na mesa grande. A fala firme e serena, com pausas onde nos olhava nos olhos, o sorriso estampado, rapidamente explicaram a intensidade de seu carisma. Um homem de profunda humanidade, que transparecia em cada gesto e em seu modo de falar e tratar as pessoas. Foi relembrando os passos da agressão sionista, a brutal intransigência israelense, os inúmeros atropelos às resoluções da ONU, as sucessivas violações às mais elementares regras do direito internacional e sublinhou que “a Intifada continuará até hastearmos a bandeira Palestina em Jerusalém Oriental’’. Arafat retribuiu com um sorriso de satisfação a saudação enviada por Nelson Mandela através do representante da Juventude do Congresso Nacional Africano (CNA) e apertou as nossas mãos, agradecendo pelo gesto de solidariedade em meio aos constantes bombardeios. Tranquilo, frisou: ‘Derrotaremos a agressão sionista. A Palestina vencerá”.
Animados pelas palavras do ícone da resistência e herói palestino, estávamos revigorados, prontos para partir e encarar o longo retorno, pois Israel obstaculiza as estradas, fazendo com que viagens de dezenas de quilômetros se convertam em uma peregrinação de dezenas de horas pelas “barreiras de controle”. E os aeroportos? Fechados. E o mar? Cercado. Em pouco tempo daríamos a conhecer as verdades vistas e tantas vezes escondidas pela mídia venal.
Na partida, próximos à Faixa de Gaza, bombas explodiam próximas e podíamos ouvir as balas de fuzis e de metralhadoras. Ocorrências do mesmo tipo haviam, naqueles dias, atingido três jornalistas: um foi morto e outros dois encontravam-se hospitalizados, um francês e o representante da CNN em Gaza.
Inevitável pensar na necessidade de relatar ao mundo a experiência vivida. Inesquecível reverberar o sentimento daqueles instantes e o ensinamento maior do Che, deixado na carta a seus filhos, como um guia a embalar nossa coerência: “Sobretudo, sejam capazes de sentir, no mais profundo, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais linda de um revolucionário”.
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Leonardo Wexell Severo é editor da Hora do Povo, assessor de Comunicação da CUT Nacional, membro do Conselho Consultivo do Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé e autor do livro Bolívia nas Ruas e Urnas contra o Imperialismo (Editora Limiar, segunda edição)