Saramago com Baptista-Bastos (Fundação José Saramago)

Havia, nele, uma atenção minuciosa às coisas da vida, fossem elas de natureza material ou transcendental. E sabia mais, muito mais de religião e de textos sagrados do que muitos dos preopinantes que o criticavam. José Saramago aprendera, muito cedo, que uma ideia apela sempre para outra ideia, e que as sínteses parciais produzem o imobilismo. Conversámos, muitas vezes, sobre a natureza do marxismo, a noção de partido, os ritos da obediência, os imperativos da consciência e os paradoxos da História que, como se sabe, é uma deusa cega.

O Saramago era um desobediente; não um «dissidente»: um desobediente porque refractário ao dogma de que «o partido tem sempre razão», mesmo quando a não tinha. O fulgor da contradição era o ânimo do seu espírito. Não estava, permanentemente, a favor do contra; mas estar no contra, ser do contra fazia parte dessa dialéctica da totalidade que, afinal, é a substância que produz os homens livres. Esteve, inúmeras vezes, em total e absoluto desacordo com a direcção do PCP, e disse-o, alto e bom som, quando muitos outros utilizavam a surdina. Esteve para sair; não saiu. Sei do que falo porque encontrei-me envolvido no assunto. E não saiu porque não admitiu que as circunstâncias do acaso se transformassem numa espécie de ordem mecânica. O PCP ignorara-o, na fundação de «o diário», ele estava desempregado e marcado pelos acontecimentos do 25 de Novembro, conducentes à substituição da direcção do «Diário de Notícias», de que fazia parte. Deveremos entender como má-fé este episódio pouco claro?

Nem mesmo aí José Saramago se queixou, protestou ou saiu. Não deixou, porém de tomar posição, anos depois, quando um grupo de militantes condenou as indecisões dos dirigentes do PCP, acerca do «golpe» de Moscovo. Nada impedia este homem de expor a força das suas causas e o poder das suas convicções. Porque de convicções se tratava e sempre se tratou.

Um comunista agnóstico, que acreditava na dialéctica como ciência e na sua incompatibilidade ocasional com as estratégias partidárias. Sopesadas bem as palavras, penso que Saramago era o seu próprio partido, e que o PCP a sua solidariedade institucional.

A tristeza essencial que deixava transparecer acentuou-se na proporção em que o mundo regredia nas opções sociais, e que Portugal acelerava uma decadência degenerescente, reflectida em todos os sectores da sociedade. Não parava, porém; mesmo quando a doença o atingiu rudemente. E não parava porque continuava a acreditar no poder da palavra, no império das ideias e na grandeza da dignidade humana.

_________________________________________________________________

Fonte: I Oline