Morreu o homem de Lanzarote. E o mundo encolheu de ontem pra hoje: Saramago recebeu o ponto final. Além de haver sido o ganhador do primeiro Nobel de literatura concedido a escritor de língua portuguesa, foi a grande referência para a esquerda em todo o planeta. Nesse segundo aspecto guarda forte semelhança com o ideário político de nosso longevo e brilhante Oscar Niemeyer. Saramago foi alguém cuja arte literária se firmou ante a Academia do Nobel como mais representativo em nossa língua que Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto. Recebeu o Nobel com 76 anos em uma época em que já era escritor prolífico, traduzido em dezenas de idiomas e tendo agregado junto à sua obra multidão de leitores com uma fidelidade inquebrantável.

Contava 87 anos de idade e pelo menos uns 12 séculos de história. Sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, era a própria caverna do pensador inflamado e do justiceiro impiedoso para com as falsas quimeras. Era filho de pastores analfabetos e pobres; segundo o próprio Saramago, “para quem o livro era um luxo inatingível”.

Sua estréia como escritor foi pontuada por amplos travessões e gritantes silêncios. O primeiro romance foi publicado em 1946 quando contava 23 anos de idade e o segundo somente veria letra tipográfica depois de 30 anos, em 1976. E fez um pouco de tudo: mecânico, funcionário público, gerente de gráfica, revisor, tradutor, articulista de jornal.

Totalitarismo revisitado
Aprendi a admirar Saramago muito cedo, contava ainda menos de 20 anos e ficava encantado com aquele texto avançando sobre as páginas, ignorando por completo idéias tão obscuras quanto parágrafos, letras maiúsculas, pontos finais. A escrita de Saramago é formada por potentes blocos de prosa sem pit-stop e nada de quebra de parágrafos e muito menos uso de aspas.

Intuo que pesquei dele esse jeito de me esparramar sobre o tema que desejo tratar e não poucas vezes entendo que se não fosse pela paciência e dedicação de uns poucos amigos (e revisores) toda a idéia seria abarcada, de um só jato, sobre o bloco primeiro do texto. Foi com o tempo que constatei ser impossível escrever aos pedaços e também impossível ser lido sem render reverência à necessidade que os textos têm de respirar e para isto vieram à existência os parágrafos e, mais além, o luxo que os bons intertítulos desfrutam, para deleite dos leitores. Era o ponto de união entre tradicionalismo e vanguardismo.

Saramago tinha jeito de rio caudaloso, guardando a extensão do Nilo e a vazão do Amazonas, e era dado a conchavos com a criatividade: Evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira, A viagem do elefante, Ensaio sobre a lucidez, Memorial do convento, A caverma, Cadernos de Lanzarote. Vendeu mais de dois milhões de exemplares em todo o mundo. Fernando Meirelles levou às telas em 2008 o inquietante Ensaio sobre a cegueira.

Era um autor crítico, utópico, comunista. Diante da Real Academia da Suíça disse que se para ganhar o Nobel tivesse que renunciar às suas convicções, renunciaria antes ao prêmio. Quando, pressionado pela igreja católica, o governo português bloqueou a entrada no país de um Prêmio Literário Europeu, em 1992, ele não demorou a seguir para o exílio nas ilhas Canárias, uma possessão espanhola.

E foi sempre um homem apaixonado. E sua paixão era a mulher, Pilar Del Rio, conhecida jornalista espanhola. “A ela, devo toda a minha vida”, diria em 1993. Nada lhe passava batido. São recorrentes suas declarações e impressões sobre os conflitos de Chiapas, o regime cubano, a guerra no Iraque, a causa palestina, o Haiti. Suas idéias esbanjavam clareza. Foi um dos primeiros intelectuais europeus a visitar, ainda em 2002, a Cisjordânia e o que viu lá o levou a comparar o tratamento concedido por Israel aos palestinos com o Holocausto.

A ética foi o princípio criativo que brilhou em toda a sua produção intelectual. Achava cômico ser classificado como escritor triste, soturno, melancólico. Dizia ser seu direito esposar o pessimismo após viver em uma época com tantos conflitos armados ruinosos, com a destruição de Guernica, campos de extermínio mantidos pelos nazistas nos anos 1940, explosão de bombas atômicas sobre cidades japonesas, disseminação do agente laranja no Vietnã, os horrores de Abu Ghraib.

Para ele a globalização devia ser vista como uma nova forma de totalitarismo e lamentava o fracasso da democracia contemporânea em conter o sempre crescente poderio das empresas multinacionais.

Ponto de separação
É de admirar que alguém reconhecidamente pessimista tivesse seu grande sucesso de vendas com a cômica história de amor Baltasar e Blimunda, romance que retrata as desventuras de um trio de pessoas excêntricas em vias de ser exterminado pela Inquisição: um padre hereje que inventa uma máquina voadora, um ex-soldado e a filha de um feiticeira dotada com visão de raio-X, sendo os amantes os dois últimos.

O crítico Irving Howe destacou em sua obra a reunião de uma fantasia lírica a um realismo áspero e só Deus sabe o que isso quer dizer, ainda mais agora, que não temos entre nós o bom decifrador de textos que foi Wilson Martins. Saramago era em boa medida a voz ceticismo europeu e, todos hão de concordar, era o mestre dos mestres na arte da ironia.

E era paradoxal tal qual o tempo em que viveu. Embora seus principais romances denotassem intensa preocupação com Deus, afirmava-se ateu militante. “A história humana seria muito mais tranqüila não fossem as religiões”, dizia Saramago.

Quem não se lembra de uma das passagens mais líricas e inquietantes da obra de Saramago, revelada no excelente Evangelho segundo Jesus Cristo? Refiro-me à passagem em que Jesus na cruz pede desculpas à humanidade… pelos pecados de Deus. E tem início aí a bifurcação a separar seus admiradores de seus críticos. Os primeiros afirmavam ser essa percepção profundamente religiosa e os segundos, encontravam nela nada mais que explicita blasfêmia. Tal foi o escritor Saramago.

Grafado em pedra
Não vou deixar de compartilhar o quanto me agradou a leitura do seu A viagem do elefante. Neste, o autor detalhava em profundidade a história real, ocorrida nos 1700, em que o rei de Portugal tratava de levar o pobre quadrúpede de Lisboa para Viena. Todos os prós e todos os contra se encontram em transe literário e nos fazem pensar como é que alguém consegue extrair uma história cativante a partir desse enredo? Entretanto, há que se convir que Saramago tem o poder que poucos tem para descrever coisas e fatos e, caso não fosse a fatídica e hilária viagem do elefante por terras européias, ele poderia nos convidar a mergulhar numa xícara pequena de café e dali sair com a sensação que a literatura pode mais que qualquer tudo.

Em entrevista à televisão espanhola em fins de 1998 declarou que não tinha tempo para pensar na morte porque tinha muitas coisas que lhe faziam viver. E também não flertava com arrependimento: “Se tivesse que reviver tudo de novo, mesmo com o que há de triste, de mal, de feio, ainda assim, viveria tudo de novo”.

E quando alguém for levar flores ao túmulo de José Saramago bem poderia ler na lápide a ofuscante inscrição:

Jaz aqui o homem que ousou dizer não.

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(*) Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
Argentina, Espanha, México. Tem o blog http://www.cidadaodomundo.org
Email – [email protected]