Saramago conseguiu a proeza de ser um grande romancista moderno
Desde seus primeiros romances, Saramago dedicou-se a “levantar do chão”, por meio da palavra, os homens oprimidos e esquecidos por Deus pai ou pelos outros humanos mais favorecidos. E que palavras! Com ele, a língua portuguesa readquiriu, ao mesmo tempo, a majestade de um Vieira, o humor de um Eça de Queirós e a beleza poética do Pessoa prosador. Não por acaso, esse filho de analfabetos a alfabetizado tardio foi apelidado de “Imperador da língua portuguesa”.
Qualquer que seja a posição dos leitores com relação às opiniões políticas do homem Saramago, ninguém pode acusá-lo de ter feito literatura partidária ou militante. O romancista defendeu suas ideias, não com pregação política ou lições de moral, mas por meio da melhor literatura de ficção, aquela que, nos prendendo com histórias envolventes e nos embalando numa linguagem musical, nos faz refletir sobre a história passada e a sociedade atual. Apesar da firmeza de suas ideias, em seus romances Saramago sempre tratou a história e a realidade com mão leve, num registro imaginário, por vezes fantástico, que levantando o leitor do chão, a este o devolvia mais lúcido.
A primeira coisa de que se devem lembrar os críticos de Saramago é que ele foi um narrador de parábolas. A parábola é uma narrativa alegórica, cujo sentido moral não é explícito, mas deve ser recriado pelo ouvinte ou leitor. Assim, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” demonstra o contrário do que pretendia o heterônimo pessoano: “Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo”. E o “Ensaio sobre a Cegueira” ilustra o dito popular: “O pior cego é o que não quer ver”. Sendo parábolas, é injusto que se cobrem dessas histórias qualquer verdade factual ou psicológica.
Saramago conseguiu a proeza de ser um grande romancista moderno, portanto difícil, e ter encontrado um grande número de leitores, principalmente jovens. Uma das explicações para sua popularidade é a de ter sido um bom contador de histórias. Sua dicção, como a de um Guimarães Rosa, é a da oralidade, que aprendeu com seu avô guardador de porcos e com os camponeses do Alentejo. Ouvir histórias sempre foi um dos maiores prazeres humanos, em qualquer cultura. E Saramago foi um mestre no manejo dos acontecimentos e dos diálogos, a ponto de prescindir de sinais de pontuação, tal era seu domínio do ritmo narrativo. Além disso, o fato de sua obra ter encontrado um grande público demonstra o quanto os leitores estavam carentes de histórias com sentido, e não apenas de entretenimento ou de auto-ajuda.
Ao longo do tempo, o estilo de Saramago evoluiu de um barroquismo tipicamente ibérico a uma simplicidade clássica. Que seus últimos romances não tenham sido tão bons como os primeiros, é algo que não se deve censurar num escritor. Quem escreveu o “Memorial do Convento”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “História do Cerco de Lisboa”, “Ensaio sobre a Cegueira” e “Todos os Nomes” já podia descansar em paz.
À primeira vista, as obras de Saramago parecem pessimistas, já que ele nos dá uma imagem sombria da sociedade. Mas, de fato, ele era um otimista, pois não se cansava de abrir os olhos dos leitores para uma possível mudança do estado atual do mundo. Quando escreveu romances históricos, não o fez para recriar o passado, mas para corrigi-lo imaginariamente. Na verdade, se o historiador não pode nem deve alterar o passado, o romancista tem a liberdade de reescrevê-lo, em função do presente e do futuro. E esta é a razão dos abundantes paralelismos e anacronismos nas obras “históricas” de Saramago, que não são meros jogos textuais, mas apelos à reflexão sobre o presente e o futuro. O mais sombrio de seus romances, o “Ensaio sobre a Cegueira”, termina com uma alusão à esperança: “Esqueceste-te de falar da esperança de todos, Qual, A de recuperar a visão”. Em sua evocação do passado ou em sua visão do presente, as obras de Saramago se abrem para um futuro que não seja mero destino ou fatalidade, mas que preserve os valores humanos, dentre os quais o da arte literária.
A visão de Saramago nos fará muita falta. Em “Manual de Pintura e Caligrafia”, o narrador-personagem fala dos mortos: “Despeço-me dos mortos, mas não para os esquecer. Esquecê-los, creio, seria o primeiro sinal de morte minha. Além disso, após escrever tantas páginas, fez-se-me a convicção que devemos levantar do chão os nossos mortos, afastar dos seus rostos, agora só ossos e cavidades vazias, a terra solta, e recomeçar a aprender a fraternidade por aí”. Saramago continua vivo em sua obra e na memória daqueles que tiveram a felicidade de o conhecer.
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Fonte: jornal Folha de S. Paulo