Imperialismo moral

Imperialismo moral, em bioética, significa a tentativa de impor padrões morais de determinadas culturas, regiões geopolíticas e países a outras culturas, regiões ou países (9). O tema do imperialismo é bastante amplo. Apesar de a expressão ser relativamente recente (surgiu por volta dos anos 1870), para um estudo retrospectivo histórico seria necessário discutir categorias como colonialismo, neocolonialismo e subdesenvolvimento (nas teorias marxistas a respeito do imperialismo); militarismo e surplus, novo conceito que substitui a mais-valia (na teoria do capitalismo monopólico); mercado (teoria social-democrática); capitalismo (teoria liberal); anarquismo, hegemonia e Estado-potência (teoria da Razão de Estado). De modo geral, em teoria política, Imperialismo significa a expansão violenta, por parte dos Estados, da área territorial de sua influência ou poder direto, e formas de exploração econômica em prejuízo de outros Estados ou povos subjugados (10).

Com relação aos temas do neocolonialismo e do subdesenvolvimento, de interesse direto na presente discussão, é indispensável registrar que o capitalismo descontrolado tende a se manter e aprofundar os desequilíbrios entre os países ricos e pobres, os quais somente poderão ser superados com a introdução de eficazes instrumentos de programação e de políticas regionais concretas de dimensões mundiais. No campo dos ensaios clínicos, a receita equânime é a mesma, e será abordada no tópico final deste estudo.

Considerando os interesses econômicos, especialmente aqueles da indústria farmacêutica nos países desenvolvidos, deve-se levar em conta o problema da imposição das prescrições TRIPS-Plus (prescrições que excedem as obrigações com relação ao Acordo TRIPS) para os Acordos de Livre Comércio propostos pelos Estados Unidos da América (EUA) para os países periféricos. Essas prescrições podem reduzir significativamente a capacidade desses países em prover acesso adequado a medicamento aos seus cidadãos mais pobres. Além disso, regras de propriedade estritamente intelectual podem ameaçar o desenvolvimento da autônoma produção da indústria biomédica e eliminar os direitos garantidos pelo Acordo TRIPS pela Organização Mundial do Comércio (OMC).

Tratados de Livre Comércio, ou FTAAs (Free Trade Agreements), como eles são mais conhecidos, têm sido criticados por grupos constitucionais nos EUA e nos países periféricos e arriscam criar tensões e antagonismos entre governos e sociedade civil nesses países. Pressões econômicas e políticas para a aceitação dessas prescrições aumentam o espaço entre ambos os lados em termos de desenvolvimento e proteção à saúde, o que claramente é um sinal de imperialismo moral.

Na presente série de artigos o imperialismo será tratado especificamente como instrumento de imposição de um padrão cultural de um povo a outro, de uma nação forte a outra(s) mais frágil(eis). Dois princípios fundamentados existentes no Direito Internacional são aqueles relacionados à não-interferência de um país nas questões internas dos outros, e o respeito pelas particularidades de cada nação de acordo com suas especificidades políticas e culturais, com exceções pontuais. Nessa linha de ideias, e resgatando o sentido original da palavra latina mores, a partir da qual se iniciou o estabelecimento do Direito Romano e que significa “modo de ser” ou “modo de proceder”, hábitos de um povo ou nação, é que se tem que a pluralidade moral das diferentes culturas deve ser respeitada. O que está ocorrendo em tempos recentes é que algumas culturas hegemônicas, a partir do controle massivo da economia, e que têm os meios de comunicação de massa como instrumento, manipulam e invadem as culturas alheias, principalmente dos países em vias de desenvolvimento e pobres, impondo-lhes suas visões próprias e unilaterais do mundo. Tal imperialismo moral transforma os cidadãos em súditos; o súdito em vassalo, aquele que sempre está sob ordens de alguém mais forte, ou que tem autonomia muito relativa e fragilizada.

No campo da bioética podem se classificar dois tipos de Imperialismo moral: direto e indireto. Exemplo de Imperialismo moral direto é a crescente tentativa de alguns países desenvolvidos (centrais) de imporem suas visões morais aos demais. As ações recentes dos EUA em forçar a mudança do conteúdo original da Declaração de Helsinki relacionada às pesquisas com seres humanos é bem prova disso, a partir da quase exigência de que se passe a aceitar como eticamente correta a utilização de padrões metodológicos diferenciados para países também diferentes. Ou seja, a aceitação definitiva de que seria moral e eticamente aceitável que os desenhos metodológicos de pesquisas (por exemplo, com novos medicamentos antirretrovirais) tivessem um determinado padrão para países pobres e outro para países ricos, derrubando a grande tese democrática vencedora do século 20, a respeito da igualdade entre todas as pessoas (11). Em oposição, também, à histórica afirmação de Kant de que o homem é um fim em si mesmo, jamais um meio. Tal distorção, defendida por muitos como “ética” (6,7,8,12), se denomina double standard, ou seja, duplo padrão de atuação, proposta inaceitável para os países periféricos.

O Imperalismo moral indireto, por sua vez, é similar ao Indireto no sentido de atuar nas nações periféricas, mas funciona de modo diferente, partindo de ações educativas preliminares de convencimento e cooptação de pessoas nesses países mais vulneráveis, as quais, a médio e longo prazo, passam a fazer parte de comitês e organismos governamentais decisórios no campo da investigação clínica.

Referências:

8. Capron, A. Power and injustice in research involving human subjects. Sixth World Congress of Bioethics – Annals. Brasília, 2002, p. 83.
9. Garrafa, V. Imperialismo ético. Verbete. In: Tealdi, JC (org.). Dicionário Latino-Americano de Bioética. Bogotá. Unibiblos/UNESCO, 2007. In press.
10. Bobbio, N; Matteucci, N & Pasquino, G. Dicionário de Política. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2004, págs. 611-621.
11. Garrafa, V & Prado, MM. Tentativas de mudanças na Declaração de Helsinque: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cadernos de Saúde Pública, 2001; 17 (6):1489-96.
12. Lie, RK; Emanuel, E; Grady, C & Wendler, D. The standard of care debate: the Declaration of Helsinki versus international consensus opinion. Journal of Medical Ethics 2004; 30 (2): 190-193.