O crime perpetrado por Israel em águas internacionais, contra pacifistas empenhados em levar socorro aos prisioneiros desse imenso campo de concentração que passou a ser Gaza, pode e deve indignar, mas não nos surpreende: há muito que o governo de Tel-Aviv mostra como está decidido a atingir pelo terror não apenas as vítimas directas do seu expansionismo colonial, mas até os que ousem exprimir a sua solidariedade com as vítimas e que, de uma forma ou doutra, entravem a terrível máquina de guerra e de opressão à qual os carrascos recorrem.

A tese segundo a qual os pacifistas estavam armados e portanto mereciam a morte é a contrapartida daquela outra segundo a qual era uma obrigação moral desencadear a operação «Shock and Awe» (Choque e Horror!) contra o Iraque de Saddam, culpado de possuir armas de destruição massiva! A solidariedade e cumplicidade de fundo que ligam Israel e os Estados Unidos revela-se assim na arte da manipulação e não é substancialmente alterada pela alternância dos diversos locatários da Casa Branca. É uma manipulação que, se não é abertamente estimulada, pelo menos não é dificultada pela grande imprensa de «informação».

Nos últimos tempos, tanto na Palestina, como em certos sectores do Ocidente, está a desenvolver-se uma nova forma de luta consistindo no boicote das mercadorias produzidas pelos colonos que, em flagrante violação do direito internacional e dos Direitos Humanos, continuam a expandir-se nos territórios ocupados. Seria uma oportunidade para os que não se cansam de condenar a «violência» da resistência saudarem esta forma de luta tipicamente não-violenta que é o boicote. E no entanto, o que aconteceu foi o contrário. No «Corriere della Sera», Furio Colombo e alguns outros apressaram-se nos últimos dias a considerar que o boicote das exportações israelitas provenientes dos territórios ilegalmente ocupados faz pensar nas medidas tomadas pela Alemanha nazi contra as lojas propriedade dos judeus.

Que se passa na verdade? Conforme lembrei no meu último livro «La non-violenza. Uma storia fuori dal mito», os povos oprimidos e em primeiro lugar os povos colonizados recorreram constantemente ao boicote. É um instrumento de luta que, para nos limitarmos ao séc. XX, vemos em acção na China, ao longo do protesto organizado pelo movimento do 4 de Maio (1919) contra a pretensão do Japão, animada ou tolerada pelas outras potências imperialistas, de impor o seu protectorado ao grande país asiático. Uma dezena de anos depois do boicote dos tecidos, sucede-se na Índia o boicote dos produtos da indústria inglesa. Neste caso, é o movimento inspirado e dirigido por Ghandi que conduz a agitação: «As mulheres faziam regularmente piquete nos armazéns onde era vendido vestuário produzido na Grã-Bretanha. Seguiam as outras mulheres que saíam dos armazéns e tentavam convencê-las a irem trocar as compras». Alguns anos depois, foi a comunidade judia internacional que sugeriu o boicote dos produtos alemães em resposta à fúria anti-semita de Hitler. É nesta tradição que assenta o movimento que procura hoje atingir as mercadorias produzidas exclusivamente graças ao expansionismo colonial inumano nos territórios palestinianos ocupados.

Evidentemente que desde o início o regime nazi se aplicou no estrangulamento da actividade comercial e industrial dos judeus alemães e na privação das suas propriedades legítimas. Mas, tudo isso nada tem a ver com o boicote (instrumento tradicional dos povos oprimidos) e sim com a utilização terrorista do poder político. Se se quer uma analogia, é necessário então referir as medidas que hoje atingem os palestinianos, expropriados das suas casas, das suas terras, dos seus olivais e postos cada vez mais na impossibilidade de levarem uma vida humana digna desse nome.

A condenação e até a criminalização que o poder e a ideologia dominantes fazem da luta não-violenta contra o colonialismo sionista é, apesar de alguns momentos de embaraço e aparente distanciação, a confirmação da vontade de Washington e Bruxelas deixarem impunes os crimes de Israel, mesmo os cometidos em águas internacionais, condenando pelo contrário seja qual for a forma de resistência do povo palestiniano.

Na vertente oposta, é obrigação moral de todo o democrata, anticolonialista e antifascista solidarizar-se com a resistência palestiniana (e árabe e muçulmana) contra o imperialismo e contra o colonialismo. Cabe à resistência palestiniana decidir e escolher as formas de luta.

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Domenico Losurdo, filósofo e historiador, é Professor da Universidade de Urbino, Itália

Este texto foi publicado em www.voltairenet.org

Tradução: Jorge Vasconcelos

Fonte: ODiario.info