Várias palavras identificam os militantes das políticas de ajuste sobre os grupos vulneráveis da sociedade, mas uma os delata sem possibilidade de dissimulação nestes tempos de crise internacional: “austeridade”. Diante da sucessão de descalabros sociais nas últimas décadas, mencionar o termo ajuste começou a provocar certa prevenção, embora não poucos economistas mantenham sua atitude fundamentalista de não ocultá-lo.

Outros preferiram evadir-se com habilidade desse selo de identidade do fracasso buscando uma via de escape no vocábulo “austeridade”, que encerra ainda um significado positivo para a maioria, embora tenha o mesmo conteúdo que o do ajuste. Esse conceito de austeridade socialmente aceito se vincula a essa concepção familiar que diz que “a poupança é a base da fortuna”. Mas para um Estado essa máxima implica restrições, visto que seu orçamento e influência no funcionamento da economia não tem nada a ver com a organização do orçamento familiar.

Esta última confusão é alimentada no espaço público local por essa aliança legislativa que unifica conservadores com setores da centro-esquerda preocupados com a volta de investimentos públicos, com a magnitude de subsídios e o manejo global de recursos por parte do Estado. São inquietudes interessantes em situações de normalidade da economia internacional, mas que na atual situação requerem precisão conceitual para não restarem absorvidas pelas mensagens tradicionais dos militantes do ajuste. Diferenciação complexa de se obter, visto que não se deve ignorar o que já se estudou bastante a respeito da influência na sociedade do vínculo entre meios de comunicação e hegemonia cultural.

O debate sobre o gasto público, sua origem e destino não é um a mais nestes momentos de descalabro econômico global. A histórica defesa da intervenção estatal na economia é tão importante como evitar alinhar-se na rota do questionamento global à administração dos recursos públicos.

Este aspecto é muito relevante porque em nível internacional se está travando uma forte batalha sobre a questão fiscal, com epicentro na desengonçada eurozona e onde os Estados Unidos jogam de contrapeso, alentando a continuidade dos planos de estímulo fiscal em defesa de seus próprios interesses. Sabe-se que as tendências conservadoras depois se irradiam para a periferia, como o provam as experiências do reaganomics dos oitenta e o Consenso de Washington dos noventa. Usinas do pensamento neoliberal domésticas já assumiram silenciosamente a tarefa de força avançada com o tema da previdência, defendendo a necessidade de aumento da idade de aposentadoria com o argumento da sustentabilidade do sistema no longo prazo, espelhando as medidas dispostas por países europeus em crise.

Na fase atual de descalabro das finanças globais está predominando na Europa a idéia da austeridade como solução para os profundos desequilíbrios econômicos. Essa receita é defendida pela Alemanha, levantando essa bandeira com um plano exemplar de corte orçamentário de 80 bilhões de euros até 2014. Esta política está baseada na concepção de que o vultuoso déficit fiscal é a causa da débâcle. Assim se oculta que esses saldos negativos elevados nas contas públicas têm sua origem em governos bondosos que aportaram pacotes volumosos de resgate do sistema financeiro para evitar sua quebra nos últimos anos. Com uma elevada cota de cinismo, os principais beneficiários desses planos bilionários de auxílios fiscais são agora os maiores críticos do que denominam políticas irresponsáveis e de esbanjamento dos governos, exigindo o caminho da austeridade.

Afirmam sem se ruborizar que querem a menor intervenção pública nos assuntos econômicos, obviamente a menos que os beneficie diretamente. Aqui é onde se expressa com mais nitidez a presença dessa hegemônica cultura da ortodoxia econômica através da mídia, expondo economistas do establishment e classe política conservadora em arremetida sobre o gasto público, o que exige dos representantes do pensamento crítico certa habilidade para não terminar confuso entre eles. Marshall Auerback, analista econômico norte-americano e pesquisador do Roosevelt Institute, explica-o do seguinte modo: “as elites que se escandalizam contra este gasto público vêm a ser como alguém que dá a outro cinco pacotes de cigarro por dia para depois indignar-se com o fato de que seu beneficiário contraiu irresponsavelmente um câncer de pulmão”.

Este é o principal tema em disputa no G-20, que se reúne neste fim de semana em Toronto, Canadá, e não o imposto sobre as transações financeiras que a Alemanha e outros países impulsionam com escassa convicção. Os representantes políticos das finanças globais impõem o corte do que qualificam de esbanjamento do gasto público, o que implica reduzir ainda mais a demanda privada. Também definem rebaixamento dos salários. Esses líderes tomam decisões adotando a linha conceitual do FMI, segundo a qual os multiplicadores fiscais são relativamente baixos. Isto implica que um fortíssimo ajuste, como estão anunciando em ordem unida os europeus, não aguçaria o ciclo recessivo. Estão convencidos de que a economia reagirá com estabilizadores automáticos a partir de uma política de austeridade. Auerback explica que “há provas empíricas irredutíveis de que essa hipótese é falsa e de que pôr em prática políticas fundadas nessa hipótese causa danos – que afetam gerações inteiras – em termos de queda no volume da produção, da receita, dos investimentos, do emprego e das bancarrotas empresariais.

O Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman se põe duramente contra essa política de austeridade, ao considerá-la um “erro terrível”. Assinala que essa estratégia defendida pela Alemanha “é uma má idéia”. Entre outras medidas, a chanceler Angela Merkel disse que baixarão os salários dos funcionários públicos, eliminarão milhares de postos de trabalho no Estado, cortarão benefícios sociais a setores desprotegidos e congelarão as obras públicas. Krugman explica que “a cultura da estabilidade” orçamentária alemã vale para tempos normais, não para os atuais, quando os países com superávit comercial devem contribuir para o crescimento do investimento público e para a dinamização do consumo interno, para atuar assim como motor de impulso do resto das economias. A austeridade alemã impactará negativamente outros países europeus vulneráveis, aprofundando a recessão e debilitando o euro ainda mais.

Esse retrocesso da moeda comum européia termina favorecendo às exportações européias, em especial o complexo industrial alemão. Este movimento é o que inquieta os Estados Unidos e por esse motivo Obama propôs ao G-20 manter os estímulos fiscais para sair da crise, na linha oposta à política de austeridade. A estratégia de Merkel, combinada com uma desvalorização do euro e uma redução do consumo interno, culminará exportando os efeitos da austeridade alemã para o resto do mundo, afetando a economia dos Estados Unidos, mas também instalando o risco de estar dando um empurrão para um segundo turno da crise global.

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Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: Página 12, na Carta Maior