Como é sabido, o programa da Eurolândia contou com a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) e envolveu compras de títulos públicos e privados pelo Banco Central Europeu (BCE), além de provimento de liquidez e interposição de garantias nos mercados interbancários, cujas conexões estavam obstruídas pelo chamado risco de contraparte. Esse risco se manifesta sob a forma da recusa dos bancos emprestarem uns aos outros, desconfiados que o vizinho possa estar carregado de papéis ilíquidos ou encontra-se na iminência de passar para a insolvência.

Os frugais alemães aceitaram o inevitável, ainda que se recusem a admitir que a temperança de seus assalariados e pensionistas aliou-se aos destempero de seus bancos pródigos para vender bem e emprestar ainda melhor aos malditos gastadores gregos, espanhóis e portugueses.

Mais uma vez, tão logo resgatados pela vigorosa intervenção das agências do Estado encarregadas da gestão da moeda, do crédito e das finanças públicas, os senhores da banca cuidaram de transmutar a garantia pública em poder privado. Argúem, como sempre, as razões indisputáveis da ciência econômica (e quiçá os princípios universais da moral e dos bons costumes) para exigir um ajuste fiscal sem precedentes na economia da Eurolândia. A novidade das últimas semanas, dizem os economistas Laurent Jennaud e Gillaume Duval, é a adoção de políticas fiscais restritivas nos países que ficaram à margem dos processos de endividamento excessivo – privado ou público.

A Alemanha pretende reduzir o déficit público de 5% para 3% até 2013, a Holanda projeta um déficit zero em 2015 e a França pretende alcançar 3% em 2013, escapando dos atuais 8%. A palavra de ordem é aplacar a desconfiança dos gestores privados da riqueza coletiva, atingindo indiscriminadamente virtuosos e pecadores.

Nos próximos meses, os rumos da economia europeia continuarão a depender das avaliações dos bancos e quejandos a respeito do "ajustamento fiscal" e da evolução do endividamento público nos países submergentes. Na visão dos pregadores da austeridade generalizada, o setor privado não reage aos estímulos fiscais, porquanto as expectativas de longo prazo estão insensíveis aos sinais emitidos pelo governo. Sendo assim, dizem eles, as projeções do setor privado – empresas e famílias – a respeito da evolução do déficit fiscal e do crescimento da dívida pública acentuam as antecipações pessimistas e não conseguem promover o crescimento da produção e do emprego. Trata-se da hipótese sobre os "efeitos não keynesianos da política fiscal" que sustentam a irrelevância dos multiplicadores de renda e emprego gerados pela elevação do déficit do governo.

Os advogados da austeridade generalizada, diz o economista Roberto Tamborini, acreditam que, mesmo em uma situação recessiva, ocorre o fenômeno da expulsão do gasto privado pelo dispêndio público, chamado no jargão dos economistas de "crowding out". Assim, o reequilíbrio das contas públicas, ainda em uma conjuntura recessiva, libera recursos e, ao mesmo tempo, infunde "confiança" ao setor privado. Creiam, infiéis gastadores!

Na contramão do pensamento purificador, os keynesianos temem a possibilidades de um duplo mergulho recessivo na Eurolândia, com efeitos desagradáveis na economia global. Ainda que essa trajetória indesejável não se realize, as perspectivas mais otimistas são de baixo crescimento para os próximos anos. Não é difícil imaginar, argumentam, que as políticas de redução do dispêndio e aumento de impostos resultem, ironicamente, na ampliação dos déficits, caso o gasto privado em consumo e investimento não responda à hipótese heroica e improvável dos economistas conservadores a respeito do "crowding out". Numa situação de desemprego elevado e capacidade ociosa idem, essa turma não acredita nas relações virtuosas entre austeridade fiscal e "recuperação da confiança".

Isso para não falar das agruras do povaréu – submetido aos rigores do ajustamento, depois de um período de euforia promovida pelo crédito fácil. Gregos, espanhóis e portugueses sofrerão as dores do cinto apertado: redução de salários, corte dos benefícios sociais, aumento de impostos, desemprego em alta. Aplicada numa economia balbuciante, essa receita poderá deprimir ainda mais o consumo e o investimento privados, contrariando a "reversão de expectativas" almejada pelos que advogam os programas de austeridade fiscal generalizada.

Sendo assim, os investidores, surpreendidos pelos efeitos adversos de seus clamores, elevam o prêmio exigido para absorver os papéis de dívida, sejam eles soberanos ou privados. Uma nova rodada de contração do crédito que não só reduz a capacidade de gasto das famílias e das empresas, como também compromete a própria capacidade dos Estados de emitir dívida nova e de administrar o estoque de endividamento existente.

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Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

Fonte: jornal Valor Econômico