Loreta Valadares: Lênin e o Que Fazer?
Ficha de leitura da professora Loreta Valadares sobre “O que fazer?” de Lênin.
Por Loreta Valadares
(Obras Escolhidas, V. 1, Alfa-Omega)
O Contexto
Não é fácil ler o Que Fazer? Escrito de forma apaixonada e com espírito polêmico, bem ao estilo de Lênin, o texto encerra todo um programa de construção de partido e formas organizativas em determinadas condições históricas, ao tempo em que formula princípios gerais de concepção de um partido revolucionário. Para não se ter uma leitura dogmática de o Que Fazer? é preciso colocá-lo historicamente, entender as forças em luta, os jornais da época e os agrupamentos envolvidos. Lênin escreveu o Que Fazer? em meio a uma acirrada luta político-ideológica, principalmente contra os economicistas, entre o outono de 1901 e janeiro de 1902, sendo publicado em março de 1902 em Stuttgart, Alemanha.
O texto responde a problemas concretos, daí a citação de fatos, pessoas, debates, quase pressupondo um conhecimento prévio do leitor da situação política da Rússia czarista e das forças em luta. Por isso, ao situar o contexto da época, vamos fazer uma espécie de glossário para explicar alguns termos usados no texto.
» Todas as definições de termos, porque sucintas e tiradas a esmo dos textos, se não acompanhadas de uma leitura mais ampla e do esforço de situá-las historicamente, correm o risco do reducionismo. Portanto, não basta ficar nas definições. É preciso ler o texto inteiro.
» No Prefácio Lênin explica como e porque escreveu o Que Fazer? Assinale quais foram seus objetivos.
Os Jornais
Iskra (A Centelha) primeiro jornal clandestino de toda a Rússia, fundado por Lênin no exterior e enviado secretamente ao país. Iskra desempenhou importante papel no processo de coesão ideológica dos sociais-democratas russos e na unificação das diversas organizações sociais-democratas dispersas, em um partido marxista revolucionário. Depois da divisão do partido em bolcheviques e mencheviques (Segundo Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo – POSDR, em 1903) os mencheviques tomaram o Iskra, que passou a chamar-se Nova Iskra, deixando de ser um jornal revolucionário.
Rabótcheie Dielo (A Causa Operária) – revista da União dos Sociais-Democratas Russos no estrangeiro, editado em Genebra entre abril de 1899 e fevereiro de 1902. O jornal, centro teórico-político do economicismo no exterior, apoiava a concepção bernsteiniana de “liberdade de crítica” ao marxismo, tomando posições oportunistas em questões da tática revolucionária e da organização dos sociais democratas russos, bem como negando o papel revolucionário dos camponeses. No II Congresso do POSDR os adeptos deste jornal representavam a ala direita do partido.
Rabótchaia Gazeta (Jornal Operário) – órgão clandestino dos sociais-democratas de Kiev. Foram publicados somente 2 números. O I Congresso do POSDR (março de 1898) reconheceu o jornal como órgão oficial do partido. O terceiro número não saiu porque membros do Comitê Central e da redação foram presos. Em 1899 tentou-se renovar sua publicação. No capítulo V, item a) do livro Que Fazer? Lênin discute esta tentativa.
Rabótchaia Misl (Pensamento Operário) – jornal dos economicistas, publicado entre outubro de 1897 até dezembro de 1902. Lênin, em Que Fazer? critica as posições do jornal, considerando-as como uma variante russa do oportunismo internacional.
Os Grupos
Grupo Emancipação do Trabalho – primeiro grupo marxista russo fundado por Plekhánov, na Suíça em 1883, teve importante papel na propaganda do marxismo na Rússia, combatendo o populismo e assentando as bases para o desenvolvimento do movimento social-democrata na Rússia. No movimento internacional o grupo representou a social-democracia russa desde o primeiro congresso da II Internacional, realizado em Paris, 1889. No entanto, o grupo caiu em sérios erros ao superestimar o papel da burguesia liberal e subestimar o papel revolucionário dos camponeses. Tais erros foram o germe dos futuros pontos de vista mencheviques, defendidos por Plekhánov e outros. Lênin considerava que o Emancipação e Trabalho apenas “lançou os fundamentos teóricos da social democracia e deu o primeiro passo ao encontro do movimento operário” (In: A Luta Ideológica no Movimento Operário).
União de Luta pela Emancipação da Classe Operária – organizada por Lênin no outono de 1895, agrupava cerca de 20 círculos marxistas de Petersburgo. Em dezembro de 1895 Lênin e vários militantes da União foram detidos e confiscado o primeiro número do jornal Rabótcheie Dielo (que, reeditado em 1899, veio a ser o porta-voz dos sociais democratas no estrangeiro, tendo sua redação aderido ao bernsteinianismo e a posições economicistas). Da prisão, Lênin continuou a dirigir a União através de escritos e panfletos cifrados. Foi nessa época que escreveu a brochura Sobre as Greves e o Projeto e Explicação do Partido Social-Democrata. Para Lênin, a União de Luta representou o germe do partido revolucionário apoiado no movimento operário. Como Lênin e vários outros fundadores da União de Luta ficaram muito tempo na Sibéria, idéias oportunistas e economicistas começaram a influenciar a União de Luta, principalmente através do jornal Rabótchaia Misl, cujos partidários tomaram a direção da União de Luta a partir da segunda metade de 1898.
União dos Sociais-Democratas Russos no Estrangeiro – fundada em 1894, por iniciativa do grupo Emancipação do Trabalho. O I Congresso do POSDR (março de 1898) reconheceu a União como representante do partido no exterior. Mais tarde, predominaram na União os economicistas, caracterizados por Lênin como oportunistas, que com eles travou acirrada luta. No seu II Congresso (abril,1900, Genebra) houve uma cisão e foi criada uma organização revolucionária independente a Sotsial-Demokrat, que a partir de outubro de 1901, por proposta de Lênin, fundiu-se à seção estrangeira da organização do Iskra, formando a Liga da Social Democracia Revolucionária no Estrangeiro, com o objetivo de contribuir na criação de uma organização social-democrata de combate. O II Congresso do POSDR (1903, Bruxelas e Londres) reconheceria a Liga como única representante do partido no exterior, mas já aí, neste Congresso, dava-se a cisão em torno da tática e da organização do partido entre os bolcheviques – (maioria) – partidários de Lênin e da orientação iskrista – e os mencheviques (minoria) – partidários das posições oportunistas, que embora minoritários, continuaram atuando dentro do partido e das organizações no estrangeiro, entrincheirando-se na Liga, que, em outubro de 1903, aprovou novos Estatutos, contrários aos adotados pelo II Congresso do partido. A Liga passou então a ser baluarte dos mencheviques no estrangeiro, continuando a atuar até 1905.
» Note que este roteiro caracteriza apenas alguns dos mais importantes grupos e jornais. A luta ideológica era intensa, em meio à dura batalha política e o enfrentamento à repressão czarista. A radicalidade histórica colocava diretamente na ordem do dia o que fazer – quais as tarefas e quais os objetivos da luta revolucionária – questões candentes, em torno das quais se posicionavam os agrupamentos.
» Ao longo do texto você vai “sentir” o espírito e o clima febril de luta e compreender como podiam surgir e ressurgir correntes aparentemente derrotadas.
» Siga com cuidado as notas explicativas. Elas permitem um acompanhamento cronológico dos acontecimentos.
As Correntes
Bernsteinianismo – corrente representativa das idéias do alemão Eduard Bernstein (1850-1932) que ingressara no Partido Social-Democrata dos Trabalhadores Alemães em 1871, tornando-se marxista sob a influência de Marx e Engels, a partir de 1880. Mas, entre 1896 e 1898, publica uma série de artigos em que se propõe a rever aspectos do marxismo que considerava “superados” e “não científicos”, dando origem, assim, à concepção revisionista do marxismo, exposta de forma mais acabada em Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Social Democracia, (1899) que vem a ser a principal obra do revisionismo clássico. Importantes questões do marxismo são negadas como o crescimento da concentração industrial e a intensificação das crises econômicas, a pauperização crescente do proletariado, argumentando a favor do “avanço constante” da classe operária e rejeitando a teoria da luta de classes, daí a não necessidade da revolução e sim das reformas gradativas no seio do capitalismo. Como conseqüência, também não seria necessário um partido revolucionário, mas um “partido socialista, democrático, de reforma”. É de Bernstein a fórmula “o movimento é tudo, o objetivo final é nada”. Apesar da intensa luta que se travou no seio do Partido Social Democrata da Alemanha, principalmente por parte de Bebel e Rosa de Luxemburgo, e das críticas aprovadas pelo partido à concepção revisionista de Bernstein, suas idéias continuaram circulando, atingindo todo o movimento social-democrata internacional. Lênin, em Que Fazer?, critica cabalmente o bernsteinianismo, matriz do economicismo, e das concepções revisionistas posteriores.
Marxismo Legal – interpretação crítica e acadêmica do marxismo, desenvolvida no seio da intelectualidade liberal burguesa da Rússia, no final do século passado. Seus principais expoentes – Struve e Frank – dizendo-se partidários do marxismo, limitavam-se a utilizá-lo como teoria explicativa da evolução da história, especialmente enfatizando o papel progressista do capitalismo na passagem da sociedade feudal para a capitalista. Para Struve o objetivo do marxismo legal era “proporcionar uma justificação do capitalismo”. Os marxistas legais não entendiam o marxismo como ideologia mobilizadora da classe operária, mantiveram-se afastados das organizações políticas da social democracia, pregando, de certa forma, o abstencionismo político. Mas exerceram grande atividade intelectual, principalmente através da imprensa legal. Em 1902 Struve assumiu a direção da primeira revista liberal da Rússia.
Economicismo – Lênin desenvolve este conceito em vários artigos escritos entre 1899 e 1902, para designar os grupos que atuavam no movimento social democrata russo separando as lutas políticas das lutas econômicas e dando ênfase às econômicas. Para Lênin, representavam as idéias de Bernstein no seio da social democracia russa. Definindo o economicismo como uma “tendência à parte” no movimento social democrata, Lênin atribuía-lhe as seguintes características: vulgarização do marxismo; limitação da luta e da agitação política; incompreensão da necessidade de criar “uma organização forte e centralizada de revolucionários”. Em o Que Fazer? Lênin criticou polemicamente o economicismo, caracterizando-o como uma corrente oportunista que não compreendia o papel do elemento consciente no movimento espontâneo, limitando-se a uma atitude de “subserviência à espontaneidade”.
» Para a elaboração destas notas, além de o Que Fazer?, utilizou-se como fonte o Dicionário do Pensamento Marxista, de Tom Bottomore, Zahar, RJ, 1988.
O Texto
São 5 capítulos, cada qual com sub-itens, um prefácio, uma conclusão e um anexo. O tom é extremamente polêmico e o conteúdo, situado historicamente, é de grande sentido político-prático, muito embora estabeleça conceitos gerais de largo alcance histórico. Aqui, vamos destacar tão somente alguns trechos de alguns capítulos, mas o livro deve ser todo lido.
Alguns destaques do Capítulo I – Dogmatismo e “Liberdade de Crítica”
No item I a) Lênin:
» desvenda o verdadeiro conteúdo da palavra de ordem “liberdade de crítica”, em voga na época e desmascara o conteúdo das correntes que a pretexto de combater o “dogmatismo” no marxismo, na realidade, queriam revê-lo e negar suas teses fundamentais.
» define quais as duas correntes em luta
» caracteriza o bernsteinianismo
» estabelece as bases do “oportunismo”
» Assinale quais as principais teses bernsteinianas que configuram a primeira versão do revisionismo.
Item I d) Engels Sobre a Importância da Luta Teórica
Como diz o próprio título, aqui, Lênin retoma as idéias de Engels sobre a necessidade e o papel da luta teórica, negada pelos economicistas
Alguns destaques – (trechos do próprio texto)
» A famosa “liberdade de crítica” não implica a substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade de prescindir de toda a teoria coerente e refletida, significa ecletismo e falta de princípios
» Muitas pessoas, muito pouco preparadas teoricamente e (…) sem preparação alguma, aderiram ao movimento pelos seus êxitos práticos e pelo seu significado prático
» Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário
» (…) a social-democracia russa tem tarefas nacionais como nunca teve nenhum outro partido socialista do mundo. Mais adiante teremos de falar dos deveres políticos e de organização que nos impõe esta tarefa de libertar todo o povo do jugo da autocracia
» De momento, queremos simplesmente indicar que só um partido guiado por uma teoria de vanguarda pode desempenhar o papel de combatente de vanguarda.
» Engels reconhece na grande luta da social democracia não duas formas (a política e a econômica) – como se faz entre nós – mas três, colocando a seu lado a luta teórica. (grifos de Lênin)
» Veja como Marx condena o ecletismo na formulação dos princípios em Crítica ao Programa de Gotha, Carta a Bracke, in Obras Escolhidas vol. 2, Marx, Engels, Alfa Ômega, SP, pag. 207. Leia também o Prólogo de Engels (pág. 205)
» A longa citação de Engels é do Prefácio à Guerra Camponesa na Alemanha, in idem, pag. 201(trecho citado). Veja porque a teoria desempenhou importante papel junto aos operários alemães. Compare anotações com o livro Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, já estudado e fichado.
» Quais as razões enumeradas por Lênin da importância da teoria para a social-democracia russa?
Capítulo II – A Espontaneidade das Massas e a Consciência da Social-Democracia
Neste capítulo Lênin discute a relação dialética existente entre o espontâneo e o consciente e critica a submissão à espontaneidade do movimento de massas. Considera que o elemento espontâneo movimenta-se em direção ao consciente, mas que este, embora não possa abarcar totalmente o espontâneo, a ele não se submete. Ao contrário, dá-lhe conteúdo e eleva-o ao patamar da luta política.
Alguns destaques do item II a) Começo do Ascenso Espontâneo (trechos do texto)
» Há espontaneidade e espontaneidade
» O “elemento espontâneo” não é mais do que a forma embrionária do consciente
ü Dissemos que os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora (…)
» (…) na Rússia, a doutrina teórica da social-democracia surgiu de uma forma completamente independente do ascenso espontâneo do movimento operário; surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas
» Assim, existiam, ao mesmo tempo, o despertar espontâneo das massas operárias, despertar para a vida consciente e para a luta consciente, e uma juventude revolucionária, que, armada com a teoria social-democrata, se orientava com todas as suas forças para os operários
» Note que Lênin analisa historicamente o processo de formação da consciência em estreita relação com o movimento espontâneo. Não se trata aqui, da discussão filosófica da relação ser/consciência.
» Veja como e porque os exemplos das greves de 1890 na Rússia corroboram as teses de Lênin sobre a dialética espontâneo/consciente.
» O que você entendeu quando Lênin se refere a ” consciência tradeunionista” ? E “consciência social-democrata”?
Embora considerando o “termo demasiado estreito para exprimir o seu conteúdo”, Lênin, nos itens seguintes, faz uma crítica radical do economicismo enquanto tendência que tentava dar um “fundamento teórico à sua submissão servil e ao seu culto da espontaneidade”.
Alguns destaques do item II b) Culto da Espontaneidade. O “Rabótchaia Misl”
Criticando as posições e algumas frases dos redatores do jornal “Rabótchaia Misl” Lênin diz:
» (…) em vez de se exortar a marchar para a frente, a consolidar a organização revolucionária e a alargar a atividade política, incitou-se a voltar para trás , para a luta exclusivamente tradeunionista (grifo de Lênin)
» (…) isto era suprimir por completo a consciência pela espontaneidade,(…)
» Acompanhe com cuidado a discussão entre as duas tendências que se formaram na social-democracia russa.
» Assinale quais as frases do jornal “Rabótchaia Misl” criticadas por Lênin e analise seu conteúdo
Situando ” três circunstâncias que nos serão de grande utilidade para a análise das divergências atuais” (da época), Lênin aponta a força e a influência da ideologia burguesa sobre o movimento espontâneo:
» (…) tudo o que seja inclinar-se perante a espontaneidade do movimento operário, tudo o que seja diminuir o papel do “elemento consciente”, o papel da social-democracia, significa – independentemente da vontade de quem o faz – fortalecer a influência da ideologia burguesa sobre os operários (grifos de Lênin)
» Uma vez nem sequer se pode falar de uma ideologia independente elaborada pelas próprias massas operárias no decurso do seu movimento**, o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista.
» Veja que em nota de pé de página ** Lênin ressalva: “isto não significa, naturalmente, que os operários não participam nessa elaboração. Mas não participam como operários, participam como teóricos do socialismo (…) só participam no momento e na medida em que consigam dominar, em maior ou menor grau, a ciência de sua época e fazê-la progredir”.
» (…) na sociedade dilacerada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à margem das classes ou acima das classes.
» (…) tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela significa fortalecer a ideologia burguesa
» Mas por que razão (…) o movimento espontâneo, o movimento pela linha de menor resistência, conduz precisamente à supremacia da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga pela sua origem do que a ideologia socialista, de que está mais completamente elaborada e possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos.*
» Em nota de pé de página * Lênin acrescenta: “diz-se freqüentemente: a classe operária tende espontaneamente para o socialismo. Isto é perfeitamente justo no sentido de que a teoria socialista, com mais profundidade e exatidão do que qualquer outra, determina as causas dos males de que padece a classe operária e é precisamente por isso que os operários a assimilam com tanta facilidade, desde que esta teoria não retroceda ela mesma ante a espontaneidade, desde que submeta a si a espontaneidade”.
» Leia, com atenção, a longa citação de Kautsky sobre o surgimento da teoria socialista. Note que Lênin coloca-a justamente para responder àqueles que “se ajoelhavam perante a espontaneidade”, e não compreendiam que justamente a espontaneidade das massas exige dos socialistas “uma elevada consciência”.
» Observe que Lênin cita Kautsky para ressaltar o conteúdo político da gênese histórica da teoria socialista, não para significar um processo perpétuo de separação mecânica entre o que vem “de fora” – a teoria – e o que se constrói “de dentro” – o movimento espontâneo. Ao contrário, para Lênin, há uma relação dialética em constante desenvolvimento entre o espontâneo e o consciente, o que se percebe pela maneira como Lênin situa as divergências no seu contexto histórico, pelos exemplos citados, pelas ressalvas e notas.
» Note que permeia sempre em toda a elaboração de Lênin um elemento ativo, que nada tem a ver com qualquer atitude contemplativa da teoria “pairando” sobre a classe .
» Sobre a polêmica espontâneo/consciente e a gênese da teoria socialista leia também o artigo de Loreta Valadares, Qual Partido? In Princípios n.23, nov/dez/jan 91/92, página 27
Capítulo III – Política Trade-Unionista e Política Social-Democrata
Neste capítulo nota-se com muita ênfase o elemento ativo sempre presente em Lênin na formulação de conceitos e aspectos básicos para um programa de construção partidária, respondendo a questões concretas postas pela luta política e pelas condições históricas. Em síntese, Lênin:
» Demonstra a essência do conceito de economicismo
» Situa as diferenças entre luta econômica e luta política
» Caracteriza o conteúdo e o papel da agitação e da propaganda, estabelecendo seus diferentes níveis e alcance
» Define as bases da educação política revolucionária
» Explicita o conceito político de vanguarda
Alguns destaques do item III c) As Denúncias Políticas e a “Educação da Atividade Revolucionária” (trechos do texto)
» A consciência da classe operária não pode ser uma verdadeira consciência política se os operários não estão habituados a reagir contra todos os casos de arbitrariedade e opressão, de violências e abusos de toda espécie, quaisquer que sejam as classes afetadas (…)
» A consciência das massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não aprenderem, com base em fatos e acontecimentos políticos concretos e, além disso, necessariamente de atualidade, a observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida intelectual, moral e política.
» (…) estas denúncias políticas que abarcam todos os aspectos da vida são uma condição indispensável e fundamental para educar a atividade revolucionária das massas
» (…) não é muito inteligente dizer (…) que a tarefa dos sociais-democratas é imprimir à própria luta econômica um caráter político; isso não é mais do que um começo, não é a tarefa principal dos sociais-democratas, porque no mundo inteiro (…) é a própria polícia quem, muitas vezes, começa a imprimir à luta econômica um caráter político, e os próprios operários aprendem a compreender ao lado de quem está o governo.
» (…) a tarefa dos sociais democratas não se limita à agitação política no domínio econômico; a sua tarefa é transformar esta política tradeunionista em uma luta política social-democrata, aproveitar os vislumbres de consciência política que a luta econômica fez penetrar no espírito dos operários para elevar estes à consciência política social-democrata.
» O que distingue a luta econômica da luta política?
» Qual o alcance e o conteúdo da agitação e da propaganda?
» Qual a qualidade essencial da educação política revolucionária?
» A partir das respostas a estas questões e da leitura com atenção dos itens a), b) e c) deste capítulo você pode dizer qual o papel dos intelectuais no processo revolucionário?
Alguns destaques do item III e) A Classe Operária como Combatente de Vanguarda pela Democracia (trechos do texto)
» A luta econômica “leva” os operários a pensar unicamente nos problemas relacionados com a atitude do governo em relação à classe operária; por isso, por mais que nos esforcemos na tarefa de “imprimir à própria luta econômica um caráter político”, nunca poderemos, dentro dos limites de tal tarefa , desenvolver a consciência política dos operários (até o grau de consciência política social-democrata) porque esses próprios limites são estreitos.
» A consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é de fora da luta econômica, de fora da esfera das relações entre operários e patrões. A única esfera em que se pode obter estes conhecimentos é na esfera de todas as classes entre si.
» Para levar aos operários conhecimentos políticos , os sociais-democratas devem ir a todas as classes da população, devem enviar para toda a parte destacamentos do seu exército.
» Devemos “ir a todas as classes da população” como teóricos, como propagandistas, como agitadores e como organizadores.
» (…) não basta intitular-se “vanguarda”, destacamento avançado: é preciso proceder de modo a que todos os outros destacamentos vejam e sejam obrigados a reconhecer que marchamos à cabeça.
» Só o partido que organize campanhas de denúncias realmente dirigidas a todo o povo poderá tornar-se, nos nossos dias, vanguarda das forças revolucionárias.
» Para chegar a ser uma força política (…) é necessário trabalhar muito e obstinadamente para elevar o nosso grau de consciência , o nosso espírito de iniciativa e a nossa energia; para isso não basta colar o rótulo de “vanguarda” numa teoria e prática de retaguarda.
» (…) ampla agitação política multiforme (…) realizada por um partido que reúne, num todo indivisível, a ofensiva em nome de todo o povo contra o governo, a educação revolucionária do proletariado, salvaguardando ao mesmo tempo a independência política deste, a direção da luta econômica da classe operária e a utilização dos seus conflitos espontâneos com os seus exploradores, (…)
» Observe que o conceito de vanguarda é um conceito político e não se coloca acima da classe, nem significa ação do partido no lugar das massas (“substituísmo”, que é um risco real!)
Ø Sobre a discussão dos riscos do ” substituísmo”, pesquise sobre a polêmica entre Lênin e Rosa de Luxemburgo (veja indicações bibliográficas ao final das fichas)
» Relacione a concepção leninistas de partido de vanguarda com a distinção feita por Marx e Engels entre proletários e comunistas no Manifesto do Partido Comunista (capítulo II)
» O que Lênin quer dizer com “consciência política que vem de fora da esfera das relações entre patrões e operários?
» Recorde a discussão feita no capítulo I d) sobre o papel da luta teórica e compare os conceitos “teoria de vanguarda” e “partido combatente de vanguarda”.
Capítulo IV – O Trabalho Artesanal dos Economicistas e a Organização dos Revolucionários
Neste capítulo Lênin aprofunda a crítica às concepções estreitas dos economicistas não só no terreno da política, mas também no da organização. Aqui, partindo de condições históricas concretas, Lênin fornece as indicações básicas para a construção de um partido revolucionário de combate.
No item IV c) – A Organização de Operários e a Organização de Revolucionários, Lênin, situando as divergências com os economicistas quanto às tarefas de organização, apresenta as principais características que distinguem uma organização de operários (sindical, ou outra), de uma organização social-democrata (revolucionária, partido político revolucionário).
É também neste item que Lênin pinta em cores vivas as condições históricas da construção de formas organizativas clandestinas e coesas, em países autocráticos onde prevalece a repressão, ou de formas organizativas mais amplas e abertas, em países onde prevalece a liberdade política.
Aqui se encontra também a famosa discussão sobre “revolucionários profissionais”, complementada pelo item seguinte IV d)
Alguns destaques do item IV
» A luta política da social-democracia é muito mais ampla e mais complexa do que a luta econômica dos operários contra os patrões e o governo.
» (…) a organização de um partido social-democrata revolucionário deve ser, inevitavelmente, de um gênero diferente da organização de operários para a luta econômica.
» A seguir Lênin estabelece as características de uma organização operária, distintas das de uma organização revolucionária. Anote e faça você mesmo (a) o fichamento destas características.
» Nos países que gozam de liberdade política, a diferença entre a organização sindical e a organização política é perfeitamente clara (…) na Rússia, contudo, o jugo da autocracia apaga, à primeira vista, qualquer distinção entre a organização social-democrata e as associações operárias porque todas as associações operárias e todos os círculos estão proibidos, e a greve, principal manifestação da luta econômica dos operários, é considerada em geral como um crime de direito penal (por vezes mesmo como um delito político!)
» Para Lênin, estas condições políticas forjam os fundamentos indispensáveis para a construção de uma organização revolucionária, com um núcleo de revolucionários profissionais.
» (…) não pode haver movimento revolucionário sólido sem uma organização estável de dirigentes que assegure a continuidade (…)
» Note que Lênin não elimina o trabalho político amplo, nem propõe que a organização revolucionária substitua (“pense por todos”) o movimento. Aqui se situa também a discussão entre trabalho legal e clandestino.
» (…) A centralização das funções clandestinas da organização não implica (…) a centralização de todas as funções do movimento.
Alguns destaques do item IV e) Envergadura do Trabalho de Organização
» (…) nossa atenção deve voltar-se principalmente para elevar os operários ao nível dos revolucionários e não para descermos nós próprios infalivelmente ao nível da “massa operária”, como querem os “economicistas”.
» (…) o que me indigna é essa constante mistura de pedagogia com as questões políticas, com as questões de organização.
» (…) o reduzido alcance do trabalho de organização está (…) intimamente relacionado (…) com a redução do alcance de nossa teoria e das nossas tarefas políticas.
» Relacione os destaques acima com a observação que o nosso partido vem fazendo sobre o “descompasso político e ideológico/organizativo.
Não esqueça!
Embora situado no contexto da época de um país autocrático (a Rússia) e de uma acirrada luta ideológica contra o oportunismo político (os economicistas), Que Fazer? apresenta os elementos fundamentais e estabelece princípios gerais para a construção de um “partido de novo tipo”, marxista-leninista.
A teoria de partido elaborada por Lênin, cujos fundamentos se encontram em Que Fazer?, não é uma receita pronta a ser aplicada. O entendimento estático na concepção de partido levou a erros irreparáveis na construção dos partidos nas experiências socialistas derrotadas.
O último capítulo do Que Fazer? é dedicado à discussão de um plano de um jornal político – o Iskra – em torno do qual se unificaria o partido.
Reflita e discuta
Quais os elementos essenciais da teoria marxista-leninista de partido?
Quais as polêmicas atuais sobre a concepção de partido?
Na realidade do movimento sindical, hoje, como entender a relação entre o espontâneo e o consciente?
O que significa o “risco do substituismo”?
Qual o papel da imprensa partidária? Hoje, ainda cabem a agitação e a propaganda?
Não deixe de ler
Um Instrumento Político de Tipo Novo: O Partido Leninistas de Vanguarda, Monty Johnstone, in Hobsbawm, História do Marxismo, vol. 6, Editora Paz e Terra, RJ, 1988
Questões de Organização da Social Democracia Russa, Rosa Luxemburgo, in A Revolução Russa, Editora Vozes, Petrópolis, 1991
O Comunismo e o Estado, Luís Fernandes, in Princípios n.21, 1991
O Canto da Sereia de Um Partido para “Todos”, Rogério Lustosa, in Princípios n.19
Qual Partido?, Loreta Valadares, in Princípios, n.23, 1992
» Sobre a polêmica com Rosa Luxemburgo, há um texto de Lênin, no volume 7 das Obras Completas, edição traduzida da edição russa e ainda o texto Sobre o Folheto de Junius, in Obras Escogidas en Doce Tomos, tomo VI, Editorial Progreso, Moscú, 1976.
O Que Fazer? – Vladimir Lênin
Loreta Valadares
Escrito no início do século XX (1902), que significado poderá ter o Que Fazer?, hoje, justamente à entrada do novo milênio? Mais ainda, face à derrota de experiências socialistas iniciadas neste século que finda e à falência dos partidos que as dirigiram, pode-se ler o Que Fazer? com os olhos da atualidade? Incrível, mas é Lênin mesmo quem fornece os indicadores para responder a estas questões no Prefácio da Recompilação “Em Doze Anos” (recompilação de artigos de Lênin, publicada em 1908), quando diz que “o principal erro em que incorrem as pessoas que na atualidade polemizam com Que Fazer? consiste em que separam por completo este trabalho de determinadas condições históricas, de um período determinado do desenvolvimento de nosso partido (…)”. O livro representa, segundo Lênin, ainda no Prefácio de “Em Doze Anos”, “o resumo da tática e da política de organização do Iskra” para a unificação dos círculos e grupos isolados, quando a tendência predominante no movimento operário era o economicismo.
Que Fazer? é a síntese de uma intensa e apaixonada luta contra aqueles que defendiam a submissão ao espontaneísmo das massas e queriam confinar o movimento operário nos limites da luta econômica. Tem como alvo certeiro os que subestimavam a teoria e menosprezavam o papel do partido na elevação da consciência política das massas. “Corrige polemicamente o economicismo”, a “nota forçada dos economicistas”, daí a necessidade de acentuar o papel da organização de revolucionários profissionais, de dar ênfase à formação da consciência política ao exterior da luta econômica. Lênin considerava “rídiculas” as críticas que, anos após a publicação do Que Fazer?, eram feitas “ao exagero da idéia da organização de revolucionários profissionais”, porque estavam fora do período histórico da construção do partido. Quanto à relação espontâneo/consciente, Lênin recusou a manobra de Plekhánov que, usando frases soltas, fora do contexto, queria retomar a polêmica em termos filosóficos, (relação ser/consciência), quando o tratamento dado em Que Fazer ? é político-ideológico.
É, portanto, no próprio Que Fazer? que está indicada a necessidade de sua leitura política. Fazê-lo, sob a ótica da historiografia política significa não somente retrazer velhas polêmicas, mas com elas polemizar nas novas condições históricas. Significa retomar a análise dos problemas centrais da concepção de partido, libertar a teoria leninistas de partido do confinamento a que ficou reduzida, tendo presente que as questões relativas ao partido devem ser entendidas em seu desenvolvimento dialético e que a teoria de partido precisa estar em permanente elaboração.
Foi a compreensão rígida e absolutista das teses de Que Fazer? e alguns outros trabalhos de Lênin que levaram ao engessamento da concepção de partido nas experiências socialistas, que sequer levaram em conta que no conjunto de sua obra sobre a teoria de partido, Lênin alternadamente favoreceu, de acordo com as condições históricas de países diferentes, ou um partido conspirativo de quadros ou um grande partido democrático de massas, conforme assinala Monty Johnstone . Assim, em Lênin não há apenas um modelo rígido de partido.
Predominou sempre em Lênin (e isto perpassa todo o conteúdo do Que Fazer?) a febril presença de um elemento ativo no processo de elaboração da teoria de partido, que revela estreita relação entre teoria e prática na construção do partido. É por isso que não se pode ver a teoria leninistas de partido apenas como um sistema de normas organizativas, prontas a serem aplicadas. Porque elaborada ao calor das lutas ideológicas e levando em conta as avaliações políticas concretas, a concepção leninistas de partido faz emergir conceitos e princípios que fundamentam uma política de construção de partido ainda hoje insuperáveis.
Em Que Fazer? vamos encontrar estes fundamentos, de caráter político-ideológico (mais tarde Lênin irá trabalhar sobre os princípios organizativos em Um Passo Adiante, Dois Atrás), que revelam o caráter de classe do partido e sua oposição a toda e qualquer forma de oportunismo. Tais fundamentos são: o conceito político de vanguarda e a idéia da fusão da teoria socialista com o movimento espontâneo da classe operária (em matéria de organização, Lênin mais tarde irá desenvolver a dialética centralismo-democracia). São estes os fundamentos sobre os quais se pode assentar uma política de construção de partido, alheia a qualquer tipo de concepção fatalista – ao avanço da classe corresponde necessariamente o fortalecimento do partido – ou dogmática – o partido se constrói a partir de regras orgânicas pré-fixadas, independentemente das condições históricas e políticas.
Nem dogmatismo, nem fatalismo em Que Fazer? Foi sua leitura dogmática e não política que levou a distorções na concepção de partido ao longo do movimento comunista internacional. Pois foi justamente contra a ossificação dogmática que Lênin dirigiu suas últimas idéias em Que Fazer? Após escrever “é preciso sonhar”, Lênin logo diz que se assustou imaginando uma situação no “congresso de unificação” em que alguns camaradas poderiam questionar o direito de sonhar “sem prévia autorização dos comitês do partido” ou se “algum marxista teria o direito de sonhar”, já que “segundo Marx a humanidade sempre pôs perante si tarefas realizáveis”… Lênin diz que só de pensar nestas perguntas pensa logo em se esconder. E se esconde atrás de Píssarev (crítico literário e filósofo materialista russo) que elabora aquela conhecida idéia sobre a relação entre sonho e realidade: “…o desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo, sempre que a pessoa que sonhe acredite seriamente no seu sonho, observe atentamente a vida, compare as suas observações com os seus castelos no ar e, de uma maneira geral, trabalhe escrupulosamente para a realização de suas fantasias. Quando existe um contato entre o sonho e a vida, tudo vai bem”.
Hoje, como ontem, a questão de partido continua sendo chave na luta contra a burguesia mundial. É certo que o partido hoje necessita dar novas e avançadas respostas aos novos e grandiosos problemas postos pelas condições históricas de um mundo globalizado e neoliberal. Não pode ter, certamente, as mesmas feições do partido do tempo de Lênin, mas colocando-se a questão de partido no bojo da luta contra o neoliberalismo, e baseado em princípios, podemos sonhar com “um partido marxista-leninista, de feição moderna, capaz de realizar a grande política destinada a mudar os rumos do país”.