Austeridade fiscal: as novas armas de destruição em massa
Comecemos pelos fatos. Quase todo o déficit deste ano e os déficits que se projetam para o curto e médio prazo é resultado de três coisas: as guerras em curso no Afeganistão e no Iraque, os cortes de impostos de Bush e a recessão. A solução para nossa situação fiscal é: terminar com as guerras, deixar que expire o prazo dos cortes de impostos e restaurar um crescimento robusto.
Nossos déficits estruturais no longo prazo exigem que sejamos capazes de controlar a inflação na assistência de saúde do mesmo modo que o fazem os países com sistemas de saúde com cobertura universal.
Agora mesmo enfrentamos uma crise de desemprego que ameaça nos mergulhar em um grave e longo período de baixo crescimento, uma espécie de década perdida que causará uma tremenda miséria, degradará o capital humano da nação, desbaratará a todo uma geração de jovens trabalhadores durante anos e abrirá um rombo no balanço contábil do Estado. O melhor para sair deste cenário é mais gasto público para tutelar o regresso da economia a um caminho saudável. Pode ser que a economia esteja viva, mas isso não significa que esteja sã. Há razões para seguir tomando antibióticos no momento em que começamos a nos sentir bem.
No entanto, o tamborilar filisteu de pânico dos histéricos do déficit torna-se a cada dia mais ensurdecedor. A julgar por seu programa e seu vídeo on-line, o Festival Aspen das Idéias deste ano foi uma orgia ao ar livre de discursos anti-déficit. O Festival é uma boa janela para observar as preocupações da elite. O fato que seu forum de abertura estivesse saturado pelos abomináveis alertas sobre a quebra vindoura pronunciados por pessoas como Niall Ferguson, Mort Zuckerman e David Gergen é um mau augúrio. Do mesmo modo o painel intitulado “A inquietante emergência fiscal na América: como equilibrar as contas”. Essa atitude não é exclusiva dos colunistas e dos tertulianos midiáticos. Os dirigentes da comissão fiscal de Obama qualificaram de “câncer” os déficits públicos projetados.
A histeria chegou a tal extremo que os senadores republicanos (aos quais se juntou o senador democrata por Nebraska, Ben Nelson) praticaram obstrução parlamentar contra um projeto de extensão das ajudas ao desemprego porque ele não vinha acompanhado de cortes do gasto público. Recorde-se que o custo desta extensão de auxílio para pessoas suficientemente desgraçadas de modo a ser verem apanhadas entre as garras da pior recessão dos últimos 30 anos era de 35 bilhões de dólares. A lei contribuiria para aumentar a dívida em menos de 0,3%.
Tudo isso resulta estridentemente familiar. A atual deliberação – se assim pode ser chamada – sobre os défcitis traz à memória a deliberação nacional sobre a guerra às vésperas da invasão do Iraque. De um dia para o outro, o que outrora fora considerado tolerável pelo establihsment tornou-se subitamente intolerável: uma crise de urgência tão peremptória que exigia das “pessoas sérias” a fabricação imediata de idéias capazes de lidar com ela. O encargo da prova das pessoas que apoiavam a guerra para as pessoas que se opunham a ela, e passou também toda a possibilidade de argumentação.
Agora somos colocados na mesma situação em relação à dívida pública. Em meio a um desemprego oficialmente reconhecido de 9,5% e de uma contração global da economia, a última coisa sobre a qual deveríamos estar falando é de déficits no curto prazo. No entanto, no presente, o bilhete de entrada do clube da “gente séria” exige, não um plano para reduzir o desemprego, mas sim um plano para travar uma guerra sem quartel contra os insivíveis e até agora incorpóreos traficantes de dívida pública que estariam preparando um ataque contra o dólar.
Talvez o aspecto mais famoso do modo pelo qual nos foi vendida a Guerra do Iraque foi a falsidade de seu pretexto. Realmente, nunca houve armas de destruição de massa, conforme acabou por admitir o próprio Paul Wolfowitz. As armas de destruição de massa eram apenas “algo sobre o que o todo mundo concordava”.
E assim ocorre agora também com os déficits públicos. Os conservadores e seus aliados lidam sem cuidado com os déficits; o que importa a eles é a austeridade: desmontar o Estado democrático e social de direito e redistribuir a riqueza entre os de cima. Esse é o objetivo. Os déficits só são “algo sobre o que todo mundo concorda”, as armas de destruição de massa desta crise fabricada. O senador John Kyl, do Arizona, em declarações à cadeia (de ultra-direita) Fox News, chegou ao ponto de admiti-lo abertamente. É preciso evitar qualquer aumento de gasto, disse, “mas nunca deveria se evitar o custo de uma decisão deliberada de reduzir os impostos para os estadunidenses”.
Lembre-se que a Guerra do Iraque poderia ter sido evitada e mais congressistas democratas tivessem se oposto a ela. Em troca, votaram a favor muitos que sabiam plenamente que estava sendo gestado um colossal desastre alimentado pelas pressões ultradireitistas e pelos falcões midiáticos.
O erro se repete agora, Apesar de os economistas da Casa Branca terem acordo sobre a necessidade dos estímulos públicos diante de um desemprego astronomicamente elevado, o New York Times nos informa que os os cérebros políticos da Casa Branca – David Axelrod e Rahm Emanuel – decidiram que a opinião pública perdeu o apetite pelo aumento do gasto público. “Meu trabalho consiste em informar o humor público”, disse Axelrod. Logo em seguida apareceu no “This Week”, programa da cadeia ABC, para acenar a bandeira branca e declarar que o presidente seguiria pressionando em favor da ampliação dos auxílios para o desemprego; sintomaticamente, omitiu-se qualquer menção às ajudas aos governos dos estados federados, originalmente incluídos na carta dirigida em junho passado pelo presidente ao Congresso solicitando um pacote de estímulos.
Mas não devemos perder a esperança: a opinião pública anda muito longe de estar obcecada com o déficit público; está muito longe, portanto, dos humores de Washington. Segundo uma pesquisa conjunta do jornal USA Today e do instituto Gallup, cerca de 60% dos estadunidenses apóiam “um maior gasto público para criar emprego e estimular a economia”, contra 38% que se opõe a isso. Uma pesquisa realizada por Hart Research Associates, publicada em junho passado, mostrava que dois terços dos norte-americanos estavam a favor da ajuda pública aos desempregados. Assim, se há “pouco apetite” é para uma contra-reforma que corte direitos sociais e atinja a Seguridade Social. A lição da Guerra do Iraque é que, no longo prazo, a boa política não pode se separar das boas políticas públicas. Se a Casa Branca sente-se tentada a desenvolver más políticas de curto prazo porque isso parece menos arriscado politicamente, deveria telefonar para John Kerry e perguntar se isso funcionou como Iraque,
(*) Christopher Hayes, analista e crítico cultural norteamericano, editor em Washington da revista The Nation.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior