A crise da classe média americana
O jornal “Financial Times” publicou, no fim de semana, uma extensa reportagem sobre a crise da classe média americana. A matéria de Edward Luce, chefe da sucursal do FT em Washington, relata as agruras da família de Mark Freeman, ameaçado de perder a casa por inadimplemento de três prestações e obrigado a pagar mais caro pelo plano de saúde. Esses percalços familiares acontecem em meio à deterioração da vizinhança, devastada por residências abandonadas, pela invasão de traficantes e pela constância de tiroteios entre bandos criminosos. A família Freeman, mãe e pai, faturam US$ 70 mil por ano, uma renda 30% superior à média das famílias americanas.
Edward Luce adverte que a crise da classe média americana não é fruto da Grande Recessão, iniciada em 2007, mas é um fenômeno de longo prazo. Desde 1973 até 2010, o rendimento de 90% das famílias americanas cresceu apenas 10% em termos reais, enquanto os ganhos dos situados na faixa dos super-ricos – a turma do 1% superior – triplicou. Pior ainda: a cada ciclo a recuperação do emprego é mais lenta e, portanto, maior é a pressão sobre os rendimentos dos assalariados. Até meados dos anos 70, é bom relembrar, o crescimento econômico foi acompanhado do aumento dos salários reais, da redução das diferenças entre os rendimentos do capital e do trabalho e de uma maior igualdade dentro da escala de salários. Em artigo publicado na revista “Science & Society” de julho de 2010, o economista Edward Wolff sustenta que a evolução miserável dos rendimentos das famílias americanas de classe média foi determinado pelo desempenho ainda mais deplorável dos salários. Entre 1973 e 2007 os salários reais por hora de trabalho caíram 4,4%, enquanto no período 1947-1973 o salário horário cresceu 75%. A despeito da queda dos salários, durante algum tempo, a renda familiar foi sustentada pelo ingresso das mulheres casadas na força de trabalho. Entre 1970 e 1988 elas aumentaram sua participação de 41% para 57%. A partir de 1989, no entanto, o ritmo caiu vertigiosamente.
Nos anos 90, americanos e europeus travaram uma acirrada disputa em torno das qualidades dos seus “modelos” de economia e de sociedade. Os americanos, apoiados por um incrível aparato de propaganda, divulgam as maravilhas do “american way”: estavam crescendo mais rápido do que seus competidores e criando muito mais empregos. Enquanto os europeus amargam taxas de desemprego que chegam a 12%, calculada sobre a população em idade de trabalhar, Tio Sam podia orgulhosamente exibir ao mundo apenas 5% de desocupados. O desempenho ianque foi, de fato, impressionante, se avaliado pelos modestos padrões das duas últimas décadas. No entanto, se essas façanhas fossem comparadas com os anos gloriosos do imediato pós guerra – as décadas dos 50 e dos 60 – o sucesso de ontem seria o fracasso de anteontem.
Em seu livro “A Consciência de um Liberal”, Paul Krugman apelidou o período que vai dos anos 30 ao início da década dos 50 de “A Grande Compressão”. A despeito da precariedade dos dados, as estimativas de Simon Kuznetz ajudaram Krugman a concluir que a “grande compressão” envolveu não só o crescimento mais rápido dos rendimentos das categorias sociais situadas na base da pirâmide, como decorreu também do “empobrecimento” das camadas superiores. Esses dois movimentos foram sustentados por três forças, na opinião de Krugman: de baixo para cima, a sindicalização incentivada por Roosevelt impulsionou a elevação dos salários reais e, ao mesmo tempo, o Social Security Act de 1935 passou a proteger os mais débeis “dos sérios problemas criados pela insegurança econômica na sociedade industrial”; de cima para baixo, a brutal elevação da carga tributária e o caráter progressivo dos impostos surrupiaram a renda dos mais ricos; finalmente, a baixa intensidade da concorrência externa permitiu às empresas americanas abiscoitar os lucros proporcionados pela sustentação da demanda interna.
A arquitetura capitalista desenhada nos anos 30 sobreviveu no pós-guerra e, durante um bom tempo, ensejou a convivência entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais. Entre 1947 e 1973, na era do Big Government, como a denominou o economista keynesiano Hyman Minsky, o rendimento real da família americana típica praticamente dobrou. O sonho durou trinta anos e, no clima da Guerra Fria, as classes trabalhadoras gozaram de uma prosperidade sem precedentes.
Nessa época de vacas magras para o emprego e para os rendimentos, os lucros foram gordos para os especuladores financeiros e para as empresas empenhadas no outsourcing e na “deslocalização” das atividades para as regiões de salários “competitivos”. Robert Kuttner escreveu no New York Times que Obama e seus economistas salvaram Wall Street da derrocada financeira, mas não responderam às preocupações manifestadas nas pesquisa de opinião pelos americanos atormentados, em sua maioria, pelas perspectivas de um crescimento pífio do emprego e dos salários. O superconservadorismo do Tea Party se apropria de uma parte do descontentamento popular, faz muito barulho, mas não consegue oferecer aos cidadãos americanos soluções críveis para atenuar as desgraças da anomia social e da destruição dos nexos básicos da sociabilidade, inclusive os familiares.
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Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Fonte: jornal Valor Econômico