Contando a chuva
Houvesse tempestade de verão, estava lá com as fuças coladas à vidraça para acompanhar a enxurrada. Uma ansiedade dos sentidos. Quando o cheiro de terra evapora, invadindo as narinas, tudo [por dentro] e no mundo se agita e se prepara para a fuga. Esse primeiro cheiro passa rápido, apenas prenúncio das águas mas, quando os pingos começam espaçados a despencar, o povo na rua passa correndo no vão entre eles, para chegar mais seco. Nunca soube porque se deduz que correr da chuva nos molha menos.
Mas, como a raridade dos pingos também é breve, e se a tempestade for daquelas que honram o nome, eles se intensificam em tal monta que o cheiro e as cores mudam. Eles deixam de ser pingos, em grande quantidade mudam de qualidade e viram outra coisa, soldados disciplinadamente em marcha ou obra de arte feita de água. Simetricamente projetados em flechas eles respingam círculos milimetricamente calculados, depois escorrem no preto asfalto em prata, refletem os raios que iluminam medos ancestrais.
Na vidraça, o vapor da boca rabisca primeiro o próprio nome, depois um beijo que esculpe a boca, e corações da largura de um dedo, outros nomes, suspiros e outros sonhos. Uma verdadeira literatura de janela. É só baforar novamente que as palavras se revelam. A vidraça retém calor e pensamentos, aqueles que se perdem na chuva.
Dobrar barquinhos na folha pautada [praxe] arrancada às pressas do caderno de escola [sempre aberto na hora da chuva] e soltá-los rio abaixo no leito caudaloso da sarjeta, torcendo para resistir e chegar nalgum destino, com a tripulação sã e salva, decerto apavorada.
A barulheira que vem de cima assusta. Recomendações de Vó: cobrir o espelho e guardar a tesoura. Um mistério que a gente não lembra de revelar depois da chuva e que permanece entre as gerações. E quando o ar exala seu maior frescor é que tudo se ameniza. Passa a excitação do movimento intenso e infinito em ciclos, nas vidraças e nas lembranças da infância.
Professora