Porque houve futebol
O artista plástico Emanoel Araujo sorri, em meio às instalações do paulistano Museu Afro Brasil, do qual é diretor, ao se lembrar de recente declaração do jogador da Seleção Brasileira de futebol Luís Fabiano sobre a bola da Copa do Mundo de 2010. “Ela é sobrenatural”, afirmou o atacante do time de Dunga durante uma coletiva de imprensa sul-africana, inconformado com a rebeldia do objeto na hora do chute. Para Emanoel Araujo, profundo conhecedor da arte afro-brasileira, ele próprio doador de 2 mil das mais de 5 mil obras pertencentes ao museu, criado há seis anos, atribuir à agora mundialmente famosa bola Jabulani um traço místico não poderia ser mais apropriado a este contexto futebolístico. No continente, que pela primeira vez recebe o maior torneio esportivo do planeta, Luís Fabiano ousou evocar uma de suas marcas culturais.
Isso porque aos africanos associam-se crenças ancestrais de magia. E porque ao esporte dos pés, no passado, trovadores e contistas ligaram encantamentos. Veja-se Sobrenatural de Almeida. Era ele um dos mais divertidos personagens das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, capaz de encaminhar o jogo a rumos imprevisíveis, quando tudo indicava que a peleja se resolveria por um fastidioso caminho. O saber de um jogador pode transcorrer as fronteiras do comum. Com esta declaração, Luís Fabiano adiciona à sua personalidade esportiva pelo menos um traço excepcional.
E, além do mais, é negro esse jogador como a maioria dos homens de linha que transformaram o futebol em uma dança de superação. O curador Emanoel Araujo os vê grandes e revolucionários na exposição De Arthur Friedenreich a Edson Arantes do Nascimento – O negro no futebol brasileiro, que ocorre entre 19 de junho e 29 de agosto no Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera paulistano. O Arthur Friedenreich (1892-1969) do título, que fora objeto de uma exposição organizada por ele em 1992, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, junto ao pintor Antonio Gomide, era filho de lavadeira negra com comerciante alemão. O cabelo alisado indicava a necessidade de aplainar sua negritude para ser bem-vindo ao mundo do esporte, nos anos 20 tão branco quanto aquele inglês Charles Miller que o trouxe ao Brasil, em 1894.
A exposição termina em Pelé porque, maior de todos, ele jamais negou ser negro, como afirma o curador. E talvez tenha exercido por toda a carreira qualidades africanas, igualmente sobrenaturais. Em uma entrevista televisiva recente, por exemplo, Coutinho, jogador do Santos nos anos 60, afirmou que Pelé não só jogava excepcionalmente, como se via capaz de adivinhar. Um dia, olhou para Coutinho na hora de o adversário cobrar o pênalti e calculou não só que a bola bateria na trave, mas explodiria na arquibancada, em determinada direção, o que de fato ocorreu.
“Esta exposição quer celebrar os jogadores negros, mais do que o futebol”, afirma Emanoel Araujo, torcedor do mesmo Santos, time paulista que por pouco, em seu início, 1912, não se chamou África Futebol Clube. “A exposição é também uma maneira de comentar essa ambiguidade que sempre seguiu o jogador negro, às vezes autorizado, às vezes não, a frequentar aquela irmandade branca.” Na mostra, além de peças da memória, como o jogo de caixinhas de fósforo nas quais estão impressos os rostos dos jogadores da primeira Seleção Brasileira campeã, a de 1958, destacam-se as fotos de época e as caricaturas que fizeram os ilustradores Miécio Caffé e Borges, este funcionário da antiga Gazeta Esportiva, de jogadores como Leônidas da Silva, o Diamante Negro, gênio da bicicleta, raro bem-sucedido futebolista de seu tempo.
Todos os eleitos a integrar o museu -inventaram alguma coisa no esporte, e estão ali porque, dentro dele, talvez tenham sido os últimos, justamente, a promover invenções. Didi, que criou o chute folha seca, foi um “príncipe etíope de rancho”, segundo o viu Nelson Rodrigues em seu A Pátria em Chuteiras – e na palavra “rancho”, Araujo anota, mais uma vez sorridente, um “arremate preconceituoso” do grande cronista. Há Barbosa, o goleiro elegante, para sempre estigmatizado por não impedir o gol que tirou do Brasil a taça de 1950, aqui concedida aos uruguaios. Garrincha era o craque das pernas tortas, estranhamente perfeitas para o drible. Domingos da Guia, zagueiro de extrema habilidade. Canhoteiro, mais um mágico de truques de cartola. Coutinho, craque absoluto, parceiro de quem era maior. E a Pelé, por suas qualidades sobrenaturais, Nelson Rodrigues pela primeira vez intitulou Rei.
A mostra, como todas naquele museu, quer, como diz Emanoel Araujo, estabelecer a aceitação da população negra para com sua própria origem. Ronaldo ou Neymar podem hoje não se ver como negros, mas esta é outra história, que remete àquela do jogador brasileiro que declarou um dia ter sido preto, mas naquela longínqua atualidade, não mais. O orgulho negro, neste caso, é o de ter adicionado ao esporte uma grandeza que, no início, não entrava em times como o Fluminense, mas tinha lugar em opositores como o Vasco.
“Não se tratava de só querer branco legítimo”, escreve Mário Filho (1908-1966), o irmão de Nelson que deu título ao Maracanã, no clássico estudo O Negro no Futebol Brasileiro. “Ninguém no Fluminense pensava em termos de cor, de raça. Se Joaquim Prado, winger-left do Paulistano, quer dizer, extrema-esquerda, preto, do ramo preto da família Prado, se transferisse para o Rio, seria recebido de braços abertos no Fluminense. Joaquim Prado era preto, mas de família ilustre, rico, vivia nas melhores rodas.”
Quando leu, entre outros, esse livro para compor sua mostra, Emanoel Araujo correu atrás dos vestígios do paulistano Joaquim Prado e não os encontrou. Mário Filho assim o descreve: “Um verdadeiro lord. Vestia-se bem, admiravelmente bem. Nada de cores berrantes, nem mesmo o contraste do branco e preto, tão do agrado do homem de cor. O cinza, o preto, o azul-marinho. De noite, sempre de preto, de smoking. Só jantava, só ia a um teatro, assim, de smoking”. Prado deve ter tido a mãe negra. Prado deve ter existido, como os cenários insuspeitos do futebol brasileiro de início.
Friedenreich, apelidado El Tigre, vivia em um estranho mundo no qual o esporte “prolongava aquele momento delicioso de depois da missa”, conforme anota Mário Filho. “As moças, mais bonitas ainda, tinham ido em casa, demorando-se diante do espelho, ajeitando o cabelo penteado para cima, encacheado. Na arquibancada, sentadas, abrindo e fechando os leques, sérias, sorridentes, quietas, nervosas, como que ficavam em exposição.” Friedenreich talvez se visse diante delas, daí também a necessidade de alisar os cabelos penosamente e arrumá-los no intervalo. Quando entravam em campo, conta Mário Filho, todos os jogadores corriam para o lugar mais cheio de chapéus na arquibancada, “chapéus enormes, pesados, mas que pareciam leves, muitas flores, frutas, plumas”. No futebol, esse esporte “extraordinariamente livre”, como o vê Emanoel Araujo, Friedenreich, ao alisar o cabelo, exerceu uma função social esperada. Ele quis subir de vida e, para fazê-lo, precisou amainar os traços da cor.
A contradição é que o brasileiro nascido escravo foi o responsável por transformar o futebol em coisa apaixonante e lucrativa, incessante, para o gosto de Emanoel, em todas as televisões. O negro elevou-o a esporte com a força e a arte da capoeira, uma dança de defesa. Mas demorou demais a ser aceito. O curador associa essa lentidão ao estigma associado ao trabalho no Brasil. Quem trabalhava duro, até o fim do século XIX, era só o escravo. Com o tempo, trabalhar pelo futebol significou o mesmo que nada ser, como um cativo. A participação do negro no futebol foi uma “grande vitória”, diz o diretor do Museu Afro Brasil, uma conquista lentamente assimilada.
Não por ser santista, que ele nem se vê como um torcedor fanático, mas Emanoel Araujo aponta no máximo jogador de seu clube de eleição um fato consumado, no qual o grande futebol teve seu ápice modelar. Ele apresenta, de Pelé, a medalha comemorativa de sua última partida, uma caixa contendo e certificando uma de suas pegadas, estatuetas de bronze comemorativas do tricampeonato de 1970, um boneco cor cinza de plástico vendido à época com o mesmo intuito comemorativo.
Até que se abra a exposição, ainda sem patrocínio, a artista plástica Pinky Wainer, filha do diretor do jornal Última Hora, Samuel Wainer, deve presenteá-lo com mais objetos relativos a Pelé antigamente em poder de seu pai. O ex-jogador não objetou ajudar nesta exposição. Mas a família de Garrincha e o atacante Jairzinho impuseram condições para a reprodução das imagens futebolísticas que Emanoel Araujo não poderia seguir. Ele espera que Djalma Santos e a viúva de Leônidas, Albertina Santos, prestigiem a abertura.
É para ser um momento de celebração. Um gol, já que raramente se colocou o negro no futebol brasileiro naquele lugar memorável dos museus. Naturalmente, Mário Filho o fez no texto do livro homônimo. Ele termina sua grande pesquisa, que teve algumas edições depois da original, de 1947, com Pelé. Disse o pesquisador que o jogador foi o primeiro a fazer questão de ser preto, quando outros antes dele, de cabelo alisado, só admitiam ser índios (“O futebol brasileiro conheceu muitos índios”, escreveu). E que a atitude simples e certeira do maior jogador inspirou outros brasileiros a assumirem sua negritude. “É a maneira mais fácil de exaltarem a própria cor. Olhando-se no espelho de Pelé”, escreve Mário Filho. “Se Pelé é preto, pode-se ser preto. Quem é preto deve ser preto.”
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Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de CartaCapital . Autora do livro O Sonho Intacto – Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis
Fonte: revista CartaCapital