Euclides Neto, imortal
Sei, bem sei, que num País como o nosso, talentos e pessoas como ele, situados na periferia Bahia, não são tão conhecidas. Lembro-me de Osório Alves de Castro, extraordinário romancista das beiradas do Rio Corrente, também na Bahia, elogiado por Guimarães Rosa, e cujas referências são raras. Não importa. Quero falar de Euclides Neto, que foi também um precursor da reforma agrária, um missionário dedicado à distribuição da terra. Quem sabe contribua para torná-lo mais conhecido, para honrar a memória de um homem singular, cuja passagem pelo mundo deixou marcas profundas.
Peço licença à dona Angélia, a quem ele noivava diariamente, como ele próprio dizia, às suas filhas Angélia e Denise, e a Patrício, Spartacus e Marcelo, seus filhos. Sobre essa quina de filhos, dizia, injustamente, ter dado mais trabalho a eles “do que eles a mim”. Peço licença a todos eles pra falar do marido e do pai, que a gente não tem direito de entrar na vida de uma família sem pedir autorização.
Estive com Marcelo e Spartacus no dia 23 de julho deste ano, em Ipiaú, cidade natal de Euclides Neto, de onde foi prefeito, e onde desenvolveu a Fazenda do Povo, notável experiência de reforma agrária no âmbito municipal. E por azar, era prefeito em 1964, e, sendo prefeito comunista, foi preso e alvo de um inquérito policial-militar, como acontecia naqueles idos do golpe. Estive com eles ao lado do ex-governador Waldir Pires, meu amigo, e amigo de Euclides desde a juventude. Nós dois fomos convidados pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus de Ipiaú, para encerrar o seminário Euclides Neto, o homem, o político e o escritor da terra.
À mesa do seminário, o diretor do Campus de Ipiaú, Otávio de Jesus Assis, entusiasmado admirador de Euclides, e o coordenador do encontro, professor Vitor Hugo Fernandes Martins, poeta, cronista e contista, um carioca que também ficou deslumbrado com a personalidade e a obra de Euclides. Minha convivência com Euclides não chegou nem perto da vivida por Waldir, que o conheceu e com ele conviveu desde os tempos de estudante, os dois da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. A separá-los durante algum tempo apenas a ditadura do proletariado: Euclides vinculou-se muito cedo ao PCB. Waldir, desde cedo também, recusava a idéia da ditadura do proletariado, e pensava, como pensa, que os métodos democráticos é que deviam dar lastro às mudanças da humanidade. A democracia nunca podia ser deixada de lado. Democracia que ele acredita ainda não conquistada na plenitude. Waldir sempre esteve ao lado dos comunistas, nunca se filiou ao PCB.
Euclides escreveu muito. Gostava do romance. Seus romances giravam em torno da relação do homem com a terra, as contradições do campo, o latifúndio, a violência agrária. O seminário da UNEB debruçou-se sobre o tema por três dias. Não trato disso aqui. São outros os meus caminhos. Durante anos, Euclides advogou no interior da Bahia para os trabalhadores. O escritório sempre foi em Ipiaú.
Foi secretário de Reforma Agrária do governo Waldir Pires, que se iniciou em 1987. Conversava muito com ele sobre a experiência, inclusive no decorrer dela. Não era fácil ser secretário de Reforma Agrária numa terra com tão acirradas disputas pela terra, num Estado onde o coronelismo ainda tinha força. Os setores conservadores também tinham presença no governo Waldir, como têm hoje, ainda, no governo Lula. E muitas vezes se irritavam com Euclides, que não variava: estava sempre ao lado dos trabalhadores. Eu era deputado, defensor dele e de Waldir.
E como fazer diante da raiva dos conservadores – e digo da raiva especialmente dos conservadores que compunham a dita base aliada? Ele pensou, pensou, e me respondeu: tem que alisar o lombo do burro. Senão, ele pula, corcoveia, solta coices. Se você alisa o lombo, ele se acalma, e nós vamos levando o barco. Sabedoria. Um sábio – sempre preferi defini-lo assim. Esparramava sabedoria.
Numa ocasião, os trabalhadores sem-terra invadiram a Secretaria de Reforma Agrária. E mandaram dizer que uma comissão queria falar com o secretário. Euclides mandou a resposta: não aceito comissão. Como não? Os trabalhadores se indignaram. Subam todos para o meu gabinete, nada de comissão, disse o secretário. Subiram.
O diálogo se desenvolveu por horas. Euclides gostava de uma prosa. Lá pelas tantas da noite, começou a arrumar as gavetas, e avisou a todos que ia pra casa. Como? Os trabalhadores não entendiam. E o senhor vai nos deixar aqui sozinhos? Claro, respondeu Euclides. A casa é de vocês. Amanhã, tenho certeza, tudo estará no lugar. Foi. Dormiu o sono dos justos. E no dia seguinte, a secretaria estava como ele previra. Coragem e sabedoria.
Curioso é o resultado do Inquérito Policial Militar a que foi submetido nos idos de 64. A decisão foi pelo arquivamento. “Não há nestes autos nenhum fato que realmente possa autorizar a instauração da ação penal”. E vai além:
“O que se nota são tricas e futricas, oriundas de interesses contrariados. São os eternos “pescadores de águas turvas”, a quererem se aproveitar da Revolução para usufruir vantagens e promover vinganças contra seus desafetos”.
É, eles chamavam aquele golpe de “revolução”. Foram várias as pessoas indiciadas. Quanto a Euclides, a evidenciar a autoridade moral dele, o inquérito que, justiça seja feita, deve ter sido feito com seriedade, mesmo que o golpe não fosse sério, porque golpe, o inquérito conclui não existir nada que o incrimine, ao contrário. Merece citação um pouco mais extensa:
“É mesmo de se admirar que haja uma cidade do interior do Brasil, onde, em geral, a política é acirrada, em que se veja, num momento conturbado da vida nacional, unirem-se os cidadãos mais responsáveis, representando as forças políticas sem distinção de partido, as classes liberais, os Clubes de Serviço (Rotary e Lions Clube, para darem o seu testemunho em favor do administrador inteligente e probo que tudo tem feito pelo progresso de sua Comuna, restando contra ele apenas vozes isoladas de todo destituídas de qualquer valor”.
Euclides sabia como ter posições firmes, que beiravam aparentemente à intransigência, sem nunca perder a educação, a ternura, a delicadeza. Sempre alisava o lombo do burro, como dizia. Sabia conviver com a diversidade, respeitava os adversários, convivia com os contrários com facilidade. Sabia ser hegemônico. Tinha autoridade moral. Isso, provavelmente, é que fez com que os que conduziram o inquérito concluíssem pelo absurdo das acusações que faziam contra ele.
Ele me lembra Manoel de Barros, o poeta. Sua profissão era a de criador de cabras, como se autodefinia num criativo currículo. Sua comida preferida era feijão com jabá, bucho de bode e farinha de pancaré. Pintura, a das crianças reproduzindo casinhas, bichos e árvores, antes de pensar que são pintores. Perfume, sabão de coco e terra molhada no cio, depois das chuvas-trovoadas. Medo, tinha: de perder a coragem de dizer o que pensava e fazia. Tinha inveja dos que tiveram a coragem de cometer os pecados que os hipócritas condenam. E seus gurus eram o tropeiro Dário, Ghandi, Tolstoi, Marx, Cristo e o dr. Rodolfo Teixeira, um respeitado médico baiano. Um homem assim não morre nunca. Viva Euclides Neto!
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Jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br
Fonte: revista CartaCapital