A iniciativa dos EUA impõe desafios políticos à Rússia, que é uma das 56 nações-membros da OSCE, e à China, que não é. Os veículos de segurança pilotados por cada uma das duas respectivas potências regionais – a Organização do Tratado de Segurança Coletiva [ing. Collective Security Treaty Organization (CSTO)] e a Organização de Cooperação de Xangai [ing. Shanghai Cooperation Organization (SCO) – são pilotadas pelas potências regionais, mas são regidas, de fato, pelos EUA.

Apesar disso, aparecida em momento em que a crise no Quirguistão só faz aprofundar-se e aproxima-se o fim do jogo no Afeganistão, a iniciativa dos EUA traz um ar de pensamento positivo e algo de oportuno e imediato, enquanto nem Rússia nem China têm qualquer contraestratégia disponível.

Paradoxalmente, Rússia e China podem acabar por ficar com a iniciativa, se, seja por que for, o plano da OSCE para estabilizar a situação no Quirguistão der errado e houver crescimento das tensões étnicas, com violência e anarquia. Mas seria vitória muito duvidosa, porque Rússia e China, à sua moda, também são partes interessadas na estabilidade regional.

Uma “equipe B”, para a guerra do Afeganistão

O traço menos bem-comportado de tudo isso é que é o Cazaquistão, com o qual ambas, Moscou e Pequim, contavam como seu mais sóbrio e ponderado parceiro regional, que está na boleia da carruagem da OSCE. Nas palavras claras e firmes do presidente cazaque Nurusultan Nazarbayev, “Não há qualquer dúvida de que é necessária nova estratégia da OSCE para o Afeganistão”.

Os EUA deliciaram-se; e, como num acordo de dupla mão, Washington acedeu ao desejo dos líderes cazaques que queriam a presidência da reunião de cúpula da OSCE a realizar-se ainda esse ano em Astana, e assim começar a aparecer no palco planetário. A última reunião de cúpula da OSCE aconteceu em 1999. E é o 35º aniversário do Helsinki Final Act[1].

“A abordagem estratégica pelo Cazaquistão da questão afegã tornou-se um dos pilares de um consenso histórico a que se chegou [na reunião dos ministros dos países da OSCE realizado em Almaty nos dias 16-17 de julho passado], no sentido de organizar-se reunião de cúpula da OSCE em Astana antes do final de 2010,” admitiu abertamente o ministro de Estado e de Relações Exteriores do Cazaquistão Kanat Saudabayev.

O Cazaquistão receberá conferência especial da OSCE em Astana nos dias 20-21 de outubro, de cuja agenda o principal item será a questão afegã e o papel que a OSCE poderá desempenhar no Hindu Kush. Essa conferência é mais uma das ações que visam a encontrar uma solução política para o problema afegão.

“Gostaria de destacar a importância de mudarmos o próprio paradigma de que todos se têm servido para enfrentar os desafios diários que vêm do Afeganistão: da ênfase nos meios militares, para a erradicação das fontes daqueles desafios. Ajudar os afegãos a saírem de um conflito militar, para uma trilha mais construtiva, é um dos principais objetivos da OSCE e da coalizão internacional [liderada pelos EUA]”, disse Saudabayev.

Astana elaborou a partir dessas ideias em documento intitulado “Efforts to intensify cooperation with Afghanistan” [Esforços para intensificar a cooperação com o Afeganistão”], segundo o qual a OSCE pode oferecer ajuda no seu nicho de competências, em questões de segurança não-militar [ing. soft security] e negócios civis. Dentre essas questões estão treinamento de pessoal dos corpos de segurança do Afeganistão que operam no controle de narcóticos, guardas-fronteiras e aduanas; assistência na organização, realização e monitoramento e no desenvolvimento de instituições democráticas e políticas no Afeganistão.

O Cazaquistão propôs – evidentemente com apoio de Washington – que a OSCE aponte um representante especial para o Afeganistão, e que a OSCE tenha presença local, lá.

Moscou objetou imediatamente, informando o conselho permanente da OSCE em Viena, mês passado que

“No que tenha a ver com fronteiras, aduana e projetos antidrogas para auxiliar o Afeganistão (…) [a Rússia] não pode aceitar a ideia de a OSCE operar em território do Afeganistão, nem aceitaremos tentativas de estender obrigações de direitos humanos e democracia àquele país. Tampouco vemos qualquer justificativa para que se crie o cargo de representante especial da OSCE para o Afeganistão.”

É fácil compreender a indignação dos russos. Os EUA passaram-lhes a perna. Há cinco ou seis anos, a Rússia insiste em que a CSTO poderia estar atuando como parceira construtiva da OTAN, para estabilizar a situação no Afeganistão. Até agora, Washington sempre se dedicou atentamente a ignorar a ideia. Agora, os EUA tiram da cartola a OSCE (organização na qual a Rússia está representada), como uma “equipe B” para cuidar do Afeganistão, de modo que a OTAN possa concentrar-se exclusivamente na luta contra os guerrilheiros.

Dito em termos claros, os EUA preparam-se passo a passo para um prolongado envolvimento com o paradigma que está em desenvolvimento para a segurança do Afeganistão e da Ásia Central.

Moscou jogando no contra-ataque

O problema é que a Rússia está obrigada a reagir com um braço amarrado às costas. Os EUA não perdem ocasião de referir-se à sua iniciativa no Quirguistão como excelente exemplo da cooperação EUA-Rússia, no melhor espírito do que o presidente Barack Obama chamou de “desligar e reiniciar” [ing. reset] as relações com seu contraparte russo Dmitry Medvedev.

Moscou está impedida de desafiar abertamente a interpretação dos EUA, num momento delicado do processo de “desligar e reiniciar” as relações. Além do mais, Moscou esperava que a cooperação no Afeganistão evoluísse para modelo mais amplo do “desligar e reiniciar”. Quanto ao papel da OSCE, Moscou sempre procurou transformar aquele organismo em efetiva organização de segurança, e a iniciativa dos EUA no Quirguistão não está em oposição ao desejo dos russos. Outra vez, a Rússia livrou-se de ter de desempenhar unilateralmente um papel de estabilização na situação do Quirguistão e adotou posição de cautela, temerosa de embrenhar-se lá num atoleiro que poderia ser financeiramente muito pesado.

Evidentemente, nas circunstâncias atuais, a Rússia tampouco pode fazer objeção forte à iniciativa dos EUA, com a China sentada na cerca, assistindo à disputa entre Washington e Moscou. Além do mais, os dois países-chave da Ásia Central –Cazaquistão e Uzbequistão – estão, eles também, aquecendo relações com os EUA.

Dito em termos genéricos, Washington está vivendo um certo tipo de “desligar e reiniciar” também com Astana e Tashkent. E, ora, essas duas capitais da Ásia Central estão, no fundo, tentando copiar o exemplo russo, de priorizar os laços com os EUA. Por seu lado, Washington também é pragmática nesse seu projeto de democracia para a Ásia Central, que sempre irritou os regimes autoritários na região.

Evidentemente, está em curso uma mudança de paradigma na Ásia Central, e o crédito cabe à diplomacia dos EUA; a influência norte-americana está em curva ascendente. O fato é que, diferente da Rússia, que agiu ad-hoc, os EUA têm a oferecer uma abordagem compreensiva da crise do Quirguistão; e a credibilidade da CSTO está desgastada.

Em depoimento à Comissão Helsinki em Washington semana passada, o secretário-assistente de Estado Robert Blake foi franco sobre as intenções dos EUA, de manter sua presença militar no Quirguistão no futuro próximo. Disse ele:

“Não estamos disputando influência com qualquer outro país na Ásia Central (…). Manter o Manas Transit Center [base aérea dos EUA] é importante prioridade de segurança nacional para os EUA, mas esse centro só pode ser mantido se o próprio Quirguistão for parceiro estável e confiável, e nós próprios somos totalmente transparentes no funcionamento do centro. O centro é parte importante de nossa parceria, mas nosso foco foi e continua ser desenvolver nossa relação política, econômica e de segurança.”

Os EUA tampouco perderam tempo na implantação de um grande programa de ajuda para a reconstrução econômica do Quirguistão. A conferência de doadores internacionais que houve em Bishkek, capital do Quirguistão, dia 27 de julho, foi patrocinada pelo Banco Mundial, mas teve o imprimatur de Washington. O 1,5 bilhão de dólares que os doadores ofereceram ao Quirguistão para os próximos 30 meses ultrapassou o que Bishkek pedira. Em termos políticos, nada demonstraria melhor do que isso, que “os EUA estão fortemente comprometidos com o Quirguistão”, como disse Blake.

Em fala dia 30 de julho ao Carnegie Endowment for International Peace, Blake deixou bem claro que Washington não está disposta a fazer concessões na Ásia Central – “uma região de significativa importância para os interesses nacionais dos EUA” – à Rússia. Disse ele:

“Reconhecemos que outros países têm interesses na Ásia Central. Mas não aceitamos que país algum tenha interesses exclusivos. Afirmamos que é do interesse de todos os países na região implantar políticas que gerem estabilidade mais durável e parceiros mais confiáveis para todos, inclusive para os EUA, e enfrentar e superar desafios críticos regionais e globais, da não proliferação nuclear à luta contra os narcóticos, à segurança energética e ao combate ao terrorismo.”

Outro Kosovo? Tudo isso posto, a audaciosa estratégia dos EUA tampouco é isenta de riscos reais; e são preocupantes as perspectivas de médio prazo do Quirguistão. A paisagem política é extremamente fraturada, e ninguém pode garantir que uma nova constituição funcione na prática, nem que as eleições marcadas para outubro sejam livres e justas. Há luta política aguda entre os clãs políticos, e o governo provisório em Bishkek continua fraco.

Não bastasse isso, as divisões regionais no Quirguistão estão-se aprofundando. A retórica nacionalista guirguiz torna-se mais estridente, a insegurança prossegue, a divisão étnica entre quirguizes e uzbeques continua enorme, e praticamente ninguém está dando atenção aos sofrimentos da minoria uzbeque. Com os órgãos de segurança e agências policiais exibindo preconceitos contra os uzbeques, são possíveis os ataques de vingança.

Enquanto isso, como escreveu Martha Olcott, destacada especialista norte-americana que estuda a Ásia Central,

“dificilmente os uzbeques simplesmente desaparecerão (…). Pequenos grupos de jovens também já estão tomando o rumo dos campos de treinamento e das redes jihadistas no Afeganistão e dali para o Paquistão. Isso implica que, mesmo que o governo do Quirguistão consiga manter ocultas as tensões étnicas no sul no curto prazo, os eventos de junho [o pogrom contra os uzbeques étnicos] podem ter graves ramificações no Quirguistão e no Uzbequistão, ainda por muitos anos.”

Também se pode pensar nos termos em que um sensível analista da situação no Quirguistão escreveu recentemente no Guardian de Londres:

“Há três modelos possíveis para o futuro: o do Sri Lanka, onde uma poderosa organização de guerrilheiros emergiu dos tumultos étnicos; o da Chechênia, onde um nascente movimento nacionalista foi cooptado nas redes islâmicas; e o do Uzbequistão, que respondeu a Andijan [o levante que houve lá, em 2005] com repressão violentíssima. Nenhum dos três parece muito entusiasmante.”

De fato, alguns observadores russos entrevêem um quarto modelo como cenário mais provável: o Kosovo.

Segundo eles, os EUA estariam procedendo conforme plano cuidadosamente coreografado, no qual a introdução da OSCE como força policial seria um primeiro passo necessário.

Afinal, os 52 policiais desarmados da OSCE previstos no plano do grupo pouco podem fazer para estabilizar o sul do Quirguistão. O mais provável é que fracassem em ambiente hostil, no qual a maioria da população do Quirguistão parece opor-se à intervenção da OSCE. Político russo, membro do Comitê de Assuntos Internacionais da Duma russa já observou que:

“Se algo acontecer a esses policiais da OSCE, serão enviadas unidades armadas ao Quirguistão. Quem mandará unidade militares para lá? A OTAN, é claro. Há uma base militar dos EUA em Manas, uma base aérea francesa em Dushanbe, e contingente de 154 mil soldados da OTAN no Afeganistão. Que dificuldade haveria? Se isso acontecer, veremos uma situação muito interessante, semelhante à do Kosovo… O risco de ativa interferência ocidental, nos termos do cenário do Kosovo, é muito real.”

À primeira vista, o deslocamento da OSCE pode visar a aliviar tensões, mas o impacto à vazante deste deslocamento pode levar a resultado exatamente oposto. Pode acontecer de a presença de observadores internacionais estimular os uzbeques étnicos do sul do Quirguistão a buscar a autonomia.

Em certa medida, os EUA já estão mexendo com os sentimentos separatistas latentes dos uzbeques nas regiões de Osh e Jalalabad no sul do Quirguistão. Questão chave aí é saber se essa seria abordagem calibrada em acordo com Tashkent; essa é questão chave, com profundas conseqüências no rumo futuro da geopolítica da Ásia Central e tem a ver, de fato, com a integridade do Quirguistão e sua viablidade como Estado.

Um aumento no sentimento uzbeque separatista no sul do Quirguistão dispararia a resposta do nacionalismo quirguis. Depois, seria só questão de tempo, antes de que um “homem forte” quirguis assumisse as rédeas e rumasse para o centro do palco, tirando de cena os democratas quirguises apoiados pelos EUA em Bishkek; assim, rapidamente se poderia chegar a um ponto sem volta possível.

Se isso acontecer, o Uzbequistão e o Tadjiquistão – por causa do enclave voruque étnico na província de Batken no sul do Quirguistão – seriam arrastados, o que cercaria três dos cinco Estados da Ásia Central. Em resumo: seria a Iugoslávia, outra vez.

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[1] O Helsinki Final Act foi o documento final da Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa [ing. Conference on Security and Cooperation in Europe] realizada em Helsinki, Finlândia, nos meses de julho e agosto de 1975. 35 Estados, entre os quais EUA, Canadá e todos os Estados europeus exceto Albânia e Andorra, assinaram a declaração, em tentativa para melho rar as relações entre o bloco comunista e o Ocidente.

Fonte: Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/LH07Ag01.html

Tradução: Caia Fittipaldi