Ao longo das últimas semanas, vocês devem ter notado que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES começou a aparecer com maior freqüência nas páginas dos grandes meios de comunicação, aqui no Brasil e na imprensa estrangeira. Ao que tudo indica, a razão mais forte para tal deslocamento das páginas escondidas dos cadernos de economia em direção aos holofotes da pauta mais ampla da política está localizada no avanço do debate eleitoral e nos arranjos visando à configuração de forças no próximo governo, que deve tomar posse em 1º de janeiro próximo. Em poucas palavras: jogo pesado de disputa de espaço e defesa de interesses.

Trata-se de uma importante instituição de crédito, com um enorme patrimônio e uma volumosa carteira de empréstimos. Em 2009, por exemplo, o Banco já havia ultrapassado o próprio Banco Mundial em suas alocações financeiras para o setor produtivo e de serviços. No final do ano passado, o valor do ativo total do BNDES passava a barreira dos R$ 386 bilhões. Ou seja, estamos falando da quarta maior instituição de crédito do País, superada apenas pelo Banco do Brasil, Itaú e Bradesco.

Todo essa dimensão, porém, deve ser analisada de acordo com alguma perspectiva histórica e de desempenho do próprio Banco. Afinal, dentro de dois anos, a instituição vai comemorar seu sexagésimo aniversário. É interessante observarmos a evolução do mesmo desde a sua criação em 1952, pois ajuda a compreender também a passagem por projetos nacionais e por diferentes momentos da nossa economia. Afinal, a instituição foi criada por Getúlio Vargas, passou por outros presidentes como Juscelino, Jânio e João Goulart. Era a época de ouro do nacionalismo e do desenvolvimentismo. Sobreviveu ao golpe e à ditadura militar, tendo sido utilizada como importante instrumento de governo por Ministros como Roberto Campos e Delfim Netto. Uma época em que a política econômica era marcada pelo aprofundamento da dependência externa, do arrocho salarial, da financeirização. A instituição continuou com fôlego durante a fase da transição democrática, foi reforçada no período pós Constituinte e atravessou todo o período das altas taxas de inflação e os diferentes planos de ajuste econômico. E, na época mais recente, depois do Plano Real se consolida como instituição financeira sólida.

Nas décadas de 50 e 60, o Banco operou o importante papel de concessão de crédito a setores absolutamente inovadores e até então inexistentes no País. Tratava-se de áreas como a indústria automobilística, a indústria petrolífera a partir da criação da Petrobrás em 1954, a indústria siderúrgica, além de toda a infra-estrutura de estradas, portos, ferrovias, energia elétrica, telecomunicações, etc. Como instituição pública do governo federal, o BNDES foi elemento essencial para a constituição do modelo de acumulação capitalista que passa se constituir a partir de então. O modelo previa a alavancagem de uma chamada “poupança compulsória”, na forma de grandes fundos de contribuição compulsória, geridos pelo governo federal, que era então oferecida na forma de empréstimos para os setores considerados estratégicos pelos diversos governos, a cada momento considerado.

Nessas condições, sempre concedeu empréstimos de alto volume e a taxas de juros subsidiadas, bem abaixo das praticadas em operações de rotina pelo sistema financeiro. Durante seu trajeto, na década de 80, o inicialmente criado Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE ganho um “s” por ter incluído o adjetivo “social” em seu nome – virou BNDES. Era uma tentativa de sinalizar que o banco passaria também a emprestar para projetos na área social. Mas pouca coisa foi alterada na rotina de empréstimos naquela época, apesar da mudança formal. Além do setor de infra-estrutura, os grandes projetos de financiamento continuavam a se concentrar na área de máquinas, equipamentos e outros bens de capital. Ao contrário dos bancos comerciais, o Banco não possui capilaridade de agências espalhadas pelo território nacional. O BNDES tem uma equipe de analistas e economistas de competência amplamente reconhecida, que se incumbe de analisar, de forma geral, as solicitações de empréstimo e financiamento de forma bastante criteriosa.

Aqui cabe uma observação importante a respeito de tal modelo e do enfoque neoliberal do processo econômico. Um banco público já seria, de per se, uma anomalia. Não cabe ao Estado entrar na esfera da economia, que deve ser operada sempre e exclusivamente pelo setor privado, segundo as regras do bendito mercado. Um banco público que empreste a juros subsidiados, bem isso aí já beira ao absurdo. Como diz matéria da conservadora revista “The Economist” da semana passada, isso remonta às eras jurássicas do intervencionismo… A presença do Estado, nessas condições, desvirtua as orientações dos chamados preços livres – ou seja, a cartilha sugere que os empréstimos sejam tomados junto à banca privada, com os custos que já analisamos aqui em outras oportunidades.

Na verdade, estamos diante de um fato que os economistas classificam como “política industrial ativa”. O governo atua e estabelece setores e regiões a serem beneficiados e estimulados, sem nenhum compromisso com sinalizações de mercado. Uma aberração, para os autenticamente liberais. Uma necessidade, para quem não tem fé cega nas regras do mercado e sabe que a construção de um projeto de País depende bastante da ação efetiva do Estado em áreas consideradas estratégicas da economia e da sociedade. Mas o fato curioso é que, quando os interesses políticos e econômicos gritam mais alto, até mesmo os nossos raivosos liberais tupiniquins se permitem seus próprios “pecadilhos ideológicos” e acabam aceitando um pouquinho de presença pública – tudo em nome da nobre causa… Tanto que aceitam os empréstimos do BNDES e pedem isenções e facilidades tributárias em seus respectivos setores.

O desenho institucional apresenta um detalhe interessante, para dizer o mínimo. Não vou aqui entrar no debate, pois há inúmeros argumentos envolvidos. Mas o BNDES está vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC. Ou seja, seu Presidente responde hierarquicamente a outro Ministro, que não da Fazenda. E, muitas vezes, esse modelo provoca ruídos, quando as posições não estão bem azeitadas. Foi o caso da gestão de Carlos Lessa entre 2003/4, ainda no primeiro mandato, em sua disputa contra as posições mais conservadoras do Ministro Furlan. Como 7 dos 11 membros do Conselho de Administração do Banco são nomeados pelo MDIC, no limite cria-se um impasse de natureza político-institucional. Como todos se recordam, Lessa acabou sendo demitido por Lula. O contra-argumento é que localizar o BNDES na área da Fazenda aumentaria ainda mais a força de um Ministério já por demais poderoso. Não há solução mágica, mas algo deve ser feito para evitar que esses atritos prejudiquem a ação do Banco e o investimento nacional.

E agora começa a ganhar as páginas dos jornais a briga acirrada entre o atual presidente do Banco, Luciano Coutinho, e o Presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Na verdade, a face pública da disputa refere-se a quem deve ser apontado como “o verdadeiro responsável” pelos efeitos da política de empréstimos praticada pelo BNDES. Coutinho critica o elevado patamar da taxa de juros do Banco Central, a SELIC. E Meirelles responde, no contra-ataque, ao afirmar que isso ocorre porque o BNDES provoca déficit nas contas do Tesouro Nacional e o governo se vê obrigado a elevar os juros para fechar as contas e manter a credibilidade do mercado. Ao que tudo indica, a divergência é muito mais profunda do que essa. Trata-se de briga por espaço junto à futura equipe de transição de governo e a tentativa de cravar cunhas em nomes e grupos para ocupar postos estratégicos, como o Ministério da Fazenda.

Mas fiquemos no debate sobre a ação do BNDES. Durante o governo do Presidente Lula, em especial ao longo do segundo mandato, o volume de desembolsos aumentou de forma significativa. Entre 1996 e 2002, a média anual de empréstimos foi de R$ 25 bilhões. Em 2003, subiu para R$ 35 bi. Em 2006, atingiu R$ 52 bi. Em 2009, fechou em R$ 138 bi. Esse valor deve ser um pouco maior ainda no final do presente ano. Ou seja, um crescimento expressivo, a cada ano que passava, na política de concessão de crédito subsidiado para o investimento em empresas e setores estratégicos.

A questão é que a taxa de juros constante nas operações do Banco é chamada Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). Sua definição ocorre no âmbito do Conselho Monetário Nacional – CMN e não no COPOM do Banco Central. E a composição do CMN é formada pelos Ministros da Fazenda e do Planejamento, com o terceiro posto destinado ao Presidente do BACEN. E atualmente a TJLP está definida em 6% ao ano. Lembremos que a SELIC foi elevada para 10,75% aa. E que uma empresa, ao buscar um empréstimo junto aos bancos, não conseguirá nada com taxas mais baixas do que 30% aa. Mas então, onde está a mágica da operação com recursos do BNDES? Ora, ele não pode perder dinheiro com esses empréstimos, realizados com condições mais baixas do que os juros pagos pelo próprio governo federal na emissão de seus títulos. Nesse caso, o Banco é reembolsado pelo Tesouro Nacional por essa diferença entre a TJLP e a SELIC. No caso específico, uma taxa de 4,75% aa. Ou seja, a cada R$ 100 bi de empréstimos concedidos pelo Banco pode-se afirmar que a União está arcando com uma despesa de, no mínimo, R$ 5 bilhões.

O debate, portanto, deve se voltar para qual tipo de retorno que a sociedade espera dos recursos volumosos que são concedidos sob a forma de tais subsídios. E as informações disponíveis apontam para uma excessiva concentração das operações de empréstimos em poucos e enormes grupos empresariais. Estão aí as operações em áreas oligopolizadas como as telecomunicações, a geração de energia, a construção naval, a siderurgia, a mineração, entre outras. E, pouco a pouco, o crescimento de apoio para setores ligados ao agronegócio, como o polêmico caso do setor de carnes.

O que está em jogo é o fortalecimento do que vem sedo chamado de “processo de construção das multinacionais brasileiras”, sempre com todo apoio logístico, diplomático e financeiro do governo federal. Para além da Petrobrás (uma das poucas empresas públicas no conjunto), estão os grupos privados e/ou privatizados como a Vale, os gigantes das telecomunicações, as nossas bem conhecidas enormidades da construção civil e a JBS Friboi, que se tornou a maior empresa do mundo operando no setor de carnes.

Como se vê, a questão é polêmica e complexa. Mas a análise desse tipo de projeto para o País já é assunto para outro artigo.

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Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Fonte: Carta Maior