Se Deus assim o desejar, vassoura vira espingarda – foi o que escrevi logo depois de constituída a Comissão Turkel[1][1]. Citava um dito popular judeu, na esperança de que, contra todas as possibilidades, alguma coisa resultasse do trabalho daquela comissão.

A verdade é que a Comissão Turkel foi concebida em pecado. Nenhum dos indicados para constituí-la tinha qualquer interesse em descobrir coisa alguma. O seu único interesse era impedir que se instalasse uma comissão internacional de inquérito ou uma Comissão de Inquérito Oficial do Estado de Israel, para investigar o ataque à Flotilha da Paz e o bloqueio de Gaza. Os “termos de referência” foram impostos à Comissão e são extremamente estreitos. Na versão inicial, a Comissão tinha poderes para convidar, mas não tinha poderes para exigir que as testemunhas convidadas se apresentassem.

Em resumo: uma comissão de investigação constituída para não investigar, vassoura feita para não varrer.

Mas sempre esperei que os membros da comissão não aceitassem tão facilmente dançar pela música do governo Netanyahu. Ainda é cedo para saber, mas parece que a Comissão não rebentará as cadeias que a prendem.

Essa semana, depois dos depoimentos das três testemunhas principais – Binyamin Netanyahu, Ehud Barak e Gabi Ashkenazi – pode-se tirar uma primeira conclusão: a comissão não se deixou limitar pelos termos de referência que lhe foram impostos. Os termos de referência foram ignorados. A comissão praticamente não fez qualquer ligação entre os fatos que lhe cabe investigar e a legislação internacional. Quanto ao resto, houve de tudo.

Não foi difícil, porque as três testemunhas encarregaram-se de ignorar completamente os termos de referência que elas mesmas inventaram. Os três se dedicaram empenhadamente, apenas, a demonstrar que cada um sempre agiu mais acertada e sabiamente que os outros. E, assim, rapidamente, todos esqueceram o objeto real que a Comissão deveria investigar.

Um fato, pelo menos, ficou firmemente estabelecido: a comissão não precisará, nunca mais, limitar-se aos termos de referência. (É possível que os termos de referência voltem a ser lembrados no final, no momento de a Comissão redigir as conclusões.)

Interessante também observar como as três testemunhas ouvidas pela Comissão Turkel foram recebidas pela mídia: praticamente toda a imprensa israelense criticou Binyamin Netanyahu e Ehud Barak, tanto quanto glorificou Gabi Ashkenazi.

Netanyahu foi leviano e superficial até a frivolidade. Atribuiu toda a responsabilidade a Barak e não disse coisa com coisa, sequer sobre os fatos conhecidos. Afinal, estava no exterior naquele momento, e o que vocês queriam que ele soubesse? Barak fez tudo absolutamente sozinho e segundo sua pessoal avaliação de momento.

Depois de ferozmente atacado pelos jornais e televisões, Netanyahu convocou rapidamente uma conferência de imprensa e anunciou, grandiloquente, que, sim, assumia, sozinho, toda a responsabilidade por todos os acontecimentos. Barak nada fez. Ele próprio, Netanyahu, não Barak, fez tudo sozinho.

Barak foi mais esperto. Falou infindavelmente, afogou a comissão num dilúvio de detalhes e, sim, sim, assumiu plenamente toda a responsabilidade. No parágrafo final concluiu que não, não, nada teve a ver com os acontecimentos daquela noite e chutou toda a responsabilidade para os militares. O governo, disse ele, decidiu sobre a missão. Mas os militares executaram a missão. Os responsáveis pelo que possa ter saído errado, pois, são os militares. Também foi duramente criticado pelos jornais e televisões.

Gabi Azkhenazi, chefe do comando do Estado-Maior do exército apontou erros na execução da operação, todos cometidos pelos soldados mais rasos da Marinha e dos serviços de inteligência. Ao final, impressionantemente magnânimo, também assumiu a responsabilidade pelos erros dos soldados e marinheiros e espiões dos escalões mais rasos e, sim, se declarou responsável por tudo. Também fez tudo sozinho.

O depoimento de Azkhenazi foi uma obra prima. Surpreendentemente, se mostrou muito mais astuto que os dois experientes políticos. Enquanto os dois exibiram-se como enguias ensaboadas, ocupados, cada um, só com defender a própria pele, Azkhenazi fez-se de urso simpático, simples, honesto, sem sofisticações, um velho soldado, pleno de integridade, que sempre diz a verdade porque não sabe mentir.

Ashkenazi é muito mais matreiro do que parece. Sim, o depoimento foi cuidadosamente ensaiado com seus assessores e conselheiros, mas chefe matreiro sabe selecionar assessores e conselheiros matreiros.

Outra vez se comprovou que, em Israel, a imprensa e, de fato, todo o Estado, são controlados pelo Exército. Frases recebidas com risadas e desconfiança, quando ditas por Netanyahu e Barak, mereceram a mais reverente atenção, quando ditas pelo comandante do Exército. Um coro de admiradores elogiou Ashkenazi nas redes de televisão, pelo rádio e nos jornais. Que homem íntegro! Que perfeito soldado! Que comandante responsável e de alto nível! Se havia alguma diferença entre os porta-vozes do Exército, uniformizados, e os jornalistas militares, à paisana, ninguém viu.

A imagem geral que emergiu dos três principais depoimentos é bem clara: não houve qualquer preparação séria para enfrentar o ‘evento’ da Flotilha da Paz, por mais que todos soubessem com antecedência de meses que algum plano havia. Tudo foi improvisado, como obra de amadores, na famosa tradição da improvisação em Israel: “confie em mim” e “tudo há de dar certo”.

Houve eventos anteriores em que navios de ajuda humanitária só transportavam pacifistas não-violentos. Então, todos deram por resolvido que aconteceria o mesmo com o Mavi Marmara. Ninguém deu atenção aos ativistas turcos, imbuídos de outro tipo de ideologia. Mas, afinal, quem se interessa pelo que turcos pensem?! O glorioso Mossad sequer se deu o trabalho de plantar um espião entre as centenas de pacifistas a bordo do navio.

A operação foi planejada sem qualquer atenção, sem inteligência, sem análise de alternativas, sem avaliar a possibilidade de cenários potencialmente perigosos. Fato é que ninguém precisa ser profeta, para saber que ativistas turcos, cheios de fervor religioso, poderiam estar também a bordo – e a bordo de um navio turco! –, e poderiam irritar-se muitíssimo ao ver um barco (turco e carregado de pacifistas e material de ajuda humanitária para Gaza) ser abordado em águas internacionais por soldados israelenses. Que surpresa!

Conclusão? O comandante do Exército concluiu sem hesitar: da próxima vez, o Exército usará atiradores para “conter” quem esteja no convés (ou “os atacantes”, na linguagem dos comentaristas militares) e dar cobertura aos soldados que descem dos helicópteros.

Dado que Netanyahu e Barak empurraram toda a responsabilidade para os militares, e Ashkenazi reconheceu os erros de planejamento e execução, resta uma questão de ordem prática: como a Comissão Turkel conseguirá investigar alguma coisa, se a Comissão não tem poderes para convocar o pessoal militar?

Para contornar o problema, o comandante do Exército jogou dois ossos para a Comissão roer: o Advogado Geral do Exército e Giora Eyland poderão falar à Comissão. (Eyland é o general aposentado que dirigiu o inquérito interno do Exército.) Mas nem de longe é suficiente. Para cumprir sua tarefa, a Comissão teria de ouvir também o Comandante da Marinha e seus subordinados diretos. Em resposta à consulta do Bloco da Paz, a Suprema Corte já deixou caminho aberto nessa direção: se a Comissão Turkel exigir esses depoimentos, a Suprema Corte determinará que a Marinha atenda à exigência.

Nenhum dos três que já depuseram sequer se aproximou da questão principal: a própria existência do bloqueio contra Gaza.

Na fatídica reunião do “Septeto” (os principais ministros), ficou bem claro que todos crêem que o bloqueio é necessário, assim como é necessário impedir, pela força, sendo o caso, todas as tentativas de rompê-lo.

Os aspectos legais do caso talvez provoquem muita discussão. Pelo que sei, a legislação internacional não é muito explícita, nem no que tenha a ver com impor bloqueios nem no que tenha a ver com modalidades de bloqueios. A lei não está posta de forma consistente. Há espaço para várias interpretações. Não haverá, portanto resposta única, acordada e clara.

Seja como for, a questão não é legal, mas moral e política: qual o objetivo de Israel ao impor o bloqueio a Gaza?

Até agora, todas as testemunhas ouvidas repetiram o mesmo argumento ensaiado: Israel está em guerra contra a Faixa de Gaza (tenha a Faixa o estatuto legal que tiver, e mesmo que não seja Estado reconhecido), o bloqueio é necessário, para impedir a importação de material bélico. Portanto, o bloqueio seria legal e moral.

Mentiras e mais mentiras.

É muito simples controlar o movimento de cargas transportadas por mar. O que se faz nesses casos é deter o barco, inspecionar a carga, confiscar o material transportado que não esteja regular e liberar o barco para que prossiga viagem. Em todos os casos, a carga pode ser inspecionada no porto de partida.

Nada disso foi feito, no caso da Flotilha da Paz, porque toda essa conversa sobre material bélico não passa de pretexto. Israel impôs o bloqueio de Gaza pelo motivo exatamente oposto: para evitar que cheguem materiais não-bélicos, os mesmos materiais que também não chegam a Gaza pelos postos de passagem em terra: vários tipos de alimentos e remédios, matéria prima para a indústria da Faixa de Gaza, materiais de construção, peças de reposição para máquinas e carros e vários outros itens, de cadernos escolares a equipamento de purificação de água.

O pouco que torna a vida ainda possível chega à Faixa pelos túneis, com preços estratosféricos, muito acima da capacidade de compra da maioria dos habitantes.

Desde o início, o objetivo do bloqueio foi tornar impossível a vida normal na Faixa de Gaza, para levar a população ao desespero e induzi-la a levantar-se e derrubar o governo do Hamás. Esse objetivo sempre foi evidentemente apoiado pelo governo dos EUA e seus Estados-satélites no mundo árabe e talvez também, como muitos crêem, pela Autoridade Palestina em Ramallah.

Netanyahu disse, em seu depoimento, que “não há crise humanitária na Faixa de Gaza”. Tudo depende de como se interpretem as palavras.

É verdade, não há gente morrendo de fome e doenças pelas ruas. Não é o gueto de Varsóvia. Mas a subnutrição cresce entre as crianças, há pobreza e miséria. O bloqueio gerou desemprego em alta escala, porque praticamente toda a produção agrícola e industrial está paralisada. Não há importação de matérias primas, nenhuma exportação de qualquer tipo, falta combustível. Os produtos de Gaza não conseguem chegar à Cisjordânia, a Israel ou à Europa, como antes. Tudo isso é verdade ainda hoje, apesar de a Flotilha da Paz ter sido parcialmente bem sucedida, porque obrigou Israel a permitir a entrada de vários itens que, antes, estavam bloqueados.

O fechamento do porto de Gaza também contribui para aumentar a crise humanitária. Há dezessete anos, Shimon Peres escreveu: “O porto de Gaza tem grande potencial de crescimento. Os produtos e cargas que partirão daqui a caminho de importadores israelenses, palestinos, jordanianos, sauditas e até iraquianos serão demonstração da revolução econômica que beneficiará toda a região.” Talvez fosse o caso de convocar Shimon Peres para depor à Comissão Turkel.

A palavra chave dos depoimentos foi “responsabilidade”. Todos os ouvidos pela Comissão primeiro assumiram a “responsabilidade” e em seguida passaram-na adiante, como jogador de futebol americano que recebe a bola e imediatamente a joga para o mais longe que possa.

O que significa responsabilidade? Noutros tempos, quando um líder japonês assumia a responsabilidade por grandes fracassos, metia a espada na própria barriga; “harakiri” significa exatamente “cortar a barriga”. Essas práticas bárbaras não existem no ocidente. Mas, pelo menos no Japão, e ainda em vários países ocidentais, líder responsável por grandes fracassos sempre pode renunciar.

Em Israel, não. Não, pelo menos, nos tempos que correm. Na Israel de Netanyahu, quem anuncia que “assume a responsabilidade” passa a merecer reverência. Que coragem! Quanta nobreza! “Ele assumiu a responsabilidade!” E fica tudo por isso mesmo.

Nota de Tradução

[1] A Comissão Turkel é a comissão formada para investigar o ataque israelense à Flotilha da Paz e o bloqueio de Gaza. Leva o nome do juiz aposentado da Suprema Corte encarregado de presidi-la, Jacob Turkel. A investigação deve ser acompanhada por dois observadores internacionais: o ex-primeiro ministro da Irlanda do Norte William Trimble e pelo ex-juiz militar Ken Watkin. Foi instalada dia 17/6/2010 (mais em: Turkel Commitee).

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O artigo original, em inglês, pode ser lido em: Harakiri

http://redecastorphoto.blogspot.com/2010/08/harakiri.html

Tradução: Caia Fittipaldi