Mitômano incurável, ele declarou: “Tivemos problemas graves que afetaram a credibilidade desta instituição, da maior importância para a democracia. E poderia dizer, sem ironizar, que o Senado pecou, sim, gravemente, em agosto de 2005, quando deixou de avaliar a hipótese de se instaurar um processo de impeachment do presidente da República, diante do escândalo monumental do mensalão, que sacudiu e indignou o povo brasileiro.”

O discurso de Dias, o breve — ele chegou a ser anunciado como candidato a vice na chapa da direita, liderada por José Serra, por curto espaço de tempo, na disputa pelo Palácio do Planalto —, proferido em seu primeiro dia pós-recesso parlamentar, foi em resposta à verdade dita por Lula, em comício realizado em Curitiba (PR). Na ocasião, o presidente disse que espera que a candidata petista à sucessão presidencial, Dilma Rousseff, tenha um Senado melhor do que o atual.

A máxima bíblica e filosófica de que a verdade é libertária mostra-se mais uma vez verdadeira. Lula tirou de letra o festival de afrontas contra ele e seu governo ao pautar sua atuação pelo debate político. Sempre existe saldo positivo no debate político, na participação do povo nos destinos do país. Há, no entanto, um fato decisivo a se considerar: em uma campanha eleitoral, as torpezas são moedas correntes.

Um agente decisivo

As primeiras manchetes do que viria a ser a sórdida onda de ataques ao governo Lula, por exemplo, representou uma espécie de ordem unida. Desde então, o que se viu foi a repetição da sordidez outrora usada contra Vargas — que o levou ao suicídio. Como naqueles idos, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem a quem seus acusadores não têm autoridade para sê-los.

Cometeu-se todos os desmandos, ultrapassou-se todos os limites, rompeu-se todas as convenções. Nada ficou de pé. E a cada um dos desatinos parecia que a única preocupação era superar os anteriores. O único objetivo foi o de criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas. Mas havia um agente decisivo em tudo aquilo: o povo. E a imensa maioria do povo ficou ao lado da verdade.

Mas Álvaro Dias é viciado em mentiras. Quem o conhece sabe disso muito bem. Tanto que foi um dos mais ativos militantes da direita festiva quando ela tentou dar o golpe em Lula. Sua fala, reavivando a veia golpista, mostra que Lula tem inteira razão ao reivindicar uma melhor representação paranaense no Senado.

Uma humilhação a mais

No começo da novela do “mensalão”, Álvaro Dias disse: “Tomara que a gente pegue alguém”. (Que alguém? Vai saber… Mas e as provas? Bem, aí já estávamos querendo demais.) No meio da novela do “mensalão”: “Faço uma roleta-russa com seis balas no revólver se o Lula sair dessa!”. (Felizmente, a reeleição do presidente parece ter lhe tirado as energias para o gesto.). Na reta final da novela do “mensalão”: “Os papéis que serão aprendidos pela CPI dos Correios vão abalar os pilares da nação”. Depois, quando a realidade se mostrou bem menos formidável para ele: “Eu queria que a coisa fosse bem maior, mas não é”.

Recordo também um diálogo, por escrito, que mantive com um assessor de Álvaro Dias sobre o que ele chamou “bolsa esmola” e falei do povo como “agente decisivo”. “Quando você diz que há um agente decisivo; o povo, você deveria dizer o povo que recebe bolsa esmola, e acredito até que você esteja incluído entre eles”, insultou o assessor. Respondi: “Você acertou na mosca! Falo desse povo sim, que recebe o que você preconceituosamente chama de ‘bolsa esmola’. Os pobres sempre foram humilhados e não será uma humilhação a mais que fará diferença.”

Disse ainda que gente como Álvaro Dias sempre odiou o povo e o trata como os racistas do Sul dos Estados Unidos tratavam os negros — segundo a fina ironia do escritor George Bernard Shaw. Primeiro, reduziam os negros, no mercado de trabalho, à condição de engraxates; depois, concluíam que “negro só serve mesmo para engraxar sapatos”.

O “mensalão” de Maringá

A verdade é que a origem da corrupção certamente não está onde aquela onda denuncista capitaneada por Álvaro Dias tentou apontar. Sociedades inteiras podem viver ao lado do crime por muito tempo, fingindo tranqüilidade enquanto a sujeira supostamente mora longe — creio que a maioria da população da minha querida Maringá não ignora o que ocorreu na cidade quando o tucano Jairo Gianoto era prefeito e, em conluio com o senador mitômano, comandou um “mensalão” de dimensões ainda incalculadas.

Na Itália contemporânea, por exemplo, a máfia vivia na ante-sala dos melhores endereços. No Brasil, esta é a constatação de um problema estrutural. É só ver as práticas de candidatos que pagam viagens a jornalistas, oferecem coquetéis a “analistas” e colunistas da mídia, entregam brindes vultosos a profissionais de edição. Tudo isso é tratado como ações simpáticas destinadas a enaltecer a imagem junto a públicos-chave. É a prática safada da linha “é dando que se recebe”. Ou, numa palavra, corrupção.

Samba do crioulo doido

O jornalista Paulo Henrique Amorim recentemente escreveu em seu Conversa Afiada que participou de um debate no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP, com o senador tucano. O tema do colóquio foi “A Ideologia Partidária”. “O nobre senador tucano fez uma exposição surpreendente”, escreveu Amorim. “Ao lado do deputado Arlindo Chinaglia, do PT, e do Edinho, presidente do PT de São Paulo, Dias não conseguiu pronunciar uma única vez a palavra “serra”, precedida do nome próprio ‘José’”, disse.

O jornalista lembrou que o “ilustre tucano” considera que os partidos brasileiros são apenas “siglas”. Que os partidos políticos instalaram o caos no país! E que a luta partidária no Brasil hoje não passa de um “samba do crioulo doido”. “A política partidária hoje no Brasil é um ‘balcão de negócios’", asseverou o senador. “Por fim, veio a lenga-lenga udenista da moralidade. Os brados contra a corrupção”, destacou Amorim. “Mas isso faz parte. O gênio não tem nada a declarar”, completou.

Exército de excluídos

Em regimes democráticos, os líderes da administração pública só chegam a seus cargos pelo voto. Num regime de democracia institucional limitada como o nosso, no entanto, são enviados para Brasília traficantes de drogas, estelionatários, mandantes de assassinatos, lavadores de dinheiro (o Congresso Nacional tem sido profícuo em reunir Manchas Negras e Irmãos Metralha, de um lado, e Superpatetas, de outro). E mitômanos.

É assim que chegamos às situações tragicômicas, excruciantes, de desesperador ridículo, que tantas vezes pontuam a vida nacional — como é o caso do discurso de Álvaro Dias lembrado acima.

A verdade é que a direita tenta fugir dos rótulos que, não por coincidência, lhe caem bem. Ela é de fato conservadora por desejar a manutenção da estrutura social inaceitável que temos no país e reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder político, dando sustentação a qualquer regime que protege seu senhorio.

Seu projeto tem que prever a existência de perdedores, de um exército de excluídos, como forma de garantir seus privilégios. No âmbito político, o que para a o povo é considerado corrupção para eles são apenas hábitos seculares.

Para este setor da sociedade, os sistemas democráticos não podem funcionar a contento porque se funcionassem eles definhariam a maior indústria brasileira, que perpassa todos os níveis de sua atuação, e atinge inclusive, acredite, o seu e o meu dia-a-dia: a da corrupção, do esquema, do caixa dois. Eles instauraram por aqui, há muitas gerações, o império da gambiarra.

Time de cobras

Álvaro Dias tenta imitar Diógenes, aquele personagem do episódio que com uma lanterna na mão procurava um homem honesto. (Carlos Lacerda, que conspirou ativamente contra Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, criou o seu “Clube da Lanterna” inspirado neste personagem.) Mas, como cantou Noel Rosa, não adianta estar no mais alto degrau da fama, com a moral toda enterrada na lama.

Outro dia ouvi ele dizer que a oposição no Senado forma “um time de cobras”. Como alguém já disse, o time poderia até ser um bom coletivo, mas talvez não fosse “o” coletivo: cobra não tem coletivo. O que mais se aproxima é serpentário, um lugar onde cobras são mantidas em cativeiro.

E a razão é simples: cobras não vivem em sociedade. Não interagem. Não fazem nada juntas. Uma não auxilia a outra. Se há um animal sem um mínimo espírito de equipe, é a cobra. É cada uma por si e, não raramente, uma engole a outra. O time de Álvaro Dias não pensa duas vezes antes de passar a perna um no outro (coisa que nem cobra consegue fazer). Ele e seus iguais são daquele tipo “cobra bem criada”.

Justiça efetiva

Justamente agora, com a campanha eleitoral, o senador Álvaro Dias dá a oportunidade de observarmos uma ilustração perfeita da distância que separa as “boas intenções” — das quais o inferno está cheio — da dura realidade concreta. É difícil encontrar algum país no qual as eleições sejam submetidas a um conjunto tão espetacular de códigos, regulamentos e controles como o que ocorre no Brasil.

Há juízes exclusivamente dedicados a zelar pela qualidade do processo eleitoral. Há tribunais regionais eleitorais. Há um Supremo Tribunal Eleitoral. Essa máquina tem poderes para decidir sobre qualquer aspecto da propaganda nas eleições. Ela distribui, regula e fiscaliza cada minuto e segundo que os partidos utilizam. Regula a organização de debates na TV, diz onde os candidatos podem ir, o que podem ou não podem falar.

Mas essa justiça tão zelosa não consegue coibir diatribes como essa do senador tucano, que decorre do crescimento do PIB, da elevação da renda, dos números de empregos divulgados pelo Caged, da melhora das contas externas promovida essencialmente pela política do Itamaraty e da credibilidade que o Brasil conquista no cenário mundial. Daríamos um salto se a isso tudo acrescentássemos uma justiça efetiva — aquela que se manifesta no mundo dos fatos, e não apenas na mídia, nas CPIs e nas denúncias que resultam em coisa nenhuma, porque vazias. Aí Álvaro Dias poderia pensar melhor em seus atos.