No fundo da sua litania está a tentativa de recuperar terreno para o projeto de país que ele representa e que guarda uma enorme diferença em relação ao do governo Lula e ao da candidata Dilma Rousseff. Serra estava grudado em Fernando Henrique Cardoso (FHC) na campanha de 1994, que brandiu a “estabilidade” como se fosse uma grande contribuição à humanidade. Uma inflação de 1,75% em setembro daquele ano e de 1,82% em outubro, depois de ter batido em quase 50% em junho, foi argumento suficiente para resolver aquela eleição já no primeiro turno.

Mas uma das conclusões a que se pode chegar analisando os votos de 1994 é que eles representaram uma carta branca ao governo no que se referia ao controle inflacionário, não necessariamente a qualquer outro ponto de seu ideário liberalizante. Ao lado do trunfo do Plano Real, vendido por meio de um marketing internacional muito bem arquitetado, havia os outros quatro dedos da mão espalmada de FHC. Eles significavam para o eleitor a promessa de melhorias sociais e infra-estruturais no país. Nenhuma “reforma” de cunho liberal foi claramente referendada pelo pleito de 1994. Elas vieram a reboque — eram as cláusulas do contrato escritas em letras minúsculas.

Proer

A presença do PFL na chapa majoritária era óbvia sugestão de que aquele governo não seria uma “social-democracia”. O liberalismo que norteou o governo FHC centrou-se no “ajuste” macroeconômico e soterrou praticamente todos os mecanismos do Estado que atuavam nas ações sociais e nacionais. Para conseguir o segundo mandato, este projeto utilizou-se de um novo engodo.

Eram mais do que óbvios os laços que uniram aquela política com a perda de empregos e o aumento da precariedade dos serviços públicos — como saúde, segurança, educação. Mas a campanha veio com um slogan apelativo: era preciso garantir as “conquistas” da “estabilidade” para dar prioridade aos outros dedos da mão espalmada, principalmente o combate ao desemprego. Era conversa de corda em casa de enforcado, como no provérbio.

Quesitos como o tratamento dispensado à crise bancária — que drenou uma dinheirama do Estado por meio do Proer —, corrupção desbragada, privatizações fraudulentas e repressão aos movimentos sociais — com destaque para a invasão do Exército durante a greve dos petroleiros e a criminalização dos movimentos que lutam por reforma agrária — também praticamente não encontraram espaços no debate eleitoral. E a campanha do projeto neoliberal acabou criando uma interrogação para o eleitor: por que votar em Lula se FHC estava garantido as “conquistas” da “estabilidade” e prometendo empunhar as principais bandeiras do candidato da oposição? Mas FHC merecia credibilidade? Esse dilema ficou evidenciado nas pesquisas de intenção de votos.

Alianças

Em 10 e 11 de março de 1998, o Datafolha divulgava pesquisa mostrando FHC com 41% das intenções de votos no primeiro turno, contra 25% de Lula. No segundo turno, FHC venceria com 52% contra 35% de Lula. Em meados do ano, depois de meses a fio em que se dava por certo que não haveria segundo turno, o quadro começou a mudar. Na pesquisa de 8 e 9 de junho, as diferenças atingiram seu patamar mínimo: FHC teria 35% das intenções de voto no primeiro turno e Lula, 30%.

No segundo turno, FHC ficaria com 45% e Lula, 44%. Ou seja: empate técnico. O projeto neoliberal calibrou o rumo da sua campanha, centrado basicamente na imagem de FHC como o Joãozinho do Passo Certo, e recuperou a vantagem, vencendo as eleições novamente no primeiro turno. Mas ficou na população aquele gosto amargo de derrota, uma sensação de ter sido enganada por aquela mão espalmada insistentemente levantada por FHC.

Lula fez, em 1989, 1994 e 1998, uma campanha acertada: costurou alianças, cortou o Brasil vicinal com a Caravana da Cidadania e discutiu o futuro econômico do país. Não desceu aos subníveis do discurso da direita quando o seu candidato a vice, José Paulo Bisol, foi acusado de manipular verbas do orçamento para beneficiar suas terras — o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, teve de pagar indenização de R$ 1,191 milhão ao ex-candidato a vice de Lula por causa dessa acusação publicada —, e se esforçou para forjar um amplo bloco político de centro-esquerda de oposição ao projeto neoliberal.

Bonde

Naquele episódio de 1994, ficou claro que o ataque sem escrúpulos a este bloco continuava sendo uma das principais armas da direita. Na mesma ocasião, o tropeço de Rubens Ricupero — aquele que faturava o que era bom e escondia o que era ruim —, sucessor de FHC no Ministério da Fazenda, não representou qualquer arranhão à campanha tucana. A mídia viu no primeiro caso um “tropeço” de enorme gravidade e quase nenhuma no segundo.

Quando FHC se reelegeu em 1998, logo ficou claro que o país havia embarcado naquele bonde novamente porque havia a esperança de uma mudança de rumo tacitamente prometida por FHC. Como era uma impossibilidade evidente, à primeira chance houve a baldeação e Lula se elegeu presidente da República. Em 2006 e agora, a direita optou pelo espetáculo circense e a luta-livre. Serra faz pose e sorri falso. Não há responsabilidade cívica em suas intervenções e ele quer ver o circo pegar fogo.

Manter baixa a visibilidade das cores de sua bandeira contribui para sua aceitação perante uma parte considerável de brasileiros. Mas ela representa privilégios feudais e arcaísmos oligárquicos que já estão sepultados há séculos por países que, não por acaso, ao fazê-lo desbloquearam o caminho para o progresso. A direita brasileira não assume o escopo ideológico que corre em suas veias porque ela está há muito tempo superada pela história.

Holofotes

Serra é astuto. Em São Paulo ele foi artífice de uma arapuca cuja engenharia impressiona. Tudo começou no dia 29 de dezembro de 1994, quando o governador tucano Mário Covas recebeu a visita do então presidente do Banco Central (BC), Pérsio Arida, com uma carta pela qual o Estado pedia a intervenção no Banespa — a mesma que havia sido aceita, pouco antes, pelo então governador carioca, o também tucano Marcelo Alencar, e que resultou na intervenção no Banerj.

Covas recusou a trama e exigiu de Arida uma justificativa para a proposta da equipe econômica. A resposta nunca veio e o imbróglio acabou com a demissão de Arida. Mas a intervenção aconteceu e o Banespa acabou em mãos privadas. Ao longo do processo, holofotes poderosos varreram o caso e revelaram a essência de como a “era FHC” administrou a economia do país. O então editor da revista CartaCapital Carlos Drummond reconstituiu o caso com a minudência de um arqueólogo.

A reportagem, baseada em depoimentos e documentos fartamente reproduzidos, é uma minuciosa descrição da reunião de 7 de agosto de 1995, na sede do BC em São Paulo, quando foi apresentado o relatório da comissão de inquérito que durante sete meses apurou “irregularidades” no banco. Com nomes, locais, datas e diálogos, a revista divulgou que naquele dia a comissão anunciou duas decisões: denunciar algumas irregularidades ao Ministério Público e arquivar o inquérito. “O processo tem de ser arquivado porque não há patrimônio líquido negativo e o devedor principal é o próprio governo do Estado, que está negociando com o BC uma forma de amortização da dívida”, receitou, segundo a revista, o funcionário Carlos José Braz Gomes de Lemos, relator da comissão de inquérito.

Mas o então diretor do BC Alkimar Moura, presente à reunião, achou pouco e aceitou uma sugestão: avermelhar falsamente o balanço do Banespa. O artifício foi considerar toda a dívida do governo paulista com o banco como crédito em liquidação. Segundo a apuração de Drummond, o BC praticou uma repreensível “manobra contábil”: no dia da intervenção, o Banespa tinha um patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão e a dívida do Estado, no total de R$ 9,4 bilhões, estava em dia, com a exceção de “uma pequena parcela de R$ 25 milhões vencida”. “Isso significa que, no dia em que se fez a intervenção, não havia passivo a descoberto, ou seja, créditos sem perspectiva de recebimento”, afirmou a revista.

Senha

Num truque de fazer Mandrake parecer aprendiz, um saldo de patrimônio líquido positivo de R$ 1,7 bilhão foi transformado em patrimônio líquido negativo de R$ 4,2 bilhões. Os principais protagonistas da trama eram basicamente tucanos paulistas, que começaram a se organizar numa espécie de confraria ainda no governo estadual de Franco Montoro, eleito em 1982 pelo PMDB.

Na ocasião, Orestes Quércia já era o principal líder do PMDB no Estado e aceitou, em nome da unidade, ser vice de Montoro. FHC foi eleito senador pela sublegenda, de carona. Mário Covas foi nomeado prefeito de São Paulo e José Serra assumiu como o poderoso secretário de Planejamento. Sérgio Motta — ministro das Comunicações no governo FHC —, assumiu a presidência da Eletropaulo. Paulo Renato e Bresser Pereira ficaram com o controle das finanças.

Na sucessão de Montoro, o empresário Antônio Ermírio de Moraes, pelo PTB, era um dos concorrentes de Quércia ao cargo de governador e não lançou candidatos ao Senado. Covas e FHC eram os candidatos a senadores pelo PMDB. A deputada peemedebista Ruth Escobar — que mais tarde virou tucana de carteirinha e num banquete chamou Lula de “aquele mecânico” — criou um grande comitê Ermírio, Covas e FHC. Em seguida, pipocaram comitês semelhantes pelo Estado. Foi a senha para a criação do PSDB.

Fraude

Em 1995, a revista VIP publicou uma reportagem com relatos surpreendentes. Em 1990, quando Covas ficou fora do segundo turno, disputado entre Luiz Antônio Fleury e Paulo Maluf, houve uma revoada de tucanos para a candidatura do PMDB. José Serra foi um dos primeiros a apoiar Fleury. Segundo a VIP, Vladimir Rioli foi um dos caixas da campanha do PSDB e sempre transitou pelas cercanias das finanças do Estado. Com a vitória de Fleury, Antônio Cláudio Sochaczewski, o Socha, veio de uma das diretorias do BC para assumir a presidência do Banespa e Rioli, que havia sido diretor do banco na gestão Montoro, assumiu a vice-presidência de finanças — de onde saiu, misteriosamente, em 1993.

Como integrante da Comissão de Privatização da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), Rioli havia sido acusado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) de desviar 14,1 milhões de dólares. Rioli declarou à VIP: “Não havia um apoio formal do PSDB ao governo Fleury. Era um canal aberto de um grupo de pessoas dentro do partido com o governo.” A VIP fez uma lista enorme de casos de negócios irregulares dos economistas do PSDB à frente do Banespa. Pouco tempo depois, dia 7 de agosto de 1996, a revista CartaCapital denunciou a monumental fraude para intervir no banco e mais tarde privatizá-lo.

Segundo a revista, no dia 7 de agosto de 1995 Carlos José Braz Gomes de Lemos, o relator da comissão de inquérito, leu os trabalhos da comissão de inquérito que investigou as causas da intervenção, que indicavam algumas operações de crédito a empresas privadas (empréstimos concedidos pelos economistas ligados a José Serra no governo Fleury) e mostravam indícios de irregularidades. Os detalhes da fraude nunca foram contestados de maneira convincente. Segundo CartaCapital, por mais de uma vez o diretor do BC Alkimar Moura disse que o objetivo era “pegar o Quércia” — então inimigo visceral dos tucanos.

Arrepios

Serra também é artífice do copioso capítulo de atentados à Constituição de 1988 na “era FHC”. Além do fim do monopólio do petróleo, acabaram com a aposentadoria, liquidaram direitos sociais e desmontaram a infra-estrutura do país com as privatizações. Como resultado, o Brasil, assim como outros países da América Latina, cumpriu penosamente o ciclo neoliberal. E deu no que deu.

Mais uma vez, em outubro, o bonde vai passar. No letreiro, estará inscrita a expressão “Destino: Futuro”. O Brasil finalmente está avançando no projeto de tornar-se uma nação independente, baseada na democracia e na redução das desigualdades sociais. Essa é a bandeira da candidata Dilma Roussef.

Já Serra camufla sua bandeira — o candidato, a rigor, não tem plataforma política —, abusa da demagogia e se apresenta como representante de um projeto para o país que, colocado dentro de um realismo dialético que não prescinde de uma universalidade de instrumentos para bem interpretar os acontecimentos históricos, representa claramente a linha golpista da elite brasileira. O que ele não quer é enfrentar este debate às claras. Mas na campanha eleitoral tende a prevalecer a idéia de manter o país no rumo progressista. A imagem de Serra galgando a rampa do Palácio do Planalto em 2011 causa arrepios. E o Brasil tem motivos para temer essa possibilidade.