Quando as aparências enganam
Em 4 de dezembro de 2009, Barack Obama visitou a cidade de Allentown, no Estado da Pensilvânia, para debater a crise econômica com um grupo de trabalhadores.
Nessa mesma noite, o antigo governador do estado, o republicano Tom Ridge, aproveitou para apresentar suas propostas para a área econômica no talk show “Hardball with Chris Matthews”. O programa é transmitido pelo canal de notícias MSNBC (uma combinação de Microsoft e NBC), rival das emissoras CNN e Fox News.
Pensando em movimentações “simples” que a Casa Branca poderia fazer para reativar a economia, Ridge recomendou a redução dos impostos aliada a empréstimos mais generosos às pequenas empresas. Em seguida, insistiu que o presidente deveria abandonar suas preocupações ecológicas e construir centrais nucleares, algo que “certamente aumentaria a oferta de empregos e as exportações”.
Ao dar esses bons conselhos, o ex-governador se apresentava como um comentador imparcial. Porém, o que o expectador não sabia é que Ridge tinha recebido US$ 530 mil como membro do conselho de administração da Exelon, a maior companhia de energia nuclear do país.
Alguns minutos antes, nessa mesma emissora, o general aposentado Barry McCaffrey martelava que a guerra do Afeganistão exigia “um esforço suplementar de três a dez anos”, ou seja, “muito dinheiro”.
Novamente, quem assistia à transmissão não foi informado de que o “especialista” pertencia à DynCorp, uma das empresas militares privadas mais importantes do país e que rendeu a McCaffrey US$ 182 mil apenas em 2009. No momento em que o general pleiteava o prolongamento da guerra na TV, um funcionário seu havia acabado de firmar um contrato de assistência ao exército americano no Afeganistão por mais cinco anos, envolvendo aproximadamente US$ 5,9 bilhões. Em 2003, a revista semanal The Nation já havia revelado os laços estreitos que uniam o general McCaffrey às empresas militares que ele divulgava em diversos canais a cabo.
Em 2008, o jornalista David Barstow publicou no New York Times uma série de artigos, pelos quais recebeu o prêmio Pulitzer, mostrando como o Pentágono utiliza seus oficiais para difundir positivamente sua imagem na televisão.
Em 2009, blogueiros divulgaram que Richard Wolffe, antigo jornalista da Newsweek, recrutado pelo programa “Countdown with Keith Olbermann” (MSNBC), trabalhava simultaneamente para uma empresa de relações públicas especializada em “estratégias de comunicação corporativa”.
Cartas marcadas
O fato é que tais jogos de interesses são moeda corrente em um mundo midiático cada vez mais permeável aos negócios. Desde 2007, pelo menos 75 lobistas, representantes ou dirigentes de empresas, apareceram em emissoras como MSNBC, Fox News, CNN, CNBC e Fox Business Network. Isso, claro, sem que suas lucrativas atividades fossem sequer mencionadas. Com frequência, a imagem deles se repete em vários canais, totalizando dezenas ou centenas de aparições nas emissoras mais influentes dos Estados Unidos.
Com o lançamento da Fox News e da MSNBC em 1996, a torneira das “análises políticas” passou a ficar aberta 24 horas por dia e os “especialistas” financiados pelo setor privado se multiplicaram na TV a cabo em ritmo alarmante. Para dissipar qualquer dúvida, basta examinar suas intervenções televisivas em relação à crise econômica e à reforma do sistema de saúde, dois temas muito abordados ao longo dos últimos anos.
Fim de 2008. Enquanto uma onda de recessão invadia o país e o governo se preparava para aplicar bilhões de dólares na recuperação dos bancos, uma trupe de lobistas e agentes de comunicação disfarçados de comentaristas imparciais, tomou de assalto a telinha.
Entre eles está Bernard Whitman, presidente da Whitman Insight Strategies. Essa empresa oferece como um de seus serviços um “guia para um lobby eficaz e campanhas de comunicação e de informação com objetivos certeiros”. Sua clientela é composta por escritórios de lobby e relações públicas, tais como Ogilvy & Mather, os quais, por sua vez, atendem a inúmeras multinacionais, sobretudo com o intuito de orientar políticas federais. Contudo, Whitman, veterano da era Clinton, continua a aparecer na televisão unicamente como especialista.
De acordo com sua página na internet, a Whitman Insight Strategies auxilia a gigante de seguros American International Group (AIG) a “desenvolver, testar, lançar e melhorar sua marca de ‘grande público’”, além de promover a “adaptação da empresa às evoluções do mercado”. A AIG postou no site YouTube uma centena de vídeos recuperando as melhores intervenções televisivas de seu diretor.
Em 18 de setembro de 2008, convidado pela Fox News a opinar sobre Sarah Palin, Whitman acusa os republicanos de “não entenderem nada a respeito da economia mundializada1” por terem proposto “deixar a AIG falir”. Em nenhum momento, porém, a emissora mencionou o fato de ele trabalhar nessa corporação.
Entre os prestadores de serviço para a AIG figura também Ron Christie. De 2006 a setembro de 2008, quando trabalhava para a DC Navigators – hoje Navigators Global, empresa de consultoria e relações públicas próxima ao Partido Republicano –, Christie foi designado como lobista da AIG. Durante o mesmo período, a AIG depositou US$ 590 mil em contas da empresa DC Navigators. Desde então, devido ao sucesso de suas empreitadas, Christie criou a própria consultoria.
Temas restritos
É sem grande surpresa, portanto, que o encontramos em 18 de setembro de 2008 no programa “Hardball”, da MSNBC. O apresentador Chris Matthews apresenta Christie como um “analista republicano”. Em seguida, ao evocar em tom zombeteiro a coletiva de imprensa que o presidente George W. Bush havia dado sobre a crise, é interrompido pelo convidado: Bush “agiu corretamente ao acionar um veterano da Goldman Sachs, um homem muito inteligente e que entende o funcionamento dos mercados e da liquidez”. Christie se referia a Henry Paulson, secretário do Tesouro na administração Bush e antigo diretor da Goldman Sachs, empresa que acabava de desempenhar papel-chave no plano de salvamento da AIG. Argumenta o lobista da AIG: o presidente “escolheu a pessoa certa para gerenciar a crise”.
Mas não para por aí. A AIG foi protegida por muitos outros personagens influentes na política. No fim de 2008, pouco depois de abocanhar uma primeira fatia de fundos públicos, a companhia de seguros confiou a gestão de “temas delicados” à empresa de consultoria e relações públicas Burson-Marsteller. Esse escritório, por sua vez, recorreu à antiga chefa de imprensa da Casa Branca na administração Bush, Dana Perino. Um mês depois essa habituée da televisão se juntava à equipe da Fox News para se tornar a especialista em “temas delicados”.
Assim, em julho de 2009, Perino reinava no palco de “Money for breakfast”, programa matinal da Fox Business Network. O apresentador mencionou sua filiação ao escritório Burson-Marsteller, mas nada falou sobre os laços dessa empresa com a AIG. Depois de um convidado sustentar que a gigante de seguros mostrou objeção em relação a uma “regulação mais apertada” antes da crise financeira, Perino aproveitou a deixa e rebateu: a vontade do governo em empreender uma reforma do sistema financeiro revelaria a “tendência de Washington de reagir à crise com exagero”.
Anti-Obama
A confusão entre jornalismo e lobby apareceu novamente em outro debate, dessa vez sobre a reforma do sistema de saúde. Terry Holt, um dos porta-vozes do Partido Republicano, ficou conhecido nacionalmente como representante do grupo de seguros America’s Health Insurance Plans (AHIP). Em 2007, quando fundou o escritório de lobby e comunicação HDMK com três outros sócios republicanos, o AHIP tornou-se, naturalmente, um de seus clientes.
Em 5 de março de 2009, Holt foi um dos convidados do programa de David Schuster na MSNBC. Apresentado somente como “republicano”, Holt acusou o governo Obama de querer “suprimir a cobertura do Medicare [sistema público de seguro-saúde destinado a idosos sem recursos] a 11 milhões de idosos para começar sua grande reforma da saúde”. Uma maneira no mínimo falaciosa de resumir a dita reforma.
No cenário da campanha anti-Obama, Holt conta com inúmeras reprises na CNN, que apenas uma vez assinalou seus vínculos com as seguradoras, no dia 14 de setembro de 2009, em sua participação no talk show “The Situation Room”. Alguns dias depois, a emissora de notícias apareceu envolvida em um pequeno escândalo: o blogueiro Greg Sargent revelou que o editorialista Alex Castellanos, comentador convidado da CNN, havia emprestado seu talento à campanha de marketing da AHIP. Contudo, sempre que criticava a reforma do sistema de saúde, Castellanos aparecia na tela unicamente como “observador republicano”.
Indagado sobre esse caso, Holt afirmou que a CNN não omitiu sua aliança com a AHIP e jura de pés juntos que suas aparições em canais a cabo “são mais eficazes se acompanhadas do máximo de transparência”. E sublinha: “quando você se dirige ao público, é perfeitamente legítimo que este saiba quem você é e de onde vem. Considero meu dever divulgar meu perfil aos veículos de mídia que me convidam e deixar a eles a tarefa de julgar”.
Da mesma forma que os republicanos, lobistas democratas aparecem na televisão sem a menor referência à sua clientela de seguradoras ou empresas da indústria farmacêutica.
Dois casos são particularmente ilustrativos levando-se em consideração a importância dessas personalidades na política americana: Richard Gephardt e Thomas Daschle. O primeiro preside o grupo parlamentar democrata na Câmara, foi candidato de seu partido nas eleições presidenciais de 1988 e conta com o apoio entusiasta de sindicatos ao longo de sua carreira. O segundo presidiu o grupo parlamentar democrata no Senado. Tanto um como o outro são muito conhecidos pelo público e geralmente associados à ala de esquerda do partido, o que faz com que suas opiniões ganhem peso e legitimidade, inclusive quando apoiam grandes empresas.
Em 24 de setembro de 2009, Gephardt apareceu no programa da MSNBC “Morning Meeting”. Na ocasião, qualificou como “não essencial” a ideia de criar um seguro público (chamado de public option) defendido com unhas e dentes pela maioria dos democratas. O apresentador introduziu seu convidado de maneira absolutamente formal: o opositor da reforma falava na qualidade de antigo membro do Congresso, testemunha, em 1993, da desistência de Bill Clinton de levar adiante um projeto como esse. Nenhuma palavra é mencionada sobre Gephardt e suas atuações como consultor de companhias de seguro e laboratórios farmacêuticos por meio da própria empresa, a Gephardt Government Affairs. Também não é feita qualquer menção ao seu trabalho como lobista para o grupo NBC/Universal.
Thomas Daschle, por sua vez, acumulou três aparições televisivas em quatro meses, todas elas relativas ao sistema de saúde. Em cada uma das vezes, o antigo senador democrata criticou a reforma sem que o público tivesse conhecimento de um pequeno detalhe: Daschle é funcionário da Alston & Bird, uma empresa de lobby ligada ao grupo de seguradoras United Health Group.
O ponto é que jornalistas e cidadãos não sairão ilesos da onipresença midiática de meia dúzia de lobistas não identificados de forma adequada. Sobre essa questão, a antropóloga Janine Wedel, autora do livro Shadow elite, observa: “quando um grupo de figuras midiáticas com algum tipo de legitimidade profere o mesmo discurso repetidamente, ocorre um efeito cumulativo que impele o público a se colocar ao seu lado2”.
A maior parte da responsabilidade pela confusão entre gêneros (especialista-lobista) é dos canais de televisão, que convidam os comentaristas sem identificá-los corretamente.
luz no fim do túnel
Aaron Brown, demitido da CNN em 2005 depois de quatro anos à frente do programa “News night”, tornou-se professor de jornalismo na Universidade do Arizona. Para Brown, há uma falha mais geral, característica do jornalismo televisivo: a mania de, por comodidade e economia, remeter a informação a especialistas. “Esse procedimento é menos oneroso que enviar, por exemplo, um correspondente ao Afeganistão. Mas vale lembrar que não se trata de jornais moribundos: essas emissoras são empresas lucrativas, que aportam muito dinheiro às multinacionais às quais pertencem”, observa o professor.
Contudo, há luz no fim do túnel. A CNN passou a identificar as indústrias por trás de alguns de seus analistas e, na esteira da concorrente, a Fox News também começou a apresentar as empresas que seus comentadores representam3. Nem sempre, claro.
Resta o caso da MSNBC, o canal a cabo mais propenso a receber porta-vozes de multinacionais. Contatada em janeiro, a diretoria da emissora afirmou sua determinação em solucionar o problema.
David McCormick, responsável pela “ética profissional” da MSNBC, assegurou que a questão dos jogos de interesse é uma preocupação antiga. Ele alegou que é responsabilidade dos próprios convidados “informarem à emissora em relação aos seus eventuais interesses cruzados”. “Há anos, repetimos aos colaboradores como a transparência é um fator importante e que não se deve omitir nada do público em relação ao perfil dos convidados. Somos impecáveis em tal conduta? Não”.
Em outubro de 1998 as normas internas da NBC consagraram que “É imperativo que os telespectadores compreendam a perspectiva a partir da qual fala um convidado a um programa. Nosso público deve dispor de todas as informações necessárias a fim de poder tirar as próprias conclusões em relação ao assunto tratado. Não é suficiente dizer ‘John Doe, da fundação X’. Da mesma maneira, não é necessariamente suficiente indicar ‘Jane Doe, consultora da NBC’. A identidade do comentador/convidado pode ser oferecida ao telespectador verbal ou visualmente, mas sempre de maneira clara”.
Em 22 de janeiro, apenas alguns dias após entrevistarmos McCormick, a MSNBC convidou para o programa “Morning Joe” um certo Mark Penn, que criticou de maneira virulenta a reforma do sistema de saúde. Foi apresentado como “estrategista democrata” e “antigo responsável pelas enquetes de opinião pública sobre o governo Clinton”. Nenhuma palavra para assinalar que esse homem de competências é também diretor-presidente da Burson-Marsteller, uma das maiores agências de lobby do país – e que dispõe de um departamento dedicado inteiramente às questões de saúde, a fim de permitir às gigantes farmacêuticas como Pfizer ou Eli Lilly “manter uma imagem benéfica” na sociedade.
No fim das contas, é como se a autoridade dos lobistas fosse um fenômeno lamentável, mas inevitável, um efeito colateral de um sistema político e midiático no qual as fronteiras entre interesses públicos e privados não fazem sentido.
“É desconcertante ver que um problema tão grave não chama a atenção daqueles que se reportam ao diretor de programação, como se fosse um buraco negro”, lamenta Andy Schotz, presidente da comissão de ética da Sociedade dos Jornalistas Profissionais.
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1 Em setembro de 2008, Henry Paulson, Secretário do Tesouro do governo Bush, optou sucessivamente por não socorrer as empresas Wall Street Bear Stearns e Merryl Lynch, e ser fiador do American Insurance Group (AIG).
2 Janine R. Wedel, Shadow Elite, Basic Books, New York, 2009.
3 Procurados pelo autor, CNN e Fox News se recusaram a responder nossas perguntas.
Sebastian Jones é jornalista.
Fonte: Le Monde Diplomatique