Após os acontecimentos narrados no artigo anterior, nos anos imediatamente subsequentes os EUA, com o apoio de alguns países desenvolvidos, tentaram modificar de todas as maneiras o conteúdo da Declaração de Helsinki nos artigos 19, 29 e 30, ou seja, aqueles que tinham implicação direta com o tema do double standard de pesquisas com seres humanos, além da não obrigatoriedade do patrocinador de uma pesquisa em se responsabilizar pela continuação dos cuidados com o sujeito da mesma após terminado o ensaio. Apesar de conquistarem algumas mudanças favoráveis a suas ideias na revisão das diretrizes do CIOMS do ano de 2002, na Assembléia Médica Mundial do ano de 2004, realizada em Tóquio, Japão, e no Fórum Oficial de discussão das mudanças na Declaração, as pretensões estadunidenses foram temporariamente sepultadas pela rejeição da maioria dos países presentes. A imediata tomada de posição dos EUA, na ocasião, foi deixar de reconhecer a Declaração de Helsinki como documento referencial para o tema das pesquisas com humanos.
Mais recentemente, no final de 2006, o Conselho Nacional de Saúde do Brasil recebeu uma denúncia sobre o uso de sujeitos humanos de pesquisa como cobaias no estado do Amapá, próximo da fronteira norte entre o Brasil e a Venezuela. Investigações públicas constataram que um grupo de pessoas eram pagas (entre 6 e 10 dólares ao dia) para capturar mosquitos e se submeter a 100 picadas desses insetos infectados pela malária na proporção de 3.5%. A pesquisa foi promovida por uma universidade estadunidense em cooperação com importantes instituições de pesquisa brasileiras e financiadas pelo NIH. O sangue dos sujeitos da pesquisa, coletado dos mosquitos capturados, estava descrito no protocolo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Institutional Review Board – IRB) da Universidade
O procedimento de captura de mosquitos pelo método de “isca humana” consiste na exposição de partes do corpo para pouso do mosquito e aspiração dos mesmos antes da picada. É um método rotineiramente utilizado, tanto em pesquisa quanto em medidas de vigilância entomológica. Segundo Forattini (23), a segurança do método reside na destreza do capturador em aspirar rapidamente todos os mosquitos pousados antes que eles possam iniciar a picada.
Quando realizado por técnicos e pesquisadores treinados, parece não haver aumento de risco em relação à exposição natural, apesar de não haver estudos definitivos para sustentar essa afirmação. O problema da pesquisa em foco foi que ela utilizou membros da própria comunidade para a captura, sem ter determinado critérios de seleção dos sujeitos que poderiam participar da atividade e fornecendo treinamento algumas semanas antes de iniciar a pesquisa. De forma que a segurança desses sujeitos no procedimento não poderia ser comparada à de técnicos experientes. De qualquer forma, a utilização da expressão guinea pigs não é bem aplicada a esse procedimento e a exploração sensacionalista dada pela imprensa tem prejudicado, segundo relatos de pesquisadores da área, a aprovação de pesquisas que utilizam de forma criteriosa o procedimento.
Já a alimentação de mosquitos capturados em ambiente em humanos não se encontra descrita em nenhum livro texto apesar de já ter sido utilizado em trabalhos anteriores (24, 25, 26). Esse procedimento, na dependência do índice de infectividade dos mosquitos no local e da quantidade de mosquitos alimentados, porta, evidentemente, um risco significativo de hiperinfecção, infecções mistas, e outras zoonoses, o que o diferencia sobremaneira do ponto de vista do risco implicado de procedimentos como inoculação de plasmodium para pesquisa de vacina, situação em que se conhece bem a virulência e a carga infecciosa inoculada.
No projeto estava programado que os sujeitos se deixassem picar por 100 mosquitos, duas vezes ao ano. Não está descrito a quantidade de dias que o procedimento seria feito. O pesquisador que conduziu o experimento em campo disse que estavam previstas quatro noites a cada vez, mas o procedimento foi feito uma única noite e suspenso em seguida. Segundo membros da comunidade ele foi feito durante quatro noites, uma única vez. Em dois locais do protocolo original se encontra claramente menção à alimentação de mosquitos em humanos. No capítulo de descrição da metodologia se encontra: “Mosquitoes captured from human landing counts will be blood-fed on team member volunteers who have taken the recommended Ministry of Health malaria prophylaxis for the region.” (pg 37). E no capítulo de descrição da participação dos sujeitos está escrito: “The team volunteers who blood feed the mosquitoes during the mark-recapture experiments will be provided with the current Ministry of Heath recommendation for chemoprophylaxis in this region” ( pg 43). Da mesma forma, no documento de consentimento assinado pelos sujeitos, o procedimento se encontra ainda mais claramente descrito no seu item 6: “(…).Você será solicitado como voluntário para alimentar 100 mosquitos no seu braço ou perna para estudos de marcação-recaptura. Isso acontecerá duas vezes ao ano”.
É indispensável registrar que, na metodologia da pesquisa acima descrita, existiam dois grupos de sujeitos humanos. Um dos grupos serviu para o emprego da técnica de captura dos mosquitos em que os sujeitos são denominados de “iscas humanas”, procedimento rotineiramente utilizado em pesquisas entomológicas com vetores da malária e que não apresenta risco adicional aos indivíduos que vivem em áreas endêmicas. Para estes, naturalmente, não é correta a utilização da expressão “cobaias”. No outro grupo, no entanto, o procedimento de captura dos mosquitos se deu por meio de “repasto sanguíneo em humanos”, ou seja, as pessoas que dele faziam parte foram concretamente submetidas a picadas de mosquitos infectados, sendo procedente no caso, portanto, a expressão “cobaias”.
Está claro que o raciocínio usado pelo comitê de ética (IRB) da universidade estadunidense para aceitar tão alto grau de risco foi baseado no critério de double standard.
A apresentação pública dos informes dos pesquisadores pelo Conselho Nacional de Saúde, em Abril de 2006, mostrou que os procedimentos de repasto sanguíneo e captura dos mosquitos, por meio da exposição de membros das comunidades locais, foi omitido na versão em Português do protocolo recebida pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Como a versão original em Inglês não pode ser examinada sem tradução por uma Comissão Brasileira, o protocolo também foi aprovado no Brasil e a pesquisa teve início.

Referências:

23. Forattini OP. Coulicidologia Médica. São Paulo, Edusp, Volume 2, 1997.
24. Roberts DR, Wilson D, Alecrim AM, Tavares , McNeill KM. Field observations on the gonotrophic cycle of Anapheles darlingi (Díptera: Culicidae). Journal of Medical Entomology 1983, 20(2): 189-92.
25. Charlwood JD, Alecrim AM. Capture-recapture studies with the South American malaria vector Anopheles darlingi. Annals of Tropical Medicine and Parasitology 1989, 83(6):569-76.
26. Santos R, Forattini O, Burattini M. Laboratory and field observations on duration of gonotrophic cycle of Anopheles albitarsis (Díptera: Culicidae) in Southern Brazil. Journal of Medical Entomologogy 2002, 39(6): 926-30.