Existem alguns temas que têm sido, sistematicamente, considerados intocáveis por boa parte dos analistas, no debate recente a respeito dos rumos da economia brasileira. Um deles é a estabilidade econômica. Sem dúvida alguma, é forçoso reconhecer que a partir de 1994, com a implementação do Plano Real, nossa sociedade alcançou um novo patamar no que se refere aos índices de inflação. Talvez as gerações mais novas não tenham a dimensão exata do quão difícil tenham sido os anos de convivência com ritmos frenéticos de crescimento dos preços. E, além disso, a verdadeira sensação do que tenha significado sobreviver às inúmeras tentativas fracassadas de reduzir a inflação, com os diferentes choques de estabilização econômica e as muitas “novas moedas” criadas a cada momento. Assim foi o Plano Cruzado, o Plano Cruzado II, o Plano Bresser, o Plano Verão, o Plano Collor e mais algum que eu talvez tenha esquecido no meio do caminho….

No período entre 1980 e 1994, a média mensal (sim, eu disse mensal!) da taxa de inflação foi próxima a 20%, com momentos de pico alcançando 40%, 60% e até 80% num único mês. E depois vinha o plano de plantão, a inflação caía a zero num primeiro momento e retomava, logo em seguida, a sua ascensão lenta e segura. Entre 1980 e 1994, a média das taxas anuais de inflação foi de quase 750%. Já entre 1995 e 2010, ela cai para 7,5% ao ano. Uma diferença significativa e que deve ser levada em conta em qualquer análise. Mas a intenção aqui não é discutir as causas da inflação crônica e elevada no País, nem o insucesso dos planos anteriores a 1994. Tão somente trazer à memória a profunda carga de significado que a sociedade traz até hoje de uma economia menos suscetível ao fenômeno inflacionário.

É igualmente importante lembrar que os setores mais penalizados com a inflação são os trabalhadores e os que recebem algum tipo de remuneração mais baixa. Havia momentos em que a inflação era medida diariamente, com algum tipo de indexador para que se pudesse avaliar o efetivo poder de compra de uma determinada quantidade de moeda “oficial” da época. Às vezes, a referência de preço era o dólar, em outros momentos era alguma tabela oficial, divulgada pelo próprio governo. E quem não tinha acesso a algum banco para deixar o recurso dormindo “mais seguro” até o dia seguinte, acordava de manhã com menos capacidade de consumo. E o que dizer, então, do valor real do salário nominal ou da aposentadoria recebidos no dia 10 do mês posterior aos 30 dias trabalhados?

É por isso que os economistas cunharam a expressão “imposto inflacionário”, pois o governo detém o monopólio de emissão da moeda e consegue manter o seu poder compra. Os grandes grupos econômicos e empresariais conseguem operar com políticas de estoque, compras de fornecedores a prazo, aplicações financeiras cotidianas e outras formas para escapar das perdas. Já os trabalhadores e os setores com menor capacidade de barganha acabavam por transferir renda para os setores que conseguiam se defender da corrosão inflacionária.

Com isso, é compreensível que o êxito obtido a partir do Plano Real na manutenção de níveis baixos de inflação seja encarado, pela maioria da população, como uma conquista a ser defendida. E aqui entra a primeira dificuldade em se discutir o atual modelo de equilíbrio macroeconômico. A base de sustentação teórica da estabilização macroeconômica foi o chamado “tripé”: i) política monetária com metas de inflação a serem perseguidas; ii) liberdade cambial; e iii) metas de superávit primário. Antes de avançar, vamos traduzir um pouquinho o economês.

O primeiro “pé” pressupõe que a “autoridade monetária” (no nosso caso, o Banco Central) opere com metas de inflação a serem atingidas no horizonte futuro. Há diversos modelos econométricos que tentam projetar a inflação futura. Com números e resultados para todos os gostos. E esses mesmos “modelitos” informam qual a taxa de juros necessária para manter o modelo em equilíbrio e atingir tal meta de inflação. Atualmente, por exemplo, o COPOM do BACEN trabalha com a hipótese de inflação de 4,5% para os anos de 2010 e 2011. E dá-lhe SELIC a 10,75% para que tal meta seja atingida. Ou seja, para não se correr nenhum risco da “inflação escapar do controle”. Ocorre que o fenômeno econômico não funciona como uma fórmula química, onde duas moléculas de hidrogênio em contato com uma molécula de oxigênio com muita segurança formarão uma nova substância que chamamos água…

O segundo “pé” refere-se à taxa de câmbio e ao mercado de câmbio. A exemplo do caso acima, este também é fortemente carregado de conteúdo ideológico. “Liberdade cambial”! Maravilha, não parece? Ora, somos todos contra as ditaduras, a favor das liberdades; contra as restrições, a favor das movimentações; contra as opressões, a favor das múltiplas opções, não é mesmo? O termo se origina numa ofensiva contra aquilo que os economistas liberais chamam de “câmbio administrado”. Horrível! O Estado entrando no mercado e controlando a taxa de câmbio, quando esta deveria ser o resultado absolutamente natural do equilíbrio ente as forças de demanda e de oferta. A solução mágica e infalível deste ente todo-poderoso e infalível, o mercado. Como esse item é o título do artigo, voltaremos a ele com mais calma daqui a pouco.

O último “pé” também é conhecido nas quebradas por “austeridade na condução da política fiscal”. Fiscal, pois diz respeito ao equilíbrio nas contas públicas, o resultado final entre receitas e despesas públicas, certo? Não! E aqui entra mais um dos pulos do gato. O detalhe é o adjetivo “primário” que passou a acompanha a expressão “superávit fiscal”. Isso significa que deve ser feito, sim, um grande esforço para que as receitas do Estado sejam maiores do que as suas despesas. Mas o resultado obtido vai ser usado para pagar …. despesas! Sim, pois as despesas com pagamento de juros da dívida pública não entram nessa conta. Tais gastos são considerados “imexíveis” no modelo em vigor. E como os grandes meios de comunicação não falam em outra coisa senão na enormidade da máquina pública, no suposto absurdo da nossa carga tributária, etc, logo o superávit tem sido obtido sempre às custas da redução das despesas correntes, de preferência na área social. Atualmente, a meta oficial do governo é de alcançar 3,2 % do PIB como superávit primário.

Muitos aí devem estar se remexendo na cadeira, com aquela pergunta que não quer calar: mas, peraí, Paulo, não haveria outra forma de se promover a estabilidade econômica? Indagação mais do que justa, aliás! Dá prá imaginar que a resposta a essa simples dúvida daria teses e mais teses de doutorado! O espaço aqui não é o mais adequado para eu me aprofundar no assunto. Eu diria que sim, é possível haver outras formas. Mas os sucessivos fracassos com as tentativas chamadas “heterodoxas” antes do Plano Real acabaram por reforçar a opção pelo tratamento de viés ortodoxo. As revistas de economia até criaram uma sigla para esse fenômeno: era a tal da TINA, do inglês “there is no alternative”. Uma forma elegante de dizer que não haveria alternativa ao modelo neoliberal de ajuste econômico. Mas mesmo assim, há muito espaço para aperfeiçoamento e ajuste de sintonia fina no tal do tripé, de maneira a preservar a estabilidade e não prejudicar a maioria da população em relação à minoria que se beneficia do espírito financista que caracteriza o modelo.

O primeiro aspecto é o da taxa SELIC. Não existe uma única resposta para uma suposta “taxa de juros de equilíbrio” nos modelos econométricos. As decisões do COPOM são tomadas com base em uma pesquisa realizada entre os próprios operadores do mercado financeiro. Pessoas e instituições que, obviamente, não estão lá muito interessados em que haja uma redução expressiva no patamar da taxa de juros. E, dessa forma, seguimos, lá na frente, o Brasil disparado, campeão do mundo no quesito. Há dois argumentos, implícitos nos modelos, para justificar esse nível absurdo dos juros. O primeiro é de que juros altos desestimulam o consumo – ou seja, reduzem a demanda agregada na sociedade e com isso impediriam as pressões inflacionárias. O segundo é que juros altos atraem capital externo e isso ajudaria a manter o equilíbrio nas contas externas – setor esse também historicamente problemático em economias dependentes como a nossa.

E agora, finalmente, chegamos ao ponto do título do artigo. O afluxo de recursos externos tem ocorrido com intensidade há muito tempo. Há muitas razões para tanto. O Brasil melhorou seu desempenho no setor externo, o nível de reservas internacionais atingido é bastante elevado, a dívida externa foi reduzida de forma expressiva (apesar de ter como contrapartida a elevação desproporcional da dívida interna), a partir de 2008 foi finalmente “conquistado” o tal conceito de “investment grade” – o tão desejado reconhecimento pelas consultorias financeiras internacionais do Brasil como local recomendado para investimento estrangeiro. Sempre na lógica do capital especulativo: uma praça mais segura e mais rentável.

Com esse nível elevado de taxa de juros e a queda dos juros nos principais mercados do mundo depois da crise de 2008, aplicar no mercado financeiro do Brasil tornou-se uma opção ainda mais atrativa em termos relativos. Com a garantia dessa rentabilidade extraordinária, os recursos externos vêm para cá e influem na economia por diferentes mecanismos, quase sempre de maneira perversa. (1) . Como o regime de câmbio adotado é o da chamada liberdade cambial, a taxa do real em relação ao dólar é definida a cada dia em função do equilíbrio da oferta e demanda da moeda norte-americana em nosso País. Como há muito recurso externo entrando, há muita oferta de dólar. Com isso, o “preço” do dólar tende a baixar. E, assim, a taxa de câmbio do real tende a se valorizar. Um movimento típico foi o dia 15 de setembro último, quando a cotação chegou ao mínimo de R$1,71/US. Por quê? Simplesmente pelo fato de que o anúncio da oferta de novas ações da Petrobrás pelo mundo afora provocou uma enxurrada de recursos externos aqui para dentro e “derrubou” o câmbio, no jargão do “financês”.

Ora, um mercado que opera com tal grau de incerteza e de assimetria de informação e poder de barganha entre os agentes operantes não pode ser analisado como se fosse um simples mercado de batatinha na feira, onde a dona de casa pode optar pela banca mais barata dentre as inúmeras existentes, resolver por pagar mais caro pela batata de maior qualidade ou ainda se arriscar a comprar no final a preços de xepa. Os agentes que têm poder de fogo no mercado financeiro, e no de câmbio em especial, são instituições com muito fôlego e recursos suficientes para bancar disputas e especulações, inclusive contra o próprio governo brasileiro e o Tesouro Nacional. Se a opção governamental continuar aquela de ficar observando, como mero agente passivo, o comportamento do chamado “mercado”, as conseqüências serão cada vez mais sérias. A taxa de juros continuará elevada e o câmbio sobrevalorizado, com todo o custo social, político e econômico derivado de tal postura.

O regime da pseudo “liberdade cambial” nada mais significa senão a liberdade oferecida a alguns poucos e enormes agentes de especular e ganhar muito dinheiro contra o sacrifício imposto à maioria da população de nosso País. Está cada vez mais claro que esse sistema de valorização artificial do real nada tem a ver com um equilíbrio natural das forças de oferta e de demanda. Trata-se de um jogo pesado de especulação contra a soberania nacional, que tenta colocar o governo contra a parede, com a chantagem velada que se resume numa ameaça permanente: “muito cuidado, pois se você mexer nas regras do jogo, eu vou sabotar!”. Ou alguém tem a ilusão de que são as famílias de classe média viajando para Miami que pressionam o mercado de câmbio, ao buscarem seus dólares para gastar na Disneyland?

Na verdade, a solução passa pelo reconhecimento de que o País deve mudar sua conduta com relação à entrada de capital especulativo. É necessário tomar a consciência e a decisão política de que esse recurso aventureiro que pousa por aqui em busca da remuneração fácil não nos interessa! Se quiser ficar por um tempo mais longo e contribuir para elevar o nosso nível de investimento no setor produtivo – ótimo! – será bem vindo. Caso contrário, que pague um imposto, a ser retirado do rendimento absurdo proporcionado pela SELIC. Sob tais circunstâncias, uma parte dos operadores do mercado financeiro internacional pensará 2 vezes antes de emitir ordens de compra para cá. O afluxo de recursos externos menor pressionará menos a taxa de câmbio, que encontrará outro patamar, digamos, mais realista.

Finalmente, no que se refere ao superávit primário. Uma taxa de juros de juros mais baixa e uma taxa de câmbio menos valorizada, permitirá ao governo uma postura mais flexível nesse departamento. Ou seja, não assumir um compromisso tão irresponsável como esse de garantir o pagamento dos juros da dívida superior a 3% do PIB a todo custo, inclusive por meio de cortes orçamentários nas despesas de natureza social. Responsabilidade na condução do balanço receitas x despesas públicas? De acordo, isso realmente é importante. Mas que as despesas relativas ao serviço da dívida pública não recebam mais esse tratamento VIP face às demais despesas com saúde, educação, previdência social e similares.

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Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.

(1) – A respeito, ver o excelente artigo do economista Michael Hudson, aqui mesmo na página: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16960

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

Fonte: Carta Maior