Serra e a ameaça da mídia
Teria mesmo de acontecer uma hora dessas, mais cedo ou mais tarde, e acabou acontecendo. Alguns veículos da mídia abriram o coração e confessaram oficialmente que são cabo-eleitoral de José Serra. São os últimos lances da campanha conservadora para tentar levar a disputa presidencial para o segundo turno e um esforço para manter a candidatura Serra, que veio do nada e ao nada retornará — um teste de produto eleitoral mal-acabado, que tem vivido com o oxigênio da campanha midiática contra o governo Lula —, distante do que ela realmente é: uma proposta de governo que representa um desastre para o país. Serra só conseguiu demonstrar condições de existir como candidato por meio de falsidades.
A declaração oficial da mídia pode ser interpretada como uma confissão de que nesta semana final de campanha ela vai para o desespero. É tudo ou nada. Viciada na arte de pescar em águas turvas — tão comum na velha política da direita brasileira —, a mídia já criou tumulto suficiente para impedir que a democracia se manifeste em sua plenitude. Se essas agressões ao sagrado direito à informação vão ou não ter alguma relevância para o resultado final das eleições é coisa que o tempo dirá. Mas o tumulto, mais um na longa lista das campanhas eleitorais, está aí. Como lidar com isso, neste momento em que a sucessão presidencial começa a entrar na agenda de preocupações institucionais?
Da mesma maneira como se lida com uma cobra cascavel: com extremo cuidado. O importante é não permitir que a serpente bote o ovo. Diante da salada de falsas questões, idéias sem nexo e fatos incompreensíveis que é servida diariamente no noticiário político, o que se tem, na maior parte do tempo, é desinformação. Por isso, a massa que apóia Dilma Rousseff precisa se levantar para cobrar, com vigor, ética de verdade na política. Cobra se mata acertando a cabeça. Serra tem todo o direito de tentar convencer o eleitor de que não existe na disputa ninguém melhor do que ele para presidir o país. Só não dá para aceitar que ele e sua mídia convençam alguém com base em falsidades.
Programa de governo de Serra
Uma boa maneira de economizar tempo quando se pensa nas eleições para presidente da República é deixar de lado a ficção de que não vai acontecer nada de mais se Serra for eleito para governar o Brasil. Vai acontecer, sim, e não vai ser pouco. Poderia haver aqui uma lista de problemas que o Brasil teria de enfrentar com ele no poder. Mas é fácil imaginar o país com alguém como Serra no seu comando. O Brasil sem Dilma na Presidência será um país. Com ela, será bem outro. A idéia de privatizar a Petrobrás, a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco do Brasil (BB), se Serra ganhar, por exemplo, não é boato. Ela consta do seu programa de governo desde 1500. Se vai acontecer ou não, depende da correlação de forças — como dependeu na nefasta “era FHC”. Essa é uma verdade que precisa ser massificada como essencial para se contrapor à avalanche de factóides e falsidades que acabarão sendo lembrados pelos 15 minutos de fama que tiveram na campanha.
Serra não tem atraído muita simpatia, ou convencido muita gente, desde que apareceu em público, dias atrás, em estado de severa agitação mental, acusando o governo de querer destruir a sua candidatura. É o tipo da coisa que teria tudo para dar em nada, nessa pescaria em que seus ideólogos vêm jogando muito anzol e pegando pouco peixe, em sua busca de provas sobre “violações de sigilo” e “corrupção” no governo. Mas o jogo da direita é sujo por definição.
Serra, diante da necessidade real de tomar uma atitude, achou que o melhor a fazer seria apresentar-se ao eleitorado como vítima de um ato vil do governo. E não faltaram vozes que expressaram esse pensamento do candidato da direita. Trata-se, com certeza, de uma das piores pragas que envenenam os atuais usos e costumes do ambiente político brasileiro. Acusações, suspeitas e indícios são divulgados como se fossem provas de culpabilidade — e a pessoa envolvida se vê condenada antes que consiga abrir a boca para dizer uma única palavra em sua defesa.
Efeitos do golpe de 1964
O recurso do vazamento, como todos sabem, tem sido utilizado de maneira quase sistemática — e seus autores normalmente são elevados a heróis, sem nem uma explicação ao público sobre os meios que estão por trás desse recurso. A pergunta que precisa ser feita diturnamente é: isso tudo é ético? O país, a Justiça, os brasileiros, a democracia ganham com algo desse tipo? Tudo isso já é bastante complicado para o candidato da direita, mas ainda não é o pior. O pior é que, depois da “violação de sigilos” e do “escândalo da Casa Civil”, o que se oferece ao público é a história de que há um candidato capaz de restaurar a moral e os bons costumes. Ou seja: golpismo refinado.
Estamos vivendo até hoje os efeitos do golpe de 1964, que era desejado pela elite mais feroz, ignorante e vulgar do mundo, que é a brasileira, lembra o respeitado jornalista Mino Carta. Ela é a responsável, diz ele, e os militares executaram esse projeto. Aliás, o golpe é um divisor de água. Depois dele, o Brasil entrou na era do passado. Vimos essa era retratada, por exemplo, nos penachos amarelos desfraldados pelos gatos pingados no ato dos líderes direitistas realizado dia 22 passado em São Paulo, quando lançaram um tal “Manifesto” pela “democracia”. Havia ali um sinal que não pode ser debitado ao acaso: os conservadores estão isolados após a curta experiência de um modo de governar menos autoritário, menos prepotente, menos insensível às questões sociais.
As má-criações de figuras subqualificadas como Fernando Henrique Cardoso (FHC) e José Serra têm o mérito de escancarar à nação a extraordinária capacidade que certos líderes políticos têm de reinventar a realidade para agasalhar interesses particulares. Para os direitistas, os votantes do campo governista são ignorantes, desprovidos de informações. São os incapazes de ver a “corrupção” que tomou conta do país. Por isso, mesmo contra a vontade desse “povão”, eles se auto-intitulam os escolhidos para restaurar a ordem e a moralidade públicas. Na verdade, em nome dessas bandeiras o que se vê é o mesmo histórico amontoado de asneiras, meias-verdades e mentiras pela boca de pessoas que se julgam mais sábias do que todos e em quem o povo deve acreditar cegamente.
Privatizações selvagens
O enquistamento em curso, talvez uma reação prematura ao embate que se desenha árduo contra uma presidenta bastante popular, traz de volta cenas que predominavam do início da década de 1960. Apesar da distância no tempo, e da forma diferente de apresentação das propostas, as idéias daqueles golpistas não são estranhas ao nosso tempo. A tese da direita de que seus líderes têm um papel definido como constituintes de um poder moral ou espiritual compõe o “arsenal de idéias” da dupla PSDB/DEM — verbalizada pela mídia. E ainda há os que negam a marcha do golpismo no Brasil! Esse “arsenal de idéias” está aí, por exemplo, na forma como Serra e sua mídia vêm agindo. Como diz o povo, para conhecer um vilão basta entregar-lhe o bastão.
São usos e costumes que ficaram bem demonstrados na “era FHC”, inimiga mortal da “era Vargas”. Assim como faz Serra nesta campanha, o ataque aos interesses do povo era dissimulado. Dizia-se, por exemplo, que seria necessário privatizar para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais. FHC dizia que a taxa de retorno social seria substancialmente mais elevada do que a que o governo obteria em seus investimentos na mineração, na telefonia e na tecnologia industrial. “Cada um que prega contra as privatizações deveria ser obrigado a escrever mil vezes por dia, enquanto houver uma empresa estatal, um analfabeto ou uma criança mal nutrida no país: a democracia exige as privatizações para reduzir a dívida e liberar as despesas com os juros para gastos nas áreas sociais”, disse FHC. Como se sabe, o dinheiro das privatizações desapareceu, a dívida pública explodiu e a taxa de juros continua estratosférica.
Por tudo isso, as reações dos conservadores às informações de que Serra na Presidência da República representa a volta das privatizações selvagens são absolutamente patéticas. “Se eu estivesse no próximo governo, trabalharia forte na privatização da Petrobras. Esse não é um projeto simples. Tem de ser muito bem estudado, muito bem planejado. Mas acho que deveríamos quebrar esse monopólio que hoje não se justifica. Privatizar ou não é uma questão que tem de ser avaliada de maneira objetiva, não ideológica”, disse recentemente Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro das Comunicações e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) na “era FHC” — um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra.
Falta de rigor e integridade
Na torre de comando da campanha de Serra, o painel de controle revela abertamente os fios condutores que ligam as práticas de hoje com as daquela época. Recentemente, FHC voltou a invocar o “ideal republicano” para atacar o governo Lula. Com suas habituais confusões filosóficas, ele disse que a “concepção de Estado” separa os candidatos Serra e Dilma. FHC disse que o PT não tem uma “visão democrática'', pois ''ainda pensa que precisa ocupar a máquina estatal para reformar a sociedade”. “É exatamente por causa dessa promiscuidade que nasceram os escândalos em que (o PT) está implicado'', afirmou. Na avaliação do ex-presidente, a “sociedade” deve ser independente do Estado. “O PSDB faz menos retórica e tem uma visão mais republicana na relação entre partido e Estado'', disse. Um breve exame da história revela muito sobre o que a direita quer dizer com seu “ideal republicano”. A falta de rigor e de integridade se justifica pelo fato de ela existir unicamente para preservar seus próprios privilégios.
Lula tem recorrido à figura de Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier, 1746-1789) para explicar o atual momento do Brasil. Em maio de 2006, durante a inauguração de uma locomotiva que liga Mariana a Ouro Preto, em Minas Gerais, o presidente disse que estava na hora de Tiradentes não ser mais chamado de ''inconfidente'', mas sim de ''revolucionário''. ''Vejo muita gente falar o seguinte: aqui nasceram, aqui moraram os inconfidentes. Inconfidentes para quem, cara pálida? Para quem Tiradentes era inconfidente? Ele era inconfidente para a Coroa portuguesa. Na verdade, eles eram revolucionários, que lutavam pela independência do Brasil, para que as riquezas produzidas nesta região ficassem aqui'', disse. ''Acho que quem sabe seja um bom tema para que os nossos historiadores comecem a discutir daqui para a frente. Porque, veja, ele foi um homem que pensou na independência do Brasil. Foi morto. Esquartejado, salgaram a sua carne. Mas as idéias dele continuaram”, afirmou.
Não é possível negar que havia um movimento pré-revolucionário nas Minas Gerais. Tanto que os “inconfidentes” aguardavam a “derrama” para iniciar a insurreição. Aquela seria o ponto culminante da crise que atravessava a capitania e que iria aumentar a indignação do povo, facilitando o levante. Basta recordar a feroz repressão das autoridades coloniais ao movimento liderado por Tiradentes para reconhecer o que ele representava. A República a que aspiravam os partícipes daquele ato patriótico era um símbolo de independência e progresso. Eles planejavam industrializar o país, acabar com os monopólios coloniais, cessar a exportação do ouro e aproveitar as riquezas minerais do país.
Florianistas e prudentinos
Certamente, as autoridades coloniais — como a elite brasileira hoje em dia — sabiam perfeitamente o que faziam. E ao punir com tamanho rigor a “inconfidência mineira”, ao arrastar seu processo por três longos anos, ao fazer a execução de Tiradentes uma vasta encenação pública — como uma severa advertência aos sonhadores da liberdade — tinham perfeita consciência que aquele movimento havia conquistado a simpatia do povo. E a melhor prova disso é que entre ele e a independência política do país medeiam pouco mais de três décadas. Proclamada a República, o país continuou a conviver com a disputa entre o progresso e o atraso.
A tentativa inicial de conciliar aspirações das forças conservadoras e progressistas, traduzida nas vacilações do marechal Deodoro da Fonseca, encontrou réplica enérgica em Floriano Peixoto. Os florianistas se consideravam, com razão, os revolucionários do novo regime. Foram eles que deram base para iniciativas como a tarifa protecionista de Rui Barbosa para favorecer a fundação da indústria brasileira (taxava entre 45% e 60% cerca de 300 artigos de importação). E, segundo o historiador Pedro Calmon, chegaram a sonhar com a expulsão do capital estrangeiro do país. Logo depois houve um recuo — ao impulsivo Floriano Peixoto substitui o chamado “homem moderado”, Prudente de Morais. Ele é o retrato escandaloso da história de concessão de espaços aos conservadores na República.
Hoje, agrupados em torno do candidato Serra, eles continuam com o mesmo pensamento. Um exemplo eloqüente disso é a recente manifestação de um prócere demotucano, Jorge Bornhausen, que repetiu o raciocínio do barão de Cotegipe quando, contrariado com a Abolição, ele disse que dom Pedro II havia ''redimido uma raça”. Pode-se dizer também que as candidaturas de Dilma e de Serra, guardadas as diferenças impostas pelo tempo, representam os ideais de florianistas e prudentinos. A primeira defende a idéia de que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada sobretudo pela “era Vargas” basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás. A segunda é abertamente contrária à participação do Estado na economia.
Argumentos hipócritas
Não há problema em defender publicamente essa plataforma política. O problema aparece quando ela se esconde em argumentos hipócritas. Para os ideólogos de Serra, é fácil provar que o país está mesmo entregue aos “corruptos” e aos “incompetentes”. FHC também recorreu ao golpismo aberto ao lamentar a falta de um Carlos Lacerda na atual conjuntura. A atriz Regina Duarte, na campanha passada, foi à TV pregar o “medo” e repetir Leonor de Barros — mulher do ex-governador Ademar de Barros —, que pelo rádio incitou a ''Marcha da Família com Deus pela Liberdade'' em defesa do golpe militar de 1964.
Esse comportamento mostra que a reação não engolirá tranqüilamente mais quatro anos de progresso social no Brasil. Poucas vezes a direita chegou ao poder pela via eleitoral. Ao longo da história, os conservadores sempre recorreram à prepotência, ao arbítrio e à falsidade — numa palavra, ao golpismo — e acabaram por se especializar no assunto. Manobras como as dessa campanha eleitoral, no entanto, são, a cada etapa, mais difícil e exige, para triunfar, falsidades cada vez mais profundas.
Isso quer dizer que a eleição de Dilma exige a aplicação de um programa fundado primordialmente no avanço da democracia política e econômica. É a atividade do cotidiano, as ações concretas, julgadas pelas suas conseqüências, que determinam a conduta de um governo. O neoliberalismo causou males profundos ao Brasil, de que só agora muitos brasileiros começam a se dar conta. O combate efetivo a seus efeitos é muito mais eficaz, política e economicamente, do que essa cruzada moralista da direita.