Revolução não é outra coisa senão o reajustamento dos quadros institucionais de um país, de modo a atender mais satisfatoriamente às necessidades da sociedade. E se isso acontece é porque as formas que se procura modificar não correspondem às demandas do convívio coletivo. O reajustamento do poder é um processo revolucionário longo. A Revolução Francesa, por exemplo, não se limitou à tomada da Bastilha. Ela prosseguiu na forma de uma série de reformas políticas, sociais e econômicas que se realizaram até que se completasse a modificação da estrutura da sociedade.

O desenvolvimento do processo revolucionário também não implica inevitavelmente em uso da violência, em insurreição. Aliás, a história demonstra que são precisamente os interessados em manter um sistema social já inadequado os primeiros a recorrer à violência para continuarem no poder. Estes sim precisam de golpes e de guerras para afogar descontentamentos e revoltas. O revolucionário francês Saint-Just, que ficou conhecido pela publicação do livro O Espírito da Revolução e da Constituição da França — no qual ele considerava a morte do rei como necessária à estabilidade do novo regime — dizia: “Talvez nos leve a força das coisas a resultados que não imaginávamos.”

A história, que parecia ter se distanciado da América Latina, retornou a ela. Como a revolução russa de 1917 e a chinesa de 1949, que romperam estruturas opressivas, as mudanças que ocorrem na região são um acontecimento vital para todos os povos da Terra. Elas sucedem dois ciclos político neoliberais, que trouxeram graves conseqüências. O primeiro foi o lançamento do novo projeto hegemônico, marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan e Margaret Thatcher e liderado por Augusto Pinochet (Chile), Calos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Andrés Perez (Venezuela), Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Collor de Mello (Brasil).

Objetivos de Estado

Perseguidos pela lei — alguns ainda estão foragidos —, eles foram substituídos, num segundo ciclo também marcado pela condução anglo-saxã (desta vez com Bill Clinton e Tony Blair), por presidentes mais precavidos — chegaram a mudar a lei, com fez FHC, para criar proteções em caso de serem levados aos tribunais —, mas igualmente nefastos. A virada à esquerda, iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, despertou a ira da direita e suas ameaças golpistas, travestidas de defesa da “liberdade”.

Os motivos dos interesses norte-americanos em interferir na região vão além do comércio. São objetivos de Estado. De um lado, está um Estado imperialista. De outro, estão Estados comandados por forças populares que tentam consolidar políticas soberanas que defendam seus interesses. O exemplo do Brasil sob a liderança do presidente Luis Inácio Lula da Silva é uma demonstração de que esse é um projeto político bem sucedido.

Quando ele chegou à Presidência da República, uma de suas primeiras ações foi desmontar a trama criada pelo governo anterior para a adoção da Área de Livre Comércio para as Américas (Alca) —um dos principais motivos do fel que os conservadores passaram a destilar contra as lideranças do Itamaraty. No imaginário dos neoliberais, existia a idéia de que o mercado externo se reduz aos Estados Unidos e à Europa. Empresa daqui molhando os pés em águas internacionais do Sul do planeta era uma imagem que jamais freqüentou o pensamento daquela “era”. Para eles, a idéia de que o Brasil deveria fincar sua bandeira em outras terras soava exótica.

Regras mais justas

Quando a política externa do governo Lula chegou, o Brasil logo mostrou como desataria o nó da política comercial brasileira, responsável por seguidos déficits desde a implantação do “Plano Real”: o governo sairia pelo mundo, disputando terreno em vários mercados. Para os novos líderes do Itamaraty, eventuais perdas em uma trincheira mundo afora poderiam ser compensadas por ganhos em outra.

Em agosto de 2002, Lula, ainda candidato à Presidência da República, entregou uma carta a FHC, durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em Brasília, na qual disse que era urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liqüidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.

Na sua posse, Lula disse que, “em relação à Alca, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Européia, na OMC o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela sua eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento”. “Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçaremo-nos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico”, afirmou.

Parceria madura

Lula disse ainda que a grande prioridade da política externa do seu governo seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. “Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”, disse o presidente.

Com palavras claras, ele anunciou que priorizaria as relações com os países vizinhos. “Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração. Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país”, afirmou.

O presidente também falou das relações de seu governo com os Estados Unidos e a União Européia. “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão”, disse. Mas ressaltou que não deixaria de dar atenção a outras regiões do planeta. “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros. Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades”, afirmou Lula.

A marca da maldade

O discurso reforçou o aspecto político das novas relações internacionais do Brasil. “Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea. A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”, disse o presidente.

Com essa política, o Brasil ajudou a despachar o conservadorismo sul-americano — com expressões de pesar e desapontamento da mídia — para a vala comum onde jazem as carcomidas idéias neoliberais que no passado floresceram na região. Por aqui, a maior parte do encanto com o neoliberalismo já se desfez há tempos, moído por índices vergonhosos de injustiças sociais, pela violência, pela inépcia geral da administração e pelo que existe de pior na política.

Com o tenebroso desfile público das práticas de gangsterismo que se sucederam em volta desses governos, os povos da região deram demonstrações de não quererem mais ver seus países no balaio geral de roubalheira, irresponsabilidade e primitivismo que marcaram as políticas neoliberais. São práticas que fizeram seus defensores perderem o odor de santidade com o qual se apresentavam ao público.

Mas a verdadeira marca da maldade está impressa no DNA da direita. Infelizmente, a democracia do jeito que ela é entendida e praticada atualmente em boa parte do mundo abre as portas para todo tipo de aventureiro, impostor ou gângster que queira se aproveitar dela para impor seus desatinos. É o sistema que gera essa gente, da mesma maneira que a água parada gera o mosquito da dengue.

A história de Cuba

O neoliberalismo, que freqüentemente dá um ar de modernidade à maldade insana de regimes políticos direitistas, conquistou seu lugar nos livros de história com a corrupção, as mortes, o sofrimento e a pobreza que provoca. Os estudos de acadêmicos modernos estão jogando por terra aquilo que, no passado recente, se argumentou serem as vitórias do liberalismo renovado. O império neoliberal caiu por terra. Na Ásia, o neoliberalismo devastou a região com a crise do final da década de 1990. No Reino Unido, o Partido Trabalhista, com sua terceira via (''o oportunismo com rosto humano'', nas palavras de um crítico norte-americano), também foi duramente criticado pela pregação do credo neoliberal.

O panorama atual da América Latina, de Tijuana à Terra do fogo, está claramente demarcado. De um lado, estão as forças políticas que aceitam de bom grado trilhar o caminho de Washington e conduziram a região para uma sucessão de crises, configurando uma estrondosa catástrofe política, moral e econômica. A "modernidade" embolorada dessa tendência política nos remete à lembrança da época em que a América Latina se dividiu entre odiar e reverenciar Henry Kissinger e Che Guevara.

O embaixador cubano Rosendo Canto Hernández, que serviu seu país na Espanha, vai à raiz da questão. "O que é a história de Cuba senão a história da América Latina? E o que é a história da América Latina senão a história da Ásia, África e Oceania? E o que é a história de todos estes povos senão a história da exploração mais inumana e cruel do imperialismo no mundo inteiro?" Para que brotasse em Cuba a raiz da total independência da América Latina em relação aos Estados Unidos, foi preciso a semente plantada por Simon Bolívar, José Martí, San Martin e outras figuras imortais para o continente. Regada por personalidades como Fidel Castro, Che Guevara, Hugo Chávez, Rafael Correa, Daniel Ortega, Lula, Néstor e Cristina Kirchner e Evo Morales, dentre outros, essa raiz está se transformando em uma árvore frondosa, com ramificações em todo o continente.

Heroísmo popular

Por isso, a transformação da região dói de maneira especial no coração do imperialismo. A América Latina possui mais da metade dos recursos naturais do planeta. De cada cinco árvores que existem na Terra, duas crescem na região. Aqui está também o rio mais caudaloso, duas das maiores cidades do mundo e uma riqueza fabulosa de terras férteis. A política do imperialismo tudo transforma, deforma, canaliza para suas versões, para seu proveito, para a multiplicação do seu dólar — comprando palavras ou silêncio e tentando calar os progressistas que lutam com os povos. A rigor, os Estados Unidos lutam pela reedição da infame "Doutrina Monroe", cujo slogan era a "A América para os americanos".

Mas a arrogância de Washington sempre foi respondida com altivez. O México é o grande exemplo revolucionário do continente. No seu território, houve uma revolução antes do que a da Rússia — em 1910. Os mexicanos lutaram e venceram, ao longo de sua história, três nações: Espanha, França e os Estados Unidos — que não puderam ocupar suas terras, ainda que tenham se apossado de parte delas. Até 1934, o país teve 73 movimentos revolucionários. Madero, Pancho Villa, Emiliano Zapata e Lázaro Cárdena, entre outros, são as grandes figuras que iniciaram os movimentos insurretos e anti-imperialista.

O México nunca serviu de comparsa dos Estados Unidos. As suas relações com Cuba não foram interrompidas nem quando a OEA (Organização dos Estados Americanos), organismo fantoche do imperialismo, seguindo ordens do Departamento de Estado norte-americano, determinou o rompimento de relações com o governo revolucionário de Havana. A Cidade do México é cercada por uma grande avenida chamada "Insurgentes". A América ao Sul do Rio Bravo, enfim, continua a luta que já custou tanto sangue pela sua dignidade, libertação e honra. A revolta popular no Equador contra a tentativa de golpe de Estado é mais um exemplo dessa história de heroísmo.