Quito, 30 de setembro. “Jamais cedemos, jamais aceitamos negociar qualquer coisa, sob pressão nada, com o diálogo tudo”, afirmou ontem à noite o presidente equatoriano Rafael Correa ao relatar para milhares de cidadãos os momentos mais críticos do seqüestro realizado por um grupo de oficiais que exigia a revogação da Lei Orgânica do Serviço Público, aprovada quarta-feira pela Assembléia Nacional.

Minutos antes, por volta das nove horas da noite em Quito, vários comandos militares terrestres entraram no hospital da polícia nacional disparando tiros de fuzil para resgatar ao mandatário e levá-lo em um automóvel rodeado de veículos militares até a sede do Poder Executivo, o Palácio de Carondelet, onde foi recebido entre gritos e cantos patrióticos por militantes da Aliança País, o partido que o levou ao poder em 2006 e que respalda a revolução cidadã proposta por Correa.

A grande culpa de tudo isso é dos conspiradores de sempre, dos que não conseguiram ganhar nas urnas, disse Correa vestido com a mesma roupa que usava pela manhã quando foi conversar com os policiais do Regimento Quito número 1 para tentar convencê-los a desistir da sublevação em rechaço à nova legislação, que faz parte de uma série de reformas legais pelas quais o Equador passa desde que, em 2008, foi aprovada a nova Constituição.

Em resposta, os policiais agrediram o presidente, insultaram-no, lançaram bombas de gás lacrimogêneo, tentaram tirar-lhe a máscara que levava e quase o asfixiaram, pelo que teve que ser levado para o hospital.

Por volta de uma da tarde, um contingente de pessoas se dirigiu, desde a sede presidencial, até o hospital. O grupo era encabeçado por membros do gabinete e outros funcionários e ia pedir a libertação de Correa. Após uma hora de marcha, policiais uniformizados – muitos deles integrantes de esquadrões de motocicletas – receberam as pessoas com gases lacrimogêneo, pedras e agressões. Esses enfrentamentos se repetiram ao longo do dia.

A essa altura, os pronunciamentos políticos de legisladores e magistrados eram favoráveis à defesa das instituições que o Equador trata de reconstruir após uma década marcada pela instabilidade e por mudanças presidenciais. A oposição manteve silêncio a maior parte do dia até que, desde Brasília, (Lucio) Gutierrez falou à imprensa para rechaçar seu envolvimento, ao mesmo tempo em que sugeriu a dissolução do Congresso e a antecipação das eleições presidenciais.

A sublevação dos policiais se estendeu por várias cidades: Riobamba, Latacunga, Guaranda, Ambato, Cuenca, Loja, Santo Domingo, Ibarra, Machala e Manta.

Ainda que tenha se dito que militares estavam participando do movimento, o único corpo claramente identificado foi o da Força Aérea, que ocupou o aeroporto internacional de Quito para obrigar o cancelamento das operações, que acabaram sendo reabertas ao anoitecer, segundo a autoridade local da aeronáutica civil.

O comando militar e policial manifestou seu pleno respaldo ao presidente Correa, mas o chefe do Comando Conjunto das Forças Armadas, general Ernesto González, declarou que “não estamos condicionando, estamos solicitando que a mencionada lei (que elimina bonificações de servidores) seja revisada e, se for o caso, que seja revogada nas instâncias correspondentes”.

À noite, Correa responsabilizou diretamente o coronel da reserva, Lucio Gutierrez, que governou o país entre 2003 e 2005, ano em que foi derrubado por um levante popular. “Vi os infiltrados por Lúcio”, disse o presidente ao referir-se ao diálogo que sustentou nas primeiras horas do dia, antes do amotinamento dos policiais no quartel.

Na espetacular operação de resgate, a irrupção de cerca de 500 soldados – segundo a contagem da televisão pública equatoriana que transmitiu ao vivo e em cadeia nacional todos os fatos – desatou um tiroteio nas imediações do hospital, que se prolongou durante uma hora e que, junto com outros acontecimentos do dia, deixou um saldo de 74 feridos e dois mortos.

O resgate e o transporte de Correa duraram cerca de 30 minutos. Nas imagens televisivas, pode-se ver que uma pessoa em uma cadeira de rodas era levada de um lugar a outro, mas não ficou claro de quem se tratava até a confirmação do vice-ministro do Interior, Edwin Jarrín. “Tiramos ele, tiramos ele”, disse a jornalistas locais e estrangeiros, enquanto na televisão observava-se ainda a mobilização militar na zona do hospital, situado na zona Sul de Quito.

Após celebrar ter conseguido sair do hospital com vida, Correa confessou o que sentiu em seu cativeiro: me saíram as lágrimas, não de medo, mas sim de tristeza, porque os fatos, explicou, só se devem ao temor da Revolução Cidadã, ou seja, o programa de governo baseado na recuperação de recursos naturais, austeridade administrativa e alianças com países afins como Venezuela e Bolívia.

O retorno de Correa foi acompanhado de uma mobilização de milhares de pessoas que, desde o meio dia – quando se soube que o presidente tinha sido seqüestrado -, acudiram ao palácio Carondelet para defender a institucionalidade política.

“Passamos por uma prova duríssima”, resumiu Correa à noite, diante dos cidadãos. Um grupo de oficiais muito cortês conversou comigo no hospital para exigir a revogação da lei, o que é uma tarefa da Assembléia. “Respondi que não faria isso, que sairia dali com dignidade ou como um cadáver”.

“Como em uma opereta, os policiais seqüestraram seu comandante em chefe”, disse Correa em tom reflexivo. Hoje é um dia triste. Foram uns quantos, mas não haverá perdão nem esquecimento. Além disso, a lei não será revogada”, acrescentou. Alguns minutos mais tarde, terminou seu discurso com uma advertência. “Ninguém vai parar esta revolução cidadã. Até a vitória sempre!”

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Tradução: Katarina Peixoto

Fonte: La Jornada, na Carta Maior