O traço cultural distintivo do Brasil é a antropofagia – da cultura à tecnologia, legado de uma indolente monarquia europeia em terras tropicais na qual os aborígenes, depois de se terem banqueteado naqueles brancos esquisitos, foram alegremente exterminados, enquanto europeus e escravos copulavam livremente, sem culpa católica (não existe pecado abaixo do Equador). Parece enredo de desfile de carnaval, e é.

Charles de Gaulle, general e estadista francês, disse, certa vez, que o Brasil “não é país sério”. Os brasileiros, multiétnicos, multiculturais, viciados em tolerância mas, quase sempre, encharcados de complacência, preferem crer – tanto quanto riem da ideia – de que seriam a eterna promessa de um “país do futuro” (expressão criada há 70 anos pelo romancista austríaco Stefan Zweig).

Agora, o Brasil está em movimento – e ter contado com a boa vontade global foi elemento crucialmente importante do poder soft do Brasil, agora re-turbinado. Nenhuma diferença faz se, hoje, o poder soft do Brasil seja cintura dura, sem aquele velho swing brasileiro. O país é o “B” da expressão BRIC, cunhada por Goldman Sachs – para designar as potências globais emergentes; menos imperscrutável e mal compreendido que a China, menos autoritário que a Rússia, menos confuso que a Índia (e sem problemas religiosos). E, reconheçamos: muito mais divertido. Impôs-se aqui uma nova narrativa nacional, de duas faces; o Brasil será “a quinta potência” – isso é, a quinta maior economia mundial (bye-bye Grã-Bretanha e França). E o Novo Sonho Americano é made in Brasil.

Surfin’ USA (Beach Boys, 1963), remixed

Não surpreende que as elites anglo-americanas do norte estejam fritando os miolos ante tamanha ebulição tropical. Na reunião do Grupo dos 20 (G-20), o presidente dos EUA Barack Obama não se conteve. “Amo esse cara” – disse, do presidente do Brasil Luiz Inacio Lula da Silva, “É o político mais popular da Terra”. A revista Time, recentemente, coroou Lula como “a pessoa mais influente do mundo”. A The Economist, que não é dada a hipérboles, está convencida de que o Brasil será a quinta potência do mundo em 2025.

O Independent de Londres, sem meias palavras, escreveu que “No próximo fim de semana começará o governo da mulher mais poderosa do mundo”. No domingo, Dilma Rousseff, 63, ex-secretária de Estado (“Casa Civil”) de Lula pode ser eleita, sim, próxima presidente do Brasil. Pode vir a ser mais poderosa que a chanceler alemã Angela Merkel ou que a secretária de Estados dos EUA Hillary Clinton – os brasileiros certamente estranharão a fleugma britânica: e por que não mais poderosa também que Madonna e Angelina Jolie?

O Financial Times, por sua vez, preferiu pagar o almoço, 6ª.-feira passada, para o ex-presidente (1995-2002) Fernando Henrique Cardoso, codinome FHC. Pode ter sido simples caso de presidente errado em restaurante errado (mais caro que bom). Incapaz de resistir a qualquer mínima oportunidade de autopromoção, FHC o pavão, sociólogo super condecorado, saiu-se com “Eu fiz as reformas. Lula surfou na onda”.

A principal reforma promovida por FHC visou a conter a hiperinflação; lançou o “Plano Real” – que criou uma nova moeda chamada “real” –, em meados dos anos 1990s; e até hoje se recusa a reconhecer o mérito de Lula, cujo governo fez boa administração fiscal e combateu a exclusão social (embora não contra a corrupção), e conseguiu tirar 30 milhões de brasileiros da miséria.

Bem-vindos à idiossincrasia brasileira; nova pesquisa divulgada pelo Pew Global Attitudes Project revela que 79% dos brasileiros consideram a corrupção de políticos um “grave problema”; 75% aprovam o governo Lula; e nada menos que 80% dos brasileiros consideram Lula pessoalmente, praticamente um santo.

Mas, apesar de gozar desse índice estratosférico de 80% de aprovação para seu governo, que Obama só vê em sonhos, Lula não é deus. Em oito anos de governo, não conseguiu que um Congresso incapaz e corroído pela corrupção aprovasse uma reforma fiscal crucialmente importante. E, sem essa reforma, o Novo Sonho Americano – que diz respeito diretamente aos interesses de uma baixa classe média que afinal tem meios para consumir carros, televisões e computadores como se o mundo fosse acabar amanhã – não conseguirá, de fato, decolar. E o atual boom brasileiro – empurrado essencialmente pela venda non-stop de matérias primas para a China – não é sustentável para sempre.

Lula – filho de família extremamente pobre da região nordeste, a mais pobre do Brasil e ex-metalúrgico – irrita o sistema nervoso da muito antiquada elite brasileira, de intermediários subimperialistas, a um ponto que, fora do Brasil, é praticamente impossível entender.

Para o historiador Jose Honorio Rodrigues, essas elites brasileiras sempre foram “alienadas, antiprogressistas, antinacionais e anticontemporâneas”. E “jamais se reconciliaram com o povo”.

O ímpeto que se viu na campanha eleitoral, contra Lula, da imprensa comercial brasileira mais viciosa, pode ser explicado como guerra declarada contra os brasileiros mais pobres que, finalmente, começam a emancipar-se e por-se a caminho, por uma trilha aberta por Lula, pessoalmente e exemplarmente. Quem disse que a luta de classes morreu? Para vê-la viva e em ação, basta visitar o Brasil – que ainda é a sociedade mais inacreditavelmente desigual de toda a América Latina.

Stella by starlight

Lula mais uma vez parece ter surfado a onda certa da história, quando decidiu correr o risco imenso de apontar, como sua sucessora, uma figura austera e totalmente desconhecida dos eleitores, funcionária pública e militante apparatchik de classe média que jamais em sua vida concorrera a eleições. Filha de um imigrante búlgaro, Dilma “Dama de Ferro” Rousseff, coloquialmente “Dilma”, menina, sonhou ser bailarina, bombeira ou trapezista. Mas então os generais brasileiros detonaram a democracia em 1964 e implantaram no Brasil uma variante só deles de Guerra Tropical ao Terror – para defender o que chamavam de “segurança nacional”.

É fascinante ver que Lula fez exatamente o que o governo de João Goulart tentava fazer antes do golpe militar em 1964: fortalecer a representação política e dar poder aos trabalhadores das cidades e do campo.

As elites brasileiras cujo poder sempre lhes veio das conexões com corporações estrangeiras dos centros desenvolvidos [ing. comprador elites] só conhecem, do mundo, a necessidade de exportar e de alimentar o consumismo desvairado da classe média alta; por isso, naquele momento, a indústria automobilística era eixo central de toda a economia brasileira. A ditadura militar brasileira favoreceu o capitalismo corporativo – nacional e internacional; desse processo beneficiam-se as oito famílias que controlam todo a imprensa no Brasil.

Dilma lutava contra o ‘modelo’ de desenvolvimento que a ditadura estava implantando no Brasil, quando se alistou no grupo “Vanguarda Armada Revolucionária Palmares”, clandestino, de resistência à ditadura, codinome “Stella”. Stella, como o músico Jim Morrison dos Doors, queria mudar o mundo e mudá-lo já.

Aquelas vanguardas revolucionárias, nos anos 1960s e 1970s, praticaram vários sequestros de diplomatas estrangeiros, trocados por dinheiro ou por prisioneiros; e justiçaram alguns estrangeiros especialistas em tortura – alguns norte-americanos – que estavam no Brasil para treinar os esquadrões da morte da ditadura (sobre o general David Petraeus… você pensou o mesmo que eu?).

Dilma foi torturada pela polícia secreta da ditadura, na versão local, em São Paulo, da prisão de Abu Ghraib. Foi condenada a 25 meses de prisão por “subversão”, mas passou mais de três anos presa. Quando recuperou a liberdade, estava pronta para começar a trabalhar para mudar o mundo, pode-se dizer, por dentro.

Como o Brasil está derrotando a crise

Desenvolvimentismo será o nome do jogo no governo de Dilma. Será viagem por estrada esburacada – sobretudo porque a infraestrutura está em frangalhos, e os níveis de educação são apenas meio degrau acima de horríveis. Ainda não se sabe se Dilma seguirá ao pé da letra o mantra incansavelmente repetido pelos luminares do Partido dos Trabalhadores (PT) – que o Brasil pode continuar a crescer sem investimento estrangeiros no petróleo e na agricultura, por exemplo.

Dilma jamais se afasta muito do que pense seu principal guru – professor dela na Faculdade de Economia, e hoje presidente do gigantescamente imenso Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). É possível que seja o próximo ministro da Fazenda. Com São Paulo operando como a Wall Street brasileira, não surpreende que os grandes banqueiros e mercados financeiros, para não falar dos rentistas locais, não o vejam com bons olhos.

A crítica que mais se ouve é que a Tesouro está fazendo chover milhões sobre o BNDES, o que inflaria a dívida pública. Pode ser. Mas o mesmo processo também explica por que e como o Brasil não sucumbiu à crise das finanças globais provocada por Wall Street em 2008.

Quando a China anunciou seu pacote massivo de estímulo, de cerca de 600 bilhões de dólares, os economistas do BNDES imediatamente concluíram que teriam de, literalmente, seguir o dinheiro. Não havia linhas de crédito para ninguém, nem para o Brasil. Portanto, para enfrentar uma inevitável recessão que se aproximava, decidiu-se imediatamente que o Tesouro emprestaria 60 bilhões ao BNDES. Foi ação exatamente oposta à que se via nos anos do mercado de capitais enlouquecido dos governos de FHC. Coutinho declarou recentemente à jornalista Consuelo Dieguez que os países que contavam com bancos públicos fortes, como Brasil, China, Índia e Coreia do Sul, foram os únicos que realmente conseguiram domar a crise.

O Brasil padece de leve ressentimento contra os EUA, cuja história ajuda a explicar por que o país não se modernizou já há muito tempo.

A CSN, gigante do setor de siderurgia – ainda ativa até hoje – foi construída em 1941, com apoio dos EUA; os EUA precisavam desesperadamente do aço brasileiro, para a II Guerra Mundial. O governo brasileiro foi convencido de que, depois da guerra, Washington continuaria a investir na modernização do Brasil; Franklin Roosevelt, FDR, chegou a organizar uma comissão para construir um plano de desenvolvimento para o Brasil incluindo massiva ajuda financeira. Mas FDR morreu em abril de 1945. E Harry Truman preferiu dedicar-se a reconstruir os países derrotados na guerra, Alemanha e Japão. O problema é que, com a guerra, inventou-se também o protecionismo. Dos anos 1940s em diante, o Brasil se tornou economia tão fechada quanto Rússia e China, naquele tempo.

Apesar disso, em apenas uma década o Brasil desenvolveu base industrial considerável; a partir do início dos anos 1960s, a economia brasileira saltou, do 50º para o 8º lugar entre as economias mundiais. O Produto Interno Bruto naquele momento crescia 7% ao ano. Foi o chamado “milagre brasileiro”. Mas os militares só favoreciam os empresários ligados ao regime militar, que recebiam os massivos empréstimos do BNDES. Depois da crise do petróleo de 1973, a realidade impôs-se a todos. Sem petróleo e sem dinheiro para pagar os juros da dívida externa, o Brasil quebrou.

Avance o filme até os anos 1990s. Numa ironia que não passou despercebida a muitos economistas brasileiros, o BNDES ressurgiu das cinzas para comandar as privatizações; em vez de ajudar a modernizar as empresas estatais, o BNDES recebeu ordens para desmantelá-las. Outra vez, os que lucraram escandalosamente com as privatizações-desmanche estavam bem próximos do regime governante – FHC, o pavão fulgurante, e sua coorte.

Hoje, o BNDES está apostando em empresas de commodities, para fazer delas campeãs nacionais: celulose, alimentos, carne embalada, petroquímicas, petróleo, mineração. Nem sinal de empresas de alta tecnologia. Estudo de uma ONG demonstra que mineração, siderurgia, etanol, celulose, petróleo, gás, hidrelétricas e o agrobusiness receberam quase metade dos cerca de $280 bilhões de fundos emprestados pelo BNDES durante os oito anos dos governos Lula. A JBS[1], por exemplo, tornou-se a maior produtora de carne do mundo.

A política de Lula implica, contudo, tomar dinheiro emprestado a juros de 10,75%, para comprar ações da gigante Petrobrás. Esses empréstimos do Tesouro não aparecem no orçamento, engordando a dívida bruta, mas não a dívida líquida. A dívida bruta do Brasil já alcançou espantosos 63% do PIB. Não surpreende que hordas de economistas estejam em pânico: há um furacão de dinheiro para emprestar, mas não há bons projetos e nem sinal de uma estratégia de política industrial. E tudo isso, por quê?

Essencialmente, porque o país ainda não tem projeto construído para desenvolvimento de longo prazo. Dilma há de ser suficientemente atenta para perceber que continuar a contar com a China como compradora de quantidades astronômicas de commodities não basta para substituir, no Brasil, uma política industrial.

O nome do jogo no complexo relacionamento entre Brasil e China é “bolsões de prosperidade”. A China é agora o principal parceiro comercial do Brasil, à frente dos EUA (pela primeira vez em 2009). A China absorveu quase 14% das exportações brasileiras em 2009, e o Brasil absorveu quase 13% das exportações chinesas. Hoje, no Brasil, se você é exportador brasileiro de soja, você está multibilionário; se fabrica sapatos – indústria que já foi importante no Brasil –, você está às portas da falência.

Depender da China não é exatamente a fórmula perfeita do crescimento sustentável. A saída óbvia para o Brasil é vender, além das commodities, também produtos com valor agregado: a solução Samsung. E aqui está a suprema encruzilhada; para conseguir isso, o Brasil terá de reconstruir com urgência a infraestrutura em ruínas, portos, aeroportos e estradas (estudo de 2007, da Confederação do Transporte, mostrava que 74% das estradas estavam em situação “má ou péssima”); é preciso modernizar o sistema de impostos, notoriamente bizantino; e tem de dar jeito na burocracia intratável que torna lentos os negócios no Brasil, o chamado “custo Brasil” (o país ocupa o 129º lugar, de 183, em termos de facilitação dos processos de negócios, segundo relatório do Banco Mundial em 2009).

Dilma prometeu investir mais de $550 bilhões entre 2011 e 2014 para melhorar as exportações de produtos agrícolas e para preparar a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Mas nada se discutiu sobre a reforma fiscal e a reestruturação da máquina burocrática. A carga fiscal é de 34,4%, a mais alta dentre os BRICs, mais alta também que países desenvolvidos como o Japão (17,6%) e os EUA (26,9%), segundo estudo recente da Brookings Institution.

6ª-feira, 24/10, quando Lula abriu os trabalhos da Bolsa de Valores de São Paulo, o índice Bovespa saltou e logo chegou ao posto de segundo maior do mundo, por causa de uma venda de ações da Petrobrás no valor de $68 bilhões, a maior operação de lançamento de ações em toda a história da empresa. Investidores excitados, brasileiros e estrangeiros, haviam pedido o dobro daquela quantidade de ações.

A capitalização da Petrobras – hoje a segunda maior empresa de petróleo do mundo (a Exxon é a primeira) – elevou a participação estatal para 48% e, de fato, inverteu a curva dos anos FHC, quando o controle da mais estrategicamente importante empresa brasileira fora pulverizado. Imediatamente, conforme o previsto, começaram as dúvidas ‘do mercado’ sobre a eficiência e a produtividade da Petrobras. A companhia está lançando programa monstro de investimentos de $224 bilhões para 2010 a 2014. Para os petistas que defendem obcecadamente a soberania brasileira, essa Petrobras cheia de esteróides será essencial para a exploração do petróleo do pré-sal, previstos 50 bilhões de barris que jazem abaixo do fundo do Oceano Atlântico.

Outra gigante brasileira é a mineradora Vale, a qual, para o Boston Consulting Group, é a empresa, em todo o mundo, que mais cresceu em valor durante a última década; também nesse caso, graças à China. Com capitalização de $147 bilhões, a Vale é agora a segunda maior mineradora do mundo (a BHP Billiton é a primeira).

O novo Kuwait

Inevitavelmente, o boom gerará sua leva de megabilionários brasileiros. Um deles é Jorge Paulo Lemann, segunda maior fortuna do Brasil ($11,5 bilhões), que arquitetou a fusão, de $52 bilhões, de Anheuser-Busch Cos., fundou o maior banco de investimentos no Brasil e recentemente comprou, por $3,3 bilhões, a rede Burger King, maior negócio de compra de rede de restaurantes dos últimos 10 anos.

Mas o cão alfa é, sem dúvida, Eike Batista, proprietário do EBX Group. Investidores excitadíssimos estimam em cerca de $5 por barril o valor dos sete bilhões de barris que a subsidiária OGX de Batista encontrou em reservas submarinas em águas rasas. Não surpreende que as Sinopec Group e CNOOC chinesas estejam interessados em comprar ações da OGX. Apenas a título de comparação, alguém que tenha investido $100 na OGX em setembro, terá hoje $180 (na Petrobras teria magros $80 e só $113, pelo índice Bovespa da Bolsa de Valores. A OGX, que está começando, conseguiu $38 bilhões de capitalização no mercado, e ainda nem começou a gerar lucros.

Batista previu, em famosa entrevista a Charlie Rose[2], que o Brasil em 2020 estará produzindo 5-6 milhões de barris de petróleo por dia [ing. barrels per day (bpd)] , e que a própria OGX está apostando em 730 mil bpd já em 2015 e 1,4 milhão de bpd em 2019. Batista pode ter ganhos líquidos $100 bilhões de dólares em 2020; não por acaso, ele sonha com tornar-se o multibilionário n. 1 do mundo.

Eike também gosta de repetir o mantra “o Brasil é hoje os EUA dos anos 1950s”. Se é, tem de receber bem o investimento estrangeiro. “Venham, venham! É hora de apostar num país com 200 milhões de consumidores e a demografia perfeita para os próximos 10 anos. Essa história do petróleo é história de 30 anos de crescimento.” E se é bom para Eike, é bom para o Brasil. Como se podia esperar, Batista também prevê que o Brasil será a “5ª potência mundial”, em 2015-2020, atrás da Alemanha, Japão, China e EUA.

Não surpreende que os economistas norte-americanos estejam deslumbrados. Semana passada, em seminário sobre governança global em Brasília, o economista James Galbraith disse que “a desigualdade social no Brasil está sendo reduzida, nos últimos poucos anos, porque o país gasta menos para ajudar o setor financeiro e mais para ajudar o Brasil.” E imediatamente atacou o dogma neoliberal: “O crescimento econômico e social sustentável pode conviver com processo democrático funcional”.

O Brasil alimenta altas esperanças de ascender ao “Clube dos 7%”, expressão cunhada pelo grupo Standard Chartered – grupo dos países que conseguem manter o PIB em crescimento de 7% ou mais, por longos períodos. Conforme dados dos dez anos até 2008, são hoje membros do clube a China (média de 9,7%), Índia, Vietnã, Etiópia, Uganda e Moçambique. Vários países estão atrás, mas não muito distantes dos BRICs e podem chegar ao topo antes de 2030. Nesse caso, a Rússia pode “cair” – e também o Brasil. Se acontecer, os BRIC no futuro podem converter-se em BRICI (com a Indonésia), BRICK (com a Coreia do Sul) ou, até, em BASIC (se a Rússia for substituída pela África do Sul).

Michael Hudson, da University of Missouri, que visitou recentemente o Brasil, insiste que a principal tarefa dos BRICs é impor uma alternativa ao FMI e ao Banco Mundial. Diz também que o Brasil deve construir “sua própria estratégia de desenvolvimento” – que ainda não existe.

Hudson prevê tragicamente, que Washington fará absolutamente tudo que esteja ao seu alcance para impedir que essa independência aconteça –e oferece, como exemplos, o que houve no Irã nos anos 1950s, quando o país tentou controlar seu próprio petróleo; e ao Afeganistão, quando assumiu lá um governo secular, no final dos anos 1970s.

Um novo contrato social?

Nesse amplo diz-e-diz, é sempre saudável encontrar vozes discordantes. O historiador marxista Paulo Alves de Lima chama a atenção para as evidências de que o Brasil vive hoje a construção de uma nova mitologia nacional:

É a formulação de um projeto para o capitalismo monopolista criado pela ditadura militar. Já nasceu uma nova ideologia para o futuro: universalização da classe média, fim da pobreza, graças à exploração das reservas do pré-sal, democracia estável, reforço do complexo industrial militar (…) No Brasil, há promessas de paraíso, enquanto Obama é obrigado a dizer ao mundo que a pobreza está aumentando nos EUA. As principais universidades estão abraçando o novo mito, de uma “sociedade superior” – nem capitalista nem socialista e já menos claramente definida como capitalismo subordinado. O futuro dos brasileiros é marchar rumo a esse novo paraíso prometido.”

Não há dúvidas de que o espectro de FDR assombra por todos os lados. A mídia dominante está obcecada com a ideia de que o Brasil seria hoje uma sociedade de classe média.

É verdade que dez milhões de pessoas podem hoje ser proprietários da própria casa. A autoestima está nas alturas; e muita gente vive “vida material reconhecidamente decente”. Mas… calma! Isso é exatamente Paul Krugman, palavras dele, descrevendo os EUA dos anos 1950s e 1960s. Ouvir-se-ia aí, talvez, no mínimo, uma semelhança psicológica – o eco de um otimismo empolgado, à moda do “agora temos o futuro em nossas mãos”?

Os novos brasileiros individualistas, parecem-se, sim, com os norte-americanos dos anos 1950s e 1960s. Essencialmente, suas prioridades são a família, a estabilidade, o sucesso profissional, não importa a classe social de origem, ou a região de origem.

A pobreza diminuiu 41% entre 2003 e 2008, tecnicamente, quase metade da população brasileira está incluída, hoje, na “nova classe média”. Mas não é a tradicional classe média dos EUA.

Famílias com renda per capita máxima de $2.500 mensais, tecnicamente classe “C”, constituem 40% do total. As classes “B” e “C”, somadas, chegam a quase 70%. Para um país sempre definido pela desigualdade (terceiro no ranking da desigualdade mundial, menos desigual, só, que Bolívia e Haiti, até pouco tempo, segundo o Programa de Desenvolvimento da ONU, e hoje já num mais digno 11º lugar), o que o Brasil conseguiu fazer não é pouco.

Em países em desenvolvimento, a chamada “classe média global” reúne cerca de 400 milhões de almas; e mais 2.000 almas podem juntar-se àquelas antes de 2030. A mobilidade social está só começando, no Brasil. Mas milhões sentem, sim, que o Brasil de hoje é muito parecido com os EUA dos anos 1960s, em termos de ofertas de emprego, renda crescente e oportunidades ilimitadas. De fato, quem sente isso é ainda uma classe média muito pobre – o que reflete a extrema desigualdade que ainda domina.

Seja como for, Dilma herdará uma conjuntura histórica rara e preciosa gerada por Lula.

Pela primeira vez na história desse país, a desigualdade, a injustiça social e a exclusão realmente diminuíram. É imperativo saber em relação a quê. Porque aconteceu em relação à escandalosa desigualdade gerada pelo modelo privilegiado por duas décadas de ditadura militar. Emir Sader, sociólogo e militante da esquerda, insiste que o processo está só começando, e que ainda será preciso quebrar o monopólio do capital financeiro, do latifúndio e da imprensa, no Brasil.

Parece estar-se referindo a uma luta que se trava em toda a América Latina. Com a Europa assustada, caminhando cada vez mais para a direita e para a ultradireita, e os EUA às voltas com a Nova Grande Depressão e à mercê dos demagogos ensandecidos do tipo “Tea Party”, é a América Latina, com partes da Ásia e da África, que parece estar caminhando pelo lado mais ensolarado da história.

O seriado de televisão Mad Men[3] celebra nos EUA o (já moribundo) sonho americano. Talvez esteja chegando a hora do novelão dos Mad Men tropicais.

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[1] Da pág. JBS na internet: “A JBS é a maior empresa em processamento de proteína animal do mundo, atuando nas áreas de alimentos, couro, produtos para animais domésticos, biodiesel, colágeno, latas e produtos de limpeza. A companhia está presente em todos os continentes, com plataformas de produção e escritórios no Brasil, Argentina, Itália, Austrália, EUA, Uruguai, Paraguai, México, China, Rússia, entre outros países [http://www.jbs.com.br/QuemSomos.aspx].

[2] 8/10/2010, Business, http://www.charlierose.com/view/interview/10851 (vídeo, em inglês).

[3] Sobre o seriado: “Em cenário de NY dos anos 1960s, o seriado Mad Men, sexy, ‘chic’ e provocativo acompanha a vida dos homens e mulheres furiosamente competitivos da indústria da publicidade & propaganda reunida em vários quarteirões da Madison Avenue, mundo de egos autocentrados, cujos principais personagens convertem em arte o trabalho de vender” (em http://www.amctv.com/originals/madmen/about/). Pode-se dizer que é o sonho que todos os roteiristas de novelas da Rede Globo perseguem incansavelmente, há anos (até agora sem sucesso, coitados, ou por falta de talento, ou por falta de competência ou porque, de fato, copiar é muito mais difícil do que inventar). Assiste-se a vários episódios (em inglês), em http://www.amctv.com/originals/madmen/episode411 [NT].

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Fonte:  Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/China/LJ01Ad01.html

[comentado no Huffington Post, 1/10/2010, em http://www.huffingtonpost.com/news/Brasil]

Tradução: Caia Fittipaldi