O FECHA-CORPO
PRAÇA CENTRAL DE MONTE ALEGRE DO SUL E A FILA PARA RECEBER O FECHA-CORPO
Durante a semana santa do ano de 2008 estive passando uns dias numa cidadezinha do interior de São Paulo, à guisa de descanso, visto não ter férias há mais de dez anos. A cidade é Monte Alegre do Sul. Vencer o estresse; esta era a razão para estar em Monte Alegre do Sul, uma charmosa Estância Balneária, engastada entre as montanhas que a margeiam; montanhas estas cobertas de verde, onde ainda nos dias atuais habitam macacos, seriemas, tucanos e tatus. Tendo limítrofes os municípios de Amparo e Serra Negra. A cidade de Monte Alegre do Sul é a menor dentre as vizinhas, com exceção, talvez de Pinhalzinho. Para pessoas como eu, que trabalha como “terceirizado” (sem contrato empregatício), qualquer final de semana num hotel charmoso numa cidadezinha ainda mais charmosa, vale como férias e ajuda a diminuir as tensões à que estamos sendo submetidos nestes tempos de globalização.
Na manhã de 21/03/2008, sexta-feira Santa, a cidade de Monte Alegre do Sul recebeu um grande número de turistas, dentre os quais eu e a Dirce, minha esposa, para participar da tradição cinqüentenária do “Fecha Corpo”, que acontece na casa da família Valente, defronte à praça central. Lá, as pessoas recebem gratuitamente uma dose do “remédio espiritual”, como é chamada por alguns, para “fechar o corpo” contra mau olhado, inveja e outras doenças do espírito. Havia uma fila de cinquenta pessoas, logo às nove da manhã. Embora não acreditasse, voltei naquele mesmo dia, por volta do meio-dia e conferi como a crença de que aquela dose de cachaça, curtida com guiné, arruda e mel acompanhada de um naco de pão com sardela, atraia tanta gente. Neste horário, meio-dia, cumpria-se aquele mesmo ritual, só que agora se misturavam na Praça principal, defronte a igreja Matriz, uma multidão: católicos e umbandistas, evangélicos e espiritualistas. O religioso e o profano, numa mistura de crenças, esperanças, curiosidades e deslumbramentos.
A IGREJA MATRIZ DO BOM JESUS, NA PRAÇA CENTRAL DE MONTE ALEGRE DO SUL
A cidade fervilhava de gente ao meio dia. Suas pequenas e centenárias ruas, já não comportavam tantos carros. Já havia um enorme congestionamento na cidade e os carros formavam uma espécie de comboio gigante, que não permitia mover-se. Tudo parado, tudo travado; e a fila para receberem o “fecha-corpo” nunca diminuía, ao contrário, espichava-se. Os carros, em meio ao congestionamento, andavam no máximo com a incrível velocidade de cem metros cada meia hora; os carros dos turistas da capital e outras metrópoles interioranas, como Campinas, Ribeirão Preto, Araçatuba e São José do Rio Preto, além daqueles das cidades mais próximas, como Amparo, Serra Negra, Pinhalzinho, Jundiaí, Jarinu, Bragança Paulista, Atibaia, Itatiba, Morungaba e etc.; estacionavam na entrada da cidade e transmitia a todos nós aquela sensação de festa, coisa tão gostosa de ver e sentir, cujos valores vamos perdendo à medida que nos acostumamos a viver em uma grande cidade.
RUA TÍPICA DE MONTE ALEGRE DO SUL
O “Fecha Corpo”, é costumeiramente realizado entre as 6:00 h e às 12:00 h, embora tal horário não seja muito rígido. A origem deste evento teve início quando amigos e conhecidos do Sr. Zezé Valente, ficaram sabendo da promessa feita pelo Sr. Zezé a uma ex-escrava (Nhá Sabá), por ter se curado de uma enfermidade, que nem os Médicos da época conseguiram. Consta-se que o Sr. Zezé Valente estava à beira da morte. Definhava-se, dia a dia. A família à época tinha alguns amigos ex-escravos que viviam com eles, como agregados. Dentre eles, a Nhá Sabá, que quando ainda criança foi beneficiada pela Lei Áurea, que libertou os escravos em 1888. Corria um ano da década de 1950. A Nhá Sabá, então com mais de oitenta anos, cansada de ver médicos visitando a família e a cura nunca que se concretizava, resolveu falar com o enfermo Sr. Zezé. Disse-lhe se ele quisesse, ela poderia curá-lo. Nada pediu em troca do favor. Ele concordou e então ela passou a viver ao lado dele, rezando por ele e servindo-lhe o “fecha-corpo”, acompanhado de um naco de pão e peixe. Aos poucos o Sr. Zezé, foi melhorando até que se curou de vez. Após a cura pela Nhá Sabá, ele fez promessa de distribuir o “fecha-corpo” enquanto vivesse assim o fez. Até hoje, muitas pessoas ainda seguem a tradição e participam todo ano, tomando em jejum, a cachaça com guiné, arruda e mel, acompanhada por um pedaço de pão e peixe, da família Valente.
PLACA ALUSIVA À FESTA DO FECHA-CORPO, NA CASA DA FAMÍLIA VALENTE
Segundo me foi passado oralmente, os descendentes do Sr. Zezé ainda vivem naquela casa da Praça da Matriz, vista na foto com a placa do “fecha-corpo”. Durante muitos anos eles, para cumprirem a promessa feita pelo patriarca, tinham que desfazer-se de bens, comprando tudo aos pouquinhos, com parcos recursos. Se algum dia houve alguma reação do representante do clero na cidade, eu não sei; porém sei que talvez até pela índole dos brasileiros e nossos colonizadores, muitos fiéis saíam da igreja católica, depois de participar da procissão ou da cerimônia do lava-pés e, ato contínuo, atravessam a praça e vão direto para a fila defronte à casa da família Valente. Não são raros aqueles que levam a bebericagem para casa, reservando-a como panacéia para pessoas doentes da família ou amigos que porventura estivessem necessitadas de conforto médico, material ou espiritual. Nos dias atuais, a maioria dos hotéis da cidade de Monte Alegre do Sul, consegue litros e mais litros do “fecha-corpo” para servir aos hóspedes e turistas, para que não tenham que andar a pé por bom tempo e ficar na fila esperando por horas.
Já há alguns anos, a família Valente tem “patrocinadores”: padarias, peixarias, alambiques, sitiantes, fazendeiros, hoteleiros e a Prefeitura Municipal de Monte Alegre do Sul; todos se esforçam para que a tradição seja mantida.
Na próxima Semana Santa, lá em Monte Alegre do Sul, certamente haverá uma fila de pessoas aguardando o momento de receber o “fecha-corpo”.
Se eu não puder ir este ano, irei no próximo!
– Bem que estou precisando do fecha-corpo para proteger-me.
– Saravá!
Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.