Cada um é cada um, mas nem tanto
Cada um é cada, diria um catalão, mas se cada um e cada um são amigos sempre há uma vantagem: podem cometer-se erros novos sem a necessidade de repetir velhos erros. Se o amigo já passou por uma determinada experiência, para que tropeçar na mesma pedra? Isso ocorre hoje na América do Sul. Cada experiência é distinta, mas na maioria dos países governam forças amigas.
O Equador é um exemplo. O presidente Rafael Correa primeiro subjugou o que depois definiria como “tentativa de golpe de Estado e de magnicídio”, ou seja, a intenção de matá-lo e, assim, matar sua Revolução Cidadã. E uma vez que conseguiu sair da crise com vida, inteiro, apresentou alternativas concretas.
O cardápio equatoriano foi amplo. O presidente destituiu toda a cúpula policial. Também aproveitou sua autoridade – renovada pela vitória frente a rebelião – para aprovar no Congresso o novo regime para as forças de segurança que antes havia sido rechaçado. Ao mesmo tempo, aumentou salários na polícia e não teve problemas em confessar que foi um erro apresentar-se de corpo aberto diante dos policiais sublevados no dia 29 de setembro pela manhã. “O serviço de inteligência falhou”, disse, confirmando o que o Página/12 havia publicado em sua edição de 30 de setembro: “Ninguém me avisou do que perigo que correria”.
A primeira tentação de Correa foi a de impulsionar o que, no Equador, chamam de “morte cruzada”, ou seja, a dissolução do Congresso e a convocação de eleições. Mas isso faz sentido quando Correa supera 50% ainda ontem, em 2009, e desfruta de um mandato até 2013? Uma campanha eleitoral garantiria a ampliação e a qualificação de sua maioria? Novas eleições não significariam, também, o risco de cansar a cidadania, que não duvida de Correa e segue o apoiando e, portanto, atiçar a oposição mais conservadora, dando-lhe inclusive uma desculpa para crescer? Ninguém sabe o que Correa fará no futuro. Mas agora, porém, está claro que aprendeu a lição de outros países, como é o caso do governo Kirchner que, em 2004, freou as aspirações do comissário Jorge Palácios de transformar-se em um dos homens mais poderosos da Argentina. Palácios foi passado para a reserva.
Nas democracias da última geração, o risco maior não é a ameaça militar; o perigo é o descontrole do próprio Estado e a liberdade de articulação que adquirem, desse modo, as distintas redes cloacais da política. A “caca” nunca desaparece. Mas se o nível sobe e isso ocorre ao mesmo tempo em distintos setores, então, sim… Houston, temos um problema.
Sem choque de trens
Na Argentina o exemplo é o contraponto com o Poder Judiciário. No último mês parecia afirmar-se uma tendência inquietante: um choque de trens entre o Executivo e a Corte Suprema.
Para além de receios e conflitos, justos ou injustos, qual seria a alternativa concreta com uma escalada sem limites? Um julgamento político na Corte, como em 2003? Neste cenário, o governo tem maioria para acusar? Teria maioria para vencer no Senado? E se alcançasse isso, não estaria desmoronando um caminho que serviu tanto à democracia de qualidade e ao próprio governo, com a expulsão constitucional da maioria menemista da Corte Suprema? Ainda que não tenha marcado uma saída do conflito latente, o tom do ato oficialista em Santa Cruz teve menos decibéis do que os imagináveis uma semana antes. Também foi suave a reação de Nestor Kirchner e da presidenta ao tomar conhecimento da decisão da Corte sobre um aspecto parcial da lei dos Médios em relação a uma proposição do grupo Clarín. Qualificaram a decisão de “positiva” e, inclusive (palavras de Nestor Kirchner), motivo de esperança.
Por outro lado, soa pouco razoável que o balanço sobre esta Corte Suprema seja feito apenas por sua atitude diante de uma única questão, sem levar em conta, por exemplo, decisões sobre direitos humanos, dívidas privadas contraídas nos tempos da paridade peso-dólar ou pedidos de aposentadoria. Mais ainda: a designação de quatro ministros desta Corte e a redução da quantidade de membros de nove para sete figura entre as faturas de Kirchner. Isso se estende a Cristina Kirchner. Pesou neste momento sua experiência como presidenta da Comissão de Assuntos Constitucionais da Câmara de Senadores e como integrante da equipe de assessoramento político do então presidente.
Na reação suave diante da decisão aparece também uma questão de política prática. A pouco mais de um ano das eleições presidenciais de 2011, uma escalada contra a Corte Suprema retiraria da candidatura oficialista muitos dos votos que obteria, eventualmente, pela percepção de governabilidade ou bem estar econômico.
Certas realidades são inflexíveis. Deixando de lado as opiniões do governo, da Corte, da oposição e dos diretores do Clarín, alguém pode imaginar sensatamente que suprimir uma posição dominante no mercado, em qualquer mecado, é um processo veloz? Alguém pode pensar que um poder, qualquer poder, pode ser desmanchado do dia para a noite, sem conflitos?
Poder Judiciário, sem mudanças
E o Poder Judiciário? Quando apresentou seu projeto de criar um instituto para incentivar as investigações acadêmicas sobre os tribunais, o ministro Raúl Zaffaroini disse que “a Justiça às vezes parece que segue realizando missas em latim e de costas para o público”. A frase era uma referência à liturgia da Igreja Católica até o Concílio Vaticano no início dos anos 60. Mas as liturgias sempre representam tradições, ideologias e sistemas de autoperpetuação do poder. Faça parte dele quem faça parte, está claro que o Conselho da Magistratura não é suficiente para arejar a Justiça e torná-la mais transparente, ou para atenuar um pouco seu corporativismo e sua intolerável burocracia. A maioria governista não quis, não pode ou não soube ocupar-se a fundo de domínios opacos ante a luz pública como o civil e o comercial. Seguem as mesmas caras em juizados e câmaras, em muitos casos rostos sorridentes para os grandes escritórios de advogados e seu poder de lobby. Algumas dessas caras assinam as medidas cautelares que às vezes se convertem em um obstáculo à aplicação plena da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual aprovada pela maioria no Congresso. A Corte Suprema opinou em um caso, ainda que sem definir um prazo definitivo, que a suspensão da vigência do artigo de uma lei por parte da Justiça deve ter um limite. Caso contrário, diz a decisão tomada na última semana, a suspensão se torna uma decisão definitiva.
A nova integração do Conselho da Magistratura é fruto de duas vertentes. Por um lado, a iminente renovação dos membros parlamentares e o aumento do peso da oposição. Por outro, a eleição por parte dos advogados e dos juízes de representantes que cantaram em voz alta sua oposição ao governo. O segundo grupo falou, também, de estabelecer limites. Referia-se ao Poder Executivo, em um óbvio exagero. Os limites já existiam e não tinham sido enfraquecidos. Mas, quem quer impor limites também à indiferença generalizada que reinou até este momento nas opiniões sobre a Justiça? Ou só representa o sonho dos grandes escritórios de seguir ganhando fortunas, ou o de muitos advogados de classe média de ascender até a posição de seus colegas convertidos em donos de grandes empresas de operação judicial, ou o de juízes que não querem ninguém os observando ou o desejo daqueles que querem que tudo permaneça como está?
Nesta questão da Justiça, talvez aconteça o mesmo que ocorreu com os direitos humanos em 1983 e 2003. Em ambos os casos, a liderança política (Raúl Alfonsín, Nestor Kirchner) foi mais além da demanda social, mas a nova realidade de julgamento instalou-se e, rapidamente, a maioria da sociedade aprovou o rumo. São processos de mudança que necessitam de um objetivo claro, uma sorte sacudidela inicial, gradualismo, debate permanente, lucidez e persistência. Muita persistência. Tanto como a criação de emprego ou o estímulo reforçado que o Estado se propõe a dar nos próximos dias à criação de pequenas e médias empresas agrárias.
O segundo turno no Brasil
Imaginar uma realidade política centrada em um único tema – inclusive um importante, como o regime de diversidade dos meios de comunicação – é uma fantasia que até prejudica a chance de agir nesta questão. Luiz Inácio Lula da Silva aportou um dado, na entrevista que o Página/12 publicou há uma semana. “Se dependesse da imprensa – disse Lula referindo-se aos grandes meios de comunicação brasileiros – minha aprovação seria de 10%”. Lula e seu governo gozam de uma aprovação de aproximadamente 80%, após oito anos de gestão. Uma leitura óbvia é que a grande mídia do Brasil não aprova a maior justiça social, as políticas sociais e a nova dignidade dos excluídos do Nordeste. E é certo: os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, e a revista Veja, são contra essas políticas. Agem, às vezes, como partidos políticos conservadores. Irritam-se diante de mudanças de fundo na estrutura social ou frente à remoção de núcleos de corrupção que sobrevivem dentro do Estado.
Mas há ainda uma outra leitura da frase de Lula: a capacidade de dano de alguns destes grandes meios de comunicação fica reduzida quando as mudanças favorecem tanta gente de modo tão concreto e o governo que as executa evita, na medida do possível, abrir flancos débeis. A lógica é a mesma que marca a eficácia dos partidos políticos conservadores. E quando os setores majoritários conseguem rearticular suas bases sociais e parlamentares, ao mesmo tempo em que corrigem políticas, qualquer queda de popularidade também resiste à erosão diária. Esta interpretação, apenas uma hipótese que seria interessante discutir, pode ser colocada à prova lembrando qualquer momento histórico dos países da região, incluindo também a Argentina.
Por isso o Partido dos Trabalhadores e seus aliados decidiram realizar uma campanha para o segundo turno, de agora até o dia 31 de outubro, que procura atingir, de porta em porta, os eleitores em todo o país. Essa campanha reafirmará quanto e como o Brasil mudou com Lula. As equipes do conservador José Serra desejam que a campanha do segundo turno gire ao redor do tema do aborto ou do medo. “Lula quer instalar um peronismo”, disse recentemente, em tom de advertência, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Como Hugo Chávez”, acrescentou. O PT seguramente agradece sua aparição: nos dois governos de Cardoso, que terminaram em 1° de janeiro de 2003, a economia brasileira cresceu somente 2,3%/ano em média. Com Lula, o equivalente a uma Argentina inteira ingressou na classe média e o Brasil passou a ser a oitava economia do mundo. Pode ser que uma parte dos pastores evangélicos queira humilhar Dilma Rousseff. Mas não são todos os pastores e, sobretudo, não são todos os fiéis. Dilma obteve 47% dos votos no primeiro turno. Serra, menos de 33%. Dilma precisa aumentar seus votos entre aqueles que votaram em Marina Silva, que chegou em terceiro com quase 20% dos votos, e entre aqueles que se abstiveram. Mas Serra enfrenta um problema maior. Precisa aumentar seus votos em aproximadamente 50%.
Está movimentada a América do Sul. Mas está se virando muito bem.
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Fonte: Página/12, na Carta Maior
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Tradução: Katarina Peixoto