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    Comunicação

    O Navio Negreiro

    'Stamos em pleno mar… Doudo no espaço Brinca o luar — dourada borboleta; E as vagas após ele correm… cansam Como turba de infantes inquieta. 'Stamos em pleno mar… Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro… O mar em troca acende as ardentias, — Constelações do líquido tesouro… 'Stamos em pleno mar… Dois […]

    POR: Redação

    9 min de leitura

    'Stamos em pleno mar… Doudo no espaço
    Brinca o luar — dourada borboleta;
    E as vagas após ele correm… cansam
    Como turba de infantes inquieta.

    'Stamos em pleno mar… Do firmamento
    Os astros saltam como espumas de ouro…
    O mar em troca acende as ardentias,
    — Constelações do líquido tesouro…

    'Stamos em pleno mar… Dois infinitos
    Ali se estreitam num abraço insano,
    Azuis, dourados, plácidos, sublimes…
    Qual dos dous é o céu? qual o oceano?…

    'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
    Ao quente arfar das virações marinhas,
    Veleiro brigue corre à flor dos mares,
    Como roçam na vaga as andorinhas…

    Donde vem? onde vai? Das naus errantes
    Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
    Neste saara os corcéis o pó levantam,
    Galopam, voam, mas não deixam traço.

    Bem feliz quem ali pode nest'hora
    Sentir deste painel a majestade!
    Embaixo — o mar em cima — o firmamento…
    E no mar e no céu — a imensidade!

    Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
    Que música suave ao longe soa!
    Meu Deus! como é sublime um canto ardente
    Pelas vagas sem fim boiando à toa!

    Homens do mar! ó rudes marinheiros,
    Tostados pelo sol dos quatro mundos!
    Crianças que a procela acalentara
    No berço destes pélagos profundos!

    Esperai! esperai! deixai que eu beba
    Esta selvagem, livre poesia,
    Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
    E o vento, que nas cordas assobia…
    ………………………………………………….

    Por que foges assim, barco ligeiro?
    Por que foges do pávido poeta?
    Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
    Que semelha no mar — doudo cometa!

    Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
    Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
    Sacode as penas, Leviathan do espaço,
    Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

    II

    Que importa do nauta o berço,
    Donde é filho, qual seu lar?
    Ama a cadência do verso
    Que lhe ensina o velho mar!
    Cantai! que a morte é divina!
    Resvala o brigue à bolina
    Como golfinho veloz.
    Presa ao mastro da mezena
    Saudosa bandeira acena
    As vagas que deixa após.

    Do Espanhol as cantilenas
    Requebradas de langor,
    Lembram as moças morenas,
    As andaluzas em flor!
    Da Itália o filho indolente
    Canta Veneza dormente,
    — Terra de amor e traição,
    Ou do golfo no regaço
    Relembra os versos de Tasso,
    Junto às lavas do vulcão!

    O Inglês — marinheiro frio,
    Que ao nascer no mar se achou,
    (Porque a Inglaterra é um navio,
    Que Deus na Mancha ancorou),
    Rijo entoa pátrias glórias,
    Lembrando, orgulhoso, histórias
    De Nelson e de Aboukir.. .
    O Francês — predestinado —
    Canta os louros do passado
    E os loureiros do porvir!

    Os marinheiros Helenos,
    Que a vaga jônia criou,
    Belos piratas morenos
    Do mar que Ulisses cortou,
    Homens que Fídias talhara,
    Vão cantando em noite clara
    Versos que Homero gemeu…
    Nautas de todas as plagas,
    Vós sabeis achar nas vagas
    As melodias do céu!…

    III

    Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
    Desce mais … inda mais… não pode olhar humano
    Como o teu mergulhar no brigue voador!
    Mas que vejo eu aí… Que quadro d'amarguras!
    É canto funeral! … Que tétricas figuras! …
    Que cena infame e vil… Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

    IV

    Era um sonho dantesco… o tombadilho
    Que das luzernas avermelha o brilho.
    Em sangue a se banhar.
    Tinir de ferros… estalar de açoite…
    Legiões de homens negros como a noite,
    Horrendos a dançar…

    Negras mulheres, suspendendo às tetas
    Magras crianças, cujas bocas pretas
    Rega o sangue das mães:
    Outras moças, mas nuas e espantadas,
    No turbilhão de espectros arrastadas,
    Em ânsia e mágoa vãs!

    E ri-se a orquestra irônica, estridente…
    E da ronda fantástica a serpente
    Faz doudas espirais …
    Se o velho arqueja, se no chão resvala,
    Ouvem-se gritos… o chicote estala.
    E voam mais e mais…

    Presa nos elos de uma só cadeia,
    A multidão faminta cambaleia,
    E chora e dança ali!
    Um de raiva delira, outro enlouquece,
    Outro, que martírios embrutece,
    Cantando, geme e ri!

    No entanto o capitão manda a manobra,
    E após fitando o céu que se desdobra,
    Tão puro sobre o mar,
    Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
    "Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
    Fazei-os mais dançar!…"

    E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
    E da ronda fantástica a serpente
    Faz doudas espirais…
    Qual um sonho dantesco as sombras voam!…
    Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
    E ri-se Satanás!…

    V

    Senhor Deus dos desgraçados!
    Dizei-me vós, Senhor Deus!
    Se é loucura… se é verdade
    Tanto horror perante os céus?!
    Ó mar, por que não apagas
    Co'a esponja de tuas vagas
    De teu manto este borrão?…
    Astros! noites! tempestades!
    Rolai das imensidades!
    Varrei os mares, tufão!

    Quem são estes desgraçados
    Que não encontram em vós
    Mais que o rir calmo da turba
    Que excita a fúria do algoz?
    Quem são? Se a estrela se cala,
    Se a vaga à pressa resvala
    Como um cúmplice fugaz,
    Perante a noite confusa…
    Dize-o tu, severa Musa,
    Musa libérrima, audaz!…

    São os filhos do deserto,
    Onde a terra esposa a luz.
    Onde vive em campo aberto
    A tribo dos homens nus…
    São os guerreiros ousados
    Que com os tigres mosqueados
    Combatem na solidão.
    Ontem simples, fortes, bravos.
    Hoje míseros escravos,
    Sem luz, sem ar, sem razão…

    São mulheres desgraçadas,
    Como Agar o foi também.
    Que sedentas, alquebradas,
    De longe… bem longe vêm…
    Trazendo com tíbios passos,
    Filhos e algemas nos braços,
    N'alma — lágrimas e fel…
    Como Agar sofrendo tanto,
    Que nem o leite de pranto
    Têm que dar para Ismael.

    Lá nas areias infindas,
    Das palmeiras no país,
    Nasceram crianças lindas,
    Viveram moças gentis…
    Passa um dia a caravana,
    Quando a virgem na cabana
    Cisma da noite nos véus …
    …Adeus, ó choça do monte,
    …Adeus, palmeiras da fonte!…
    …Adeus, amores… adeus!…

    Depois, o areal extenso…
    Depois, o oceano de pó.
    Depois no horizonte imenso
    Desertos… desertos só…
    E a fome, o cansaço, a sede…
    Ai! quanto infeliz que cede,
    E cai p'ra não mais s'erguer!…
    Vaga um lugar na cadeia,
    Mas o chacal sobre a areia
    Acha um corpo que roer.

    Ontem a Serra Leoa,
    A guerra, a caça ao leão,
    O sono dormido à toa
    Sob as tendas d'amplidão!
    Hoje… o porão negro, fundo,
    Infecto, apertado, imundo,
    Tendo a peste por jaguar…
    E o sono sempre cortado
    Pelo arranco de um finado,
    E o baque de um corpo ao mar…

    Ontem plena liberdade,
    A vontade por poder…
    Hoje… cúm'lo de maldade,
    Nem são livres p'ra morrer. .
    Prende-os a mesma corrente
    — Férrea, lúgubre serpente —
    Nas roscas da escravidão.
    E assim zombando da morte,
    Dança a lúgubre coorte
    Ao som do açoute… Irrisão!…

    Senhor Deus dos desgraçados!
    Dizei-me vós, Senhor Deus,
    Se eu deliro… ou se é verdade
    Tanto horror perante os céus?!…
    Ó mar, por que não apagas
    Co'a esponja de tuas vagas
    Do teu manto este borrão?
    Astros! noites! tempestades!
    Rolai das imensidades!
    Varrei os mares, tufão!….

    VI

    Existe um povo que a bandeira empresta
    P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
    E deixa-a transformar-se nessa festa
    Em manto impuro de bacante fria!…
    Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
    Que impudente na gávea tripudia?
    Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
    Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
    Auriverde pendão de minha terra,
    Que a brisa do Brasil beija e balança,
    Estandarte que a luz do sol encerra
    E as promessas divinas da esperança…
    Tu que, da liberdade após a guerra,
    Foste hasteado dos heróis na lança
    Antes te houvessem roto na batalha,
    Que servires a um povo de mortalha!…

    Fatalidade atroz que a mente esmaga!
    Extingue nesta hora o brigue imundo
    O trilho que Colombo abriu nas vagas,
    Como um íris no pélago profundo!
    Mas é infâmia demais! … Da etérea plaga
    Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
    Andrada! arranca esse pendão dos ares!
    Colombo! fecha a porta dos teus mares!

    São Paulo, 18 de abril de 1869.
    (O Poeta, nascido em 14.03.1847,
    tinha apenas 22 anos de idade)


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