Houve um tempo em que eu era andarilho. Ainda estudante, vivia batendo perna pelo Recife. Minhas primeira andanças começaram quando ainda estudava no Colégio São Luís, nas Graças. Muitas vezes voltei para casa a pé. Morava no fim de uma rua, vizinho ao portão do Parque Regional de Motomecanização do Exército. A Rua Alfredo Fernandes era pacata, uma rua residencial. Hoje, escritórios, lojas e restaurantes dão um ar urbano, mas sem conseguir tirar todo o sossego que existia por lá.

      Saía andando. Às vezes a pé, noutras, de bicicleta. Bandeava pra tudo que era lado: Casa Forte, Parnamirim, Casa Amarela, Aflitos, Torre, Monteiro…

      Perambulei muito. Pegava uns atalhos para cortar caminho. Às vezes ia margeando o Rio Capibaribe. Passava pela Favela do Formigueiro, que desapareceu para dar espaço ao que chamam de progresso. Um progresso desordenado que deixou o trânsito por onde eu morava caótico, lento, barulhento.

      Na esquina do Hospital Maria Lucinda ficava a velha fábrica da Coca-cola. Pegava à direita e passava pela antiga Fecin – no local que se tornaria o Parque da Jaqueira. E seguia em frente até chegar ao colégio. Na hora de voltar, às vezes preferia a Rua do Futuro ou a Avenida Rosa e Silva, sonhando com uma carona amiga quando a fome batia.

      Na maioria das vezes, ia conversando com meus botões, pensando em futebol e outras coisas de menino. Tímido, arquitetava frases de amor nunca ditas. Vivia desejos não consumados, esbarrados também na repressão sexual que afligia as meninas como uma espada: se beijar, tem que namorar; mais tarde se transformava em: se transar tem que casar.

      Peripatético cheguei à universidade. Entrei primeiro no Centro de Artes e Comunicação, da Universidade Federal de Pernambuco, para fazer o curso de Comunicação Visual. Queria fazer capas de livros e discos, cartazes de cinema, etc. Mesmo sem muita habilidade manual, pensando em usar o que havia de tecnologia, numa época que nem havia todas essas facilidades dos programas de computadores atuais. No ano seguinte, entrei para Universidade Católica de Pernambuco, para fazer Jornalismo. Um curso complementando o outro. Terminei abandonando Comunicação Visual numa época em que o próprio curso estava em crise, em processo de transformação para o que é hoje, e os estágios me sufocavam. Fazia mais de um, às vezes três ao mesmo tempo.

      E seguia batendo pernas, agora mais para o centro da cidade. Quantas vezes eu fui e voltei da Unicap até a Rua Sete de Setembro para a Livraria Síntese e a Livro 7, que ficaram na memória? E do Jornal do Commercio até a Sete de Setembro, com uma parada providencial para uma cerveja com um caldinho ou amendoim na Rua da Roda? Nunca contei. Se contasse, perderia as contas.

      Às vezes caminhava solitariamente. Na maioria das vezes sozinho. Raramente, em companhia de algum colega de faculdade e boemia. Não me queixo. Não era ruim. Na verdade, até curtia caminhar assim. Às vezes, com um pedaço de papel à mão, um bloco, ou parando para pegar um caderno para ir fazendo algumas anotações ou escrevendo algum poema.

      Foi num dia assim, andando pelas ruas de paralelepípedos azulados do Bairro da Boa Vista que comecei a escrever o Poema para Carlos Pena Filho. Creio que o poema tenha uns 20 e poucos anos. Na época, o Bar Savoy ainda reunia alguns boêmios recifenses, com tantas histórias para contar.

      Poema para Carlos Pena Filho

Então Carlos
tropecei no azul de tanto espanto
enquanto a noite em seu carro veloz
me conduzia ao abismo da
                                         paixão

Fragmentado em tantas cores
dividido em tantos rios
vendo azul também as ruas
            me iludia
           achava que a vida era bela
           que toda paixão era sincera
           e eu era plural

E ao me ver refletido
na água da chuva que caía
e me queimava por dentro
               Percebi
que de azul vestido também eu estava
e os pingos dos néons coloridos
meu blue jeans desbotava
e de azul também estava vestida a minha alma.

Azul meu sapato encharcado de tantas noites
Assim vorazmente vividas.

É Carlos
A vida nos atropelou
                                        velozmente.
E se fez noite
Sem ninguém ter pressentido.

COLUNA O VELHO MUTLEY
MARCELO PEREIRA
escritor e jornalista

site: http://www.interpoetica.com/site/