A mídia passou o dia fazendo boca de urna para seu candidato, o demotucano José Serra, e agora prossegue prevendo o pior dos mundos para o governo da presidente Dilma Rousseff. Essa gente sabe que não pode enganar a todos o tempo todo e por isso faz do terrorismo político e do golpismo as suas principais armas de combate. É preciso recordar que o instinto dessa mídia é predador, traiçoeiro, golpista. Ela certamente logo voltará a tentar enfiar suas garras no governo, nem que seja para deixar a presidente sangrando — como tentaram fazer com Luiz Inácio Lula da Silva. A direita sabe que essa contenda reflete, no fundo, a luta entre a ética e a picaretagem, o debate político e o proselitismo. E sabe também que a evolução desse combate levará o Brasil para frente ou para trás.

O que ela não sabe ao certo — assim como ninguém — é o que vai acontecer. Mas todos sabem que os prosélitos de porta de funerária daqui a pouco, por um motivo qualquer, levantarão mais tsunamis políticos. Esse script está elaborado há muito tempo. Quem acompanha o mundo político, mesmo que à distância, vê diuturnamente que nesse espetáculo circense os atores têm papéis bem definidos. É um ato em que os líderes da oposição nem precisam aparecer — os ataques são feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como “analistas”. O objetivo — ou o mais adequado seria dizer desejo? — é ver o governo imobilizado.

Sordidez

O que se viu nessa campanha foi a repetição da sordidez monocórdia contra Lula, outrora usada também contra Getúlio Vargas — que o levou ao suicídio. Como naqueles idos, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir uma pessoa a quem seus acusadores, sem autoridade para sê-lo, só podem imputar o “crime” de pretender encurtar as distâncias sociais existentes em nosso país. Desde a sanha contra Vargas, nunca se viu tanto ódio, tanta torpeza, tantos insultos contra uma pessoa que nada fez para merecer isso tudo. A mesma sordidez foi — e será — usada contra Dilma Rousseff.

O que se passou com Dilma Rousseff nesta campanha é ignóbil. Dia a dia, ultrajaram-na mais. Nem a sua intimidade lhe pouparam. A mídia cometeu todos os desmandos, ultrapassou todos os limites, rompeu todas as convenções. Nada ficou de pé. A cada um dos desatinos a única preocupação era superar os anteriores. O único objetivo era criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas. O objetivo confesso era fazer a candidata uma criança órfã, desamparada de pai e mãe. Para tanto, se aproveitaram de suas próprias criações, como é o caso da corrupção, para vender a idéia de que o país precisava de um salvador da pátria.

Lufada

O editorial do provecto jornal O Estado de S. Paulo — controlado com mão de ferro pela oligarquia Mesquita — do dia 25 de setembro de 2010, intitulado “O mal a evitar”, foi uma espécie de voz do dono, a ordem unida para a multiplicação da pancadaria desfechada contra a candidata Dilma Rousseff. Não à toa, o texto inicia lembrando a constatação de Lula de que a mídia "se comporta como um partido político". O editorial retrata o pensamento da turma que viveu o lado gostoso da “era'' neoliberal, e que vive dias difíceis atualmente — os meses passam, os amigos próximos continuam sofrendo e reclamando, o noticiário está repleto de lágrimas, mas o Brasil que vai além do horizonte deles parece inexplicavelmente saudável.

Esse comportamento mostra que a direita não engolirá tranqüilamente mais quatro anos de progresso social no Brasil. Mas a lufada de ar fresco que desanuvia os pulmões de muitos brasileiros massacrados pelo peso da alta pirâmide social traz a convicção profunda de que continuaremos seguindo pelo caminho que contraria os conservadores. O sentimento traz alívio. Mas a sensação mais forte é de maturidade, de resposta ao deserto de idéias legado pela ''era'' neoliberal. A eleição de Dilma Rousseff representa mais um passo no caminho da substituição de um modelo dirigente sem fôlego, sem planos patrióticos, sem convicções democráticas. O movimento progressista brasileiro mostra força para varrer aquele atraso pastoso que vem dos presidentes escolhidos a dedo pelos monarquistas da véspera da República.

Crocodilo

O mar de lágrimas de crocodilo que toma conta da mídia, portanto, põe à disposição dos brasileiros um exercício simples e rápido para se ter uma boa idéia do tamanho da confusão em que a direita brasileira está metida. Não requer prática nem habilidade, e nenhum tipo de esforço mental mais puxado. À falta de mais mitos para justificar o fiasco da empulhação, próceres do conservadorismo já apontam suas armas contra o futuro governo de Dilma Rousseff —como acaba de fazer o trêfego FHC, para quem o currículo da presidente eleita “é ruim, é de agressão”.

Basta pensar um pouco, não mais que 5 minutos, para constatar que assim fica difícil falar em democracia. Não existe, em nenhuma nação democrática do mundo, nada que se possa comparar. Onde existe algo de parecido, não há democracia de verdade; onde há democracia de verdade, as coisas não são como no Brasil. Não se trata, aparentemente, de algo que se possa resolver com o tempo. Na teoria, a atuação constante e paciente da democracia — com eleições, separação dos poderes e exercício da cidadania — vai, pouco a pouco, limpando a vida política, desenvolvendo um verdadeiro espírito público e separando o joio do trigo. Na mídia brasileira, essa teoria funciona ao contrário. Com o passar do tempo, as coisas pioram, em vez de melhorar. O joio vai sendo separado, sim, do trigo — só que o “mundo da informação” fica cada vez com mais joio.

Condomínio

O que explica isso? A resposta é o limite para o exercício da democracia de massas numa sociedade fendida em dois extremos como a nossa. No Brasil, mídia e poder econômico formam uma simbiose histórica. Do lado de cá, onde está o povo, liberdade de expressão é algo inexistente. Se há uma coisa com a qual se pode contar com 100% de certeza no Brasil de hoje é a capacidade da mídia de colocar em circulação, cada vez mais e com intervalos cada vez menores, alguma idéia realmente muito perversa. É uma ofensiva sem precedentes para ganhar um grau inédito de controle sobre o fluxo da informação no país.

Já se passaram mais de 25 anos desde o último presidente militar, e mais de 30 desde que o AI-5 — em cima do qual se sustentava a ditadura — foi revogado. É tempo mais que de sobra para aprender como funciona uma democracia. Mas o que se conseguiu de concreto nesses anos todos foi a realidade contraditória que existe hoje. De um lado, um governo apoiado pelas forças progressistas; de outro, um condomínio de forças da direita decaída que luta para golpear o progresso social e a democracia.

Terapia

O que está realmente em jogo nisso tudo é uma diferença essencial no entendimento do que seja liberdade de expressão. Quem se opõe a esses grupos acredita em algo muito simples: os meios de comunicação que publicam informações erradas, cometem injustiças, causam danos ao público e aos indivíduos, atentam contra a lógica e ofendem o país — e até o vernáculo — não deveriam contar com a impunidade para cometer abusos indefinidamente.

A terapia para isso não está na criação de tribunais de disciplina. Para delitos praticados por jornalistas há o Código Penal. E para os prejuízos que causam há as indenizações aplicadas pela Justiça, com freqüência e valores maiores do que em geral se imagina — apesar de isso não ser nada para o poderio econômico dos grupos que controlam a mídia. O que falta são meios reais para o julgamento público de seus atos. Só com esses meios o país terá uma mídia com o grau de qualidade que corresponda a seu grau de exigência — da mesma forma que os países verdadeiramente democráticos têm os governos que escolhem e merecem.

Espasmo

Esse grau de democracia, no entanto, só será possível quando for limitada a progressão cada vez mais veloz e mais agressiva do desrespeito à liberdade de expressão como prática regular para defender interesses elitistas e reacionários. A desconstrução dessa desordem na vida diária do país só será possível pela via política. A coragem e a clareza que Dilma Rousseff mostrou ao fixar as linhas básicas de sua conduta, e que produziram resultados notáveis na área eleitoral, só será possível na área política com a entrada em cena de fato das forças progressistas.

O governo Dilma Rousseff tem tudo para fazer com que as ameaças de hoje se transformem, mais adiante, apenas na lembrança de um espasmo que deu em nada. Será preciso, para isso, que a presidente confie de verdade no mandato que recebeu e que conte com a ação efetiva da sua base social. Quando o assunto é tratado sem as bravatas e foguetórios da mídia, o que se vê é um panorama bem diferente. A briga real, com fichas de verdade na mesa, está no confronto entre um Brasil arcaico, que faz tudo para sobreviver, e um Brasil moderno, que está começando.

Passado

As calamidades que a elite brasileira foi capaz de produzir ao longo da história e parece decidida a continuar produzindo, numa espécie de rosca sem fim, ilustram essa situação de modo exemplar. É uma situação que pode ser descrita como o retrato da morte moral de uma ideologia que vive na delinqüência e se agarra a todas as formas de poder para continuar a delinqüir em larga escala. Todas essas coisas compõem o enredo da ópera, mas o seu melhor resumo não é o tamanho da vigarice, e sim a sua natureza: ela expressa, mais do que um espetáculo de má conduta, o funcionamento a todo o vapor do país do atraso.

O Brasil que vive do passado vai muito além da mídia — inclui forças políticas e práticas elitistas que sempre estiveram presentes em toda a nossa história. Na verdade, essa opção preferencial pelo arcaísmo, pela imobilidade social e pelo que não funciona é simplesmente o que se poderia mesmo esperar de um setor da sociedade que carrega usos e costumes que chegaram com a turma que desembarcou por aqui junto com Pedro Álvares Cabral.

Colonialismo

Conferir credibilidade ao seu projeto equivale a fundar, hoje, um partido a favor do colonialismo. Não é com a presidente eleita que a direita realmente está em guerra. O seu problema é com o Brasil que não quer mais ser o mesmo. Ela guerreia com este Brasil em transformação pelo menos desde o início da década de 40 do século XX. O problema é que de 1950 para cá a direita tem obtido poucas vitórias. De meados dos anos 1950 em diante, as forças populares deixaram de ser marginais para tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país.

Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, em sua campanha eleitoral para a Presidência da República, conforme ele mesmo disse, foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o petróleo por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido pelas forças progressistas. Fatos como este se repetiram nos governos Jânio Quadros e João Goulart, e refletiam o crescimento das correntes políticas populares. A eleição de Miguel Arraes para governador do Estado de Pernambuco marcou a entrada em cena, naquela conjuntura, de uma tendência política desvinculada dos esquemas tradicionais.

Frente ampla

Foi o suficiente para alarmar as forças conservadoras, atiçando o seu instinto de sobrevivência. A vida política do país foi se conturbando com o aprofundamento do choque entre os dois campos. E a UDN — o PSDB da época —, com suas faces gráfica, fardada e política, que havia sido batida com a renúncia de Jânio Quadros, partiu para a pregação golpista sem meias palavras. A situação se complicou quando surgiu a questão da sucessão presidencial, que deveria se dar em 1965.

O campo progressista discutia os nomes do próprio Juscelino Kubitschek, de Miguel Arraes, do ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e até a saída extraconstitucional da reeleição de Goulart para enfrentar Carlos Lacerda, do campo conservador. Quando o campo progressista tentou articular uma “frente ampla” sem Juscelino Kubitschek para sustentar o governo e fazer a sucessão presidencial, a direita já havia estruturado um engenhoso sistema de obtenção de fundos (sacados principalmente das grandes empresas estrangeiras) para financiar as ações golpistas.

Cegueira

Nas vésperas do golpe militar de 1º de abril de 1964, as bases políticas do campo progressista estavam bastante enfraquecidas. Era o resultado das eleições de outubro de 1962, quando a direita ganhou o controle dos principais Estados (com a exceção de Pernambuco). Contribuíram também para o enfraquecimento do campo popular os equívocos das forças progressistas que, aberta ou veladamente, compreendiam ser sua principal tarefa a criação de dificuldades ao governo — na vã ilusão de que com isso era possível avançar muito mais.

A cegueira política impediu que todos os esforços se voltassem para o combate ao inimigo, que preparava febrilmente o golpe de Estado. Quando os militares que expressavam a ideologia da UDN marcharam rumo ao Palácio do Planalto, o povo estava desarmado politicamente para enfrentar os golpistas. As forças populares se viram diante de um fato que não estava previsto em seus cálculos, ficando hemiplégicas diante dos acontecimentos. A tática das correntes progressistas estava apoiada numa base falsa: a de que não havia uma correlação de forças favorável ao golpe. Aprendemos, pois, com a história.