Amores Arquitetados
Trabalhar na repartição de projetos de um grande escritório de arquitetura sempre foi o sonho de Ana Paula. Até conseguir realizá-lo. Desde então, sua vida é catalogar, catalogar e catalogar. E catalogava o dia todo. Eram centenas de projetos em andamento. Dezenas de arquitetos e uma ou duas dúzias de estagiários, estudantes, para resolver todos os problemas que demandassem tempo ou prejudicassem o processo criativo daquele bando de pensadores de óculos retangulares, cabelos sempre bagunçados, roupas transadas e vidas comprometidas com seus projetos mirabolantes que, ao final, acabam virando o senso comum do cliente. E ela catalogava todos os impressos, correções, alterações, pedidos, anotações e ideias, em todas aquelas pastas. A fachada do escritório, localizado em Perdizes, pouco dizia sobre o porão onde ficava o arquivo e a mesa de Ana, onde ela passava todas as tardes, das duas às seis, catalogando, catalogando e catalogando. Sozinha. Enquanto fazia seu trabalho, aproveitava para bisbilhotar os projetos e pensar em ideais. Imaginava-se arquiteta e propunha, mentalmente, modificações que nunca poderia fazer. Pontuava algumas anotações em seu pequeno caderno, apenas para extrapolar os ânimos. Sonhava com o dia em que poderia ter uma mesa no primeiro andar, ao lado do Arquiteto que dá o nome à grande fachada. Vivia em um mundo seu. Incubado. Perdido.
Às seis ia para casa. São Paulo, nessa hora, sempre parece maior do que realmente é. Geralmente, optava pela caminhada. Mesmo quando chovia. Escolheu o curso de Arquitetura não só pela vontade de projetar, mas porque sempre gostou de observar o espaço. Entendê-lo. E, para isso, é preciso andar. Andar bastante. Até sua casa o relógio acusava 40 minutos de calçada, ao lado de viadutos, avenidas e carros. Passava por um cemitério, por um hospital, por algumas floriculturas. Passava por pessoas. Uma “profusão de cores e de sons”. De segunda à sexta essa era sua verdade urbana.
Há dias, porém, que pensamentos e angústias secretas tomam contam das pessoas e, naquele dia, ela apressou o passo.
Passo largo. Passo preciso. Olhou pouco para as flores. Olhou pouco nos olhos. Não olhou as pontas das cruzes sobre lápides. Completou o percurso em vinte e cinco minutos. Não passou na padaria. Não comprou frutas. Não viu o pôr do sol por entre aqueles dois prédios que, por alguma ironia da cidade, recebia o sol poente por dentre suas paredes. Entrou em casa sem dar boa tarde ao porteiro. Preferiu a escada. Abriu a porta. Parou. O gato roçava sua perna esquerda. Como num gesto automático abaixou-se e afagou-lhe. Largou a pasta de papéis sobre a mesa redonda da sala, fechou as cortinas e os blackouts para garantir a noite prematura. Foi ao banheiro. Olhou-se no espelho por um longo segundo. Tirou os óculos. A marca da armação no nariz era um segredo. Abriu o pequeno armário por detrás do espelho e apanhou o pote de comprimidos, sem rótulo, e derrubou três na mão esquerda. Guardou o pote, fechou o armário, olhou novamente seus olhos e, com a água na concha formada pela mão direita tomou todos os três. Depois lavou o rosto.
Tirou os tênis e caminhou até a cama arrancando a roupa. Nua, deitou, apagou as luzes, ligou o abajur, olhou para o teto e esperou o sono. “Um já bastava” – pensou. O peso das pálpebras era gigantesco. Fechou os olhos.
– Achei que não mais viria.
– Aqui estou.
O jovem de cabelos loiros e cacheados virou de costas.
– Eu vim o mais rápido que pude. Agora não chega a ser sete horas e já estou aqui dormindo.
– Creio que não goste mais de estar aqui comigo.
– Eu gosto.
– Toma remédios para vir.
– Tomo para vir mais rápido.
– Toma para conseguir chegar.
– Eu trouxe flores ontem.
– Eu as vi.
– E então.
– Não sei. Creio que eu vá embora, Ana.
– Mas e nós?
– Meus sentimentos estão confusos. Preciso de um tempo.
– Não faça isso comigo. Eu te amo.
– Deixe de bobagem. Como pode amar alguém que só existe em seus sonhos?
– Quem garante ser um sonho? Pode ser o mundo lá fora um sonho. Pode ser esse o mundo real.
– Ana, entenda. Estamos agora no mundo dos sonhos. Veja o céu: sempre azul. Veja as paredes: de tecido com pinturas artnoveau. Você inventou esse mundo. Você me inventou. Os seus projetos são todos de mentira. É uma pessoa que sonha com tudo que quer ser e não é. Repare: não há barulho e não precisamos de dinheiro para nada. Somos livres e estamos sozinhos. Como pode achar que esse não é o sonho?
– Eu acredito.
– E nem está nua. Dormiu nua, não dormiu? Esse vestido nem sequer existe. E pior, você enxerga sem óculos!
Ana pára. Chora em silêncio.
– Tudo bem. Eu vou embora desse lugar.
– Vai parar de sonhar?
– Vou.
– Como? Tomou remédio.
– Mas eu consigo voltar.
– Claro que não consegue.
– Consigo.
– Eu vou embora. Fique aí sentada até o efeito do remédio passar.
Ele se vai e ela fica ali por longas horas. Acordada em seu sono, pensando nos momentos que viveu com ele. Nos sonhos. Nos amores que perdeu e nos remédios.
Acorda. Ainda está nua, enroscada nos lençóis. Faz frio em São Paulo. Abre a cortina e confere se já é dia. O relógio aponta uma da tarde. Olha o céu e o vê nublado. Está novamente no mundo. Afaga o gato. Faz um chá. Recolhe as roupas. Pega seus materiais e sai. Perdeu o dia de aula. Resta o trabalho. Vai observando os olhares. Apreciando a cidade, que hoje parece um pouco mais triste, combinando com o céu, com seus sonhos perdidos. No escritório, pega um café e desce ao porão. Começa a catalogar e, entre um projeto e outro, pensa nos mundos. Para Ana, o dia será longo e os remédios acabaram.
Luiz Henrique Dias da Silva é escritor, estudante de arquitetura e comunista. Ele caminha diariamente pelas ruas da cidade observando e, certas vezes, falando sozinho. Acredita-se que ele seja louco. Ele responde que “não”. “Loucos”, diz ele, “são aqueles que olham este mundo e ficam de boca fechada”. Amigos, pedimos que vocês ignorem o Luiz.