A ANL e o Levante de 1935 – Entrevista com Marly Vianna
No mês em que comemoramos os 70 anos do levante armado da Aliança Nacional Libertadora (ANL), Augusto Buonicore entrevista para o Vermelho uma das principais estudiosas daquele memorável acontecimento, a historiadora Marly Vianna.
Durante o regime militar, Marly foi membro do secretariado nacional do PCB e estudou no Instituto de Ciências Sociais de Moscou. De volta ao Brasil doutorou-se em história pela USP e se tornou professora da Universidade Federal de São Carlos (SP). Atualmente leciona no curso de pós-graduação em história da Faculdade Universo (RJ). Ela é autora de um dos principais livros sobre o levante da ANL, Revolucionários de 35, sonho ou realidade e de inúmeros artigos sobre a atuação dos comunistas na conturbada década de 1930.
Vermelho: No seu livro você rebate as acusações de que a formação da Aliança Nacional Libertadora e a rebelião de novembro de 1935 foram resultados de uma decisão da Internacional Comunista. Você poderia então nos falar brevemente sobre as origens nacionais da ANL?
Marly: A ANL só teve origens nacionais. Ela surgiu a partir das lutas contra o integralismo, que foram duramente reprimidas. Desde o final de 1934 que os tenentes descontentes com os rumos da revolução de 1930 começaram a organizar a frente. O comandante da Marinha, Roberto Sisson, o principal idealizador da Aliança, resumiu sua origem – que não teve NADA a ver com o PCB. Sisson diz que ele e os tenentes que fundaram a ANL eram nacional-libertadores que lutavam pelo povo, com uma finalidade nacional: "a defesa antiimperialista do Brasil". Seu ideal era "nacional e popular", jamais tendo pensado em um regime comunista para o país. Explicava que se criara entre aquele grupo de tenentes um forte sentimento nacionalista e antiimperialista, sendo o imperialismo, inclusive, o responsável pela fraqueza das Forças Armadas.
Dos 17 fundadores da ANL escolhidos para sua direção oito eram militares, e os outros nove civis eram todos tenentistas.
Vermelho: Então, qual foi o papel desempenhado pela Internacional Comunista e seus dirigentes deslocados para o Brasil, como Berger, Ghioldi e Valée?
Marly: Quando esteve em Moscou, no final de 1934, a direção do PCB, representada por Antônio Maciel Bonfim, o Miranda, e outros membros da direção nacional, contaram inúmeras mentiras sobre a situação brasileira: que seria pré-revolucionária, com o partido “dirigindo as massas” em todo o país, tendo células em todos os municípios, atendendo a pedidos de orientação dos cangaceiros às polícias.
Prestes, disposto a retornar ao Brasil para dirigir a revolução, decidiu-se logo pela volta. Quanto à Internacional, apesar de encantada com os informes de Miranda, disse claramente que ainda faltava muito para que o partido pensasse num movimento insurrecional, entre outras coisas porque não tinha bases no campo. Miranda, na ocasião, pediu que viesse um assessor para cá, para orientar o partido e foi essa a missão de Artur Ewert (Berguer).Aliás, não era a primeira vez que vinham para cá assessores da IC. Guioldi veio representando o Secretariado sul-americano da IC, que de Montevidéu foi transferido para o Rio. Leon-Vallé era o homem das finanças que sustentava o grupo. Vieram também dois técnicos, para ajuda aos revolucionários: o americano Baron, especialista em rádio transmissão, com o objetivo específico de estabelecer comunicação com Moscou – o que conseguiu a 26 de novembro, véspera do levante no Rio. E Gruber, especialista em explosivos, com a mulher, que era motorista. As outras mulheres vieram acompanhando os maridos por questões de segurança.
A IC não arriscou – não arriscaria – qualquer responsabilidade por um levante, mas resolveu dar uma pequena ajuda, para o caso da situação ser mesmo aquela que Miranda descrevera. Creio que sua atitude foi a de uma expectativa conivente.
Vermelho: Você afirma que o levante de 1935 foi à última manifestação do tenentismo revolucionário. Seria, assim, o encerramento de um ciclo político iniciado pela revolta do Forte de Copacabana em 1922. Outros autores, no entanto, afirmam que a ANL representa à superação do tenentismo, graças ao programa avançado defendido. Você poderia tratar dessa contradição entre programa amplo e o método escolhido para alcançá-lo: a insurreição militar.
Marly: Não creio que a ANL tenha sido uma superação do tenentismo. A “quantidade” do avanço no programa da ALN não chegou a mudar a qualidade da perspectiva dos tenentes. No início da década de 20, de acordo com a situação da época, pediam moralidade política e voto secreto. Em 30, apesar de conseguido o voto secreto, os tenentes “de esquerda”, – aqueles que fundaram a ANL – julgaram que os políticos corruptos haviam voltado. Mas essas são questões de programa, que a própria época colocava. No que considero principal, o programa da ANL continuava vago como sempre fora – característica dos tenentes – e cheio de ambigüidades. Por exemplo, a ANL apresentava um programa de governo, mas não se colocava a questão do poder e até insistia que não o almejava. Esta posição era reflexo exatamente da proposta ideológica dos tenentes: nacionalista e democrática, julgava poder transformar o país econômica e socialmente sem modificar o regime. Tal como agiram – os mesmos, por sinal – no início dos anos 20. O descompasso entre a proposta ampla e a luta armada para alcançá-la é justamente uma característica dos tenentes que só acreditavam em levantes de quartel.
Vermelho: Quais foram os erros cometidos pela ANL, que permitiram que um movimento em constante ascensão pudesse ser isolado e derrotado com relativa facilidade pelo governo de Vargas?
Marly: Principalmente não ter avaliado a correlação de forças. E é duvidoso que pudessem escapar a essa falsa avaliação, pois a agitação no país nos anos que se seguiram a 30 era imensa, assim como a mobilização popular. Quando a caravana da Aliança percorreu o Nordeste, foi ovacionado por toda parte.
No entanto, se havia essa avaliação entusiasmada, pelo movimento de massas ascendente, este não era suficiente para ir às ruas e assumir os riscos de um enfrentamento com o governo, protestando, por exemplo, contra o fechamento da ANL. Creio que podemos fazer uma comparação com o movimento pelas Diretas Já. A mobilização popular foi incrível e parecia que… parecia. Não houve diretas e não houve reação popular.
Além do mais, depois do manifesto de Prestes do 5 de Julho de 35, o governo desencadeou uma campanha anticomunista fortíssima, o que sempre assustou a população.
Vermelho: A derrota do levante do Rio de Janeiro em 27 de novembro não arrefeceu o ânimo dos comunistas. Eles consideram aquela apenas uma derrota provisória. Chegaram mesmo a conclamar a formação de guerrilhas rurais. Quando a derrota foi percebida e quais as alterações promovidas na tática dos comunistas brasileiros?
Marly: Até a prisão de Prestes, a 5 de março de 1936, nenhuma. Continuou-se imaginando que a derrota fosse passageira e a incentivar as “guerrilhas”. Oficiais presos dormiam vestidos, pois esperavam ser libertados a qualquer momento.
Depois da prisão de Prestes, o secretariado passou a falar em frente única contra Vargas, pela anistia e contra o estado de sítio.
Vermelho: Durante décadas foi vendida a idéia de que os revolucionários haviam assassinado covardemente oficiais legalistas enquanto dormiam. O que de fato ocorreu? Quantas pessoas morreram naquele conflito?
Marly: A mentira é grosseira. Quem dorme em dia de prontidão? O senador Jarbas Passarinho nos idos de 70, foi ao Congresso, em nome de famílias de oficiais mortos, para declarar que não estavam dormindo, o que seria uma iniqüidade.
No Rio Grande do Norte morreu um soldado, por imprudência dele, na tomada do quartel da Polícia Militar, a única unidade que resistiu.
Em Recife morreu um oficial, dos muitos que enfrentou Gregório Bezerra quando este tomou, sozinho – o quartel da 7ª Região Militar. Quanto ao número de rebeldes ou simpatizantes do movimento, assassinados por Newton Cavalcanti e outros, chegou a centenas.
No 3º RI morreram dois oficiais: o segundo-tenente revolucionário Tomás Meireles e o major legalista Misael Mendonça. O tenente Tomás Meireles morreu alvejado pelo tenente legalista Armando Rodrigues Pereira (que passou em seguida a trabalhar na polícia de Filinto Müller) e Misael Mendonça, segundo vários relatos, por imprudência: "Ia passando um sargento e ele gritou para que parasse. O sargento não parou e Misael atirou nele, ferindo-o, mas o sargento teve tempo de revidar, atingindo mortalmente o major". Aliás, é só recorrer ao laudo médico do relatório policial, apoiado no depoimento de oficiais legalistas, sobre o 3ºRI, que não deixa qualquer dúvida. Diz o laudo: “No 3º Batalhão, o major Misael Mendonça, quando procurava inteirar-se dos acontecimentos, logo no começo da revolta, morre atingido por uma bala, junto à porta de Companhia de Metralhadoras do regimento”. Muitas foram as mortes provocadas pelo ataque do governo ao quartel.
Na Escola de Aviação Militar morreu um oficial legalista quando da tomada da Escola, num enfrentamento com o capitão Agliberto Vieira de Azevedo. As outras mortes – várias – foram de revolucionários, durante a luta.
As histórias de oficiais mortos dormindo foram pura invenção da polícia fascista de Filinto Müller e nem sequer foram veiculadas de imediato.
Vermelho: Você acredita, como afirmam os historiadores liberais, que o levante foi à causa principal de instauração do Estado Novo em novembro de 1937?
Marly: De nenhuma maneira. Getúlio sempre teve planos continuístas. Em 1935, quando chegaram ao Rio as notícias dos levantes no Nordeste, as preocupações de Vargas – como mostra sua correspondência na ocasião – era com e sobre Flores da Cunha, que ameaçava seus planos continuístas. No final de 1935, a frente contra Getúlio era grande, incluindo seu próprio patrono, Borges de Medeiros. O que Getúlio fez foi usar a “Intentona” em seu proveito, e uniu em torno de si toda a oposição a seu governo.
Em 1937, com o PCB completamente desarticulado e centenas de comunistas presos, Vargas teve que recorrer a invenção do famoso Plano Cohen para justificar o Estado Novo, que vinha tramando com cuidado. Creio que nem mesmo indiretamente 35 teve a ver com o Estado Novo – ou não teria sido necessário inventar outra mentira.
Essa tese, a meu ver, deve-se, primeiro, a organização de causalidades tolas; em segundo lugar, não deixa de ser uma aceitação do anticomunismo, o bicho-papão responsável por todos os males.
Vermelho: Qual foi a importância da Aliança Nacional Libertadora e do levante de 1935 para a história do movimento operário e socialista no Brasil?
Marly: Acho que foi positiva. A ANL foi uma grande frente antifascista, antiimperialista, antilatifundiária, cujo lema era: “Pão, Terra e Liberdade”. Durante seu pequeno período de existência ajudou a organizar não só o movimento popular como o sindical.
O levante de novembro, no Rio, apesar da derrota, também deixou um saldo positivo. É claro que um movimento derrotado carrega com ele todo o ônus da derrota, em especial a repressão e o atraso do movimento popular, justamente por ter sido derrotado e sofrido as conseqüências de derrota. Mas não se pode julgar um movimento como positivo apenas quando é vencedor, ou desprezaríamos a Comuna de Paris, a revolução de 1905 na Rússia, os movimentos revolucionários do início dos anos 20, na Europa Central, a Guerra Civil Espanhola, para citar algumas situações históricas. Só ir à luta com a certeza da vitória é pusilanimidade.
Além da luta antifascista, antiimperialista e da experiência de organização popular, o levante deixou para o movimento operário e socialista do Brasil a importância do exemplo, do exemplo de um punhado de homens que possuía um ideal – a luta pela liberdade, contra a exploração do país pelo imperialismo, pela distribuição da terra a quem nela trabalha – e seu conteúdo de dignidade humana, a capacidade de ir a luta por esse ideal.