Branco soldado Antônio; Manuel, mulato pardo; negro,
negro de carvão era o soldado Romão.
Antônio leu um papel, circulava entre os soldados
de mão em mão, escondido.
“Soldado, que fazes tu?”, o papel lhe perguntava.
“Vais teu fuzil apontar contra os grevistas de Santos,
teus irmãos trabalhadores?”
Eram em Santos três soldados, de baioneta calada.
Quando soube o coronel, contado por um tenente,
dos resmungos dos soldados, meteu na cinta o revólver,
se encaminhou para o quartel.
Os soldados resolveram sortear quem entre eles
com o coronel falaria
Eram em Santos três soldados, de baioneta calada.
Branco soldado Antônio; Manuel mulato pardo; negro,
negro de carvão, era o soldado Romão.
Nem começaram a falar.
Eram em Santos três soldados,
os três num muro encostados.
Eram em Santos três soldados,
vermelho sangue dos três!
(Os subterrâneos da liberdade, II, Jorge Amado)

“Vermelho sangue dos negros” simboliza três acontecimentos memoráveis da história do Brasil: a guerra de Palmares, que agora completa 300 anos; a de Canudos, que fará 100 anos; e a guerrilha do Araguaia, que se avizinha dos 25. Os três negros foram Zumbi, Pajeú e Osvaldão.

Palmares, Canudos e Araguaia foram expressões de conflitos sociais e políticos de suas épocas e tiveram, entre si, como idéia comum, a perene busca da liberdade. Zumbi, Pajeú e Osvaldão surgiram nessas lutas, nelas se engrandeceram, e por elas e com elas foram trucidados. Restaram-lhes passaportes garantidos para a história imorredoura dos heróis.

O herói é expressão personalizada e sublimada de um evento de significado histórico. O seu feito decorre do feito de sua gente, levado a píncaros de grandiosidade, a partir de seu exemplo. Seu talento vem da sua capacidade de traduzir em ação concreta e audaz a aspiração de seu grupo e de seu momento. Seu desempenho decorre de sua integração com as massas e sua época.

Isolado do seu povo e dos ideais de seu tempo, uma personalidade marcante pode até afirmar-se em algum campo de atividade. Dificilmente tornar-se-á figura emblemática de um movimento. A vivência profunda com a comunidade a que pertence é que lhe dá a sintonia fina com sua gente, permitindo-lhe traduzir, na palavra, na ação e na emoção, seus sentimentos e anseios.

Todo projeto histórico que mobiliza massas humanas o faz hasteando bandeiras grandiosas. A bandeira da liberdade é das mais fulgurantes e das que mais incendeiam corações.
A luta pela liberdade apresenta, como tudo no mundo, grande diversidade de formas, aparecendo sempre com as particularidades do espaço e do tempo onde floresce. E assim permeia toda a história humana: límpida e direta, na peleja contra a escravidão e a opressão; difusa, mas presente, quando outros objetivos predominam. Freqüentemente leva multidões a gestos impetuosos e sacrifícios inauditos, onde a têmpera do combatente se eleva a níveis inacreditáveis. E é aí que surgem os heróis – filhos das grandes lutas – indivíduos que, vivendo com elas, vivem para elas, sendo suas representações máximas e legendárias.

Os heróis populares são quase sempre desconsiderados pela historiografia oficial, pela sua origem, plebéia ou pelas causas não convencionais que abraçaram. Mas não são esquecidos pelo povo, que lhes perpetua a memória em resistência ideológica admirável. Suas façanhas são transmitidas às gerações seguintes, enaltecidas, romanceadas, cantadas em prosa, verso e música. Seus nomes são dados a crianças, lugarejos, entidades e cidades onde viveram. Semelhanças nas diferenças
Zumbi, Pajeú e Osvaldão viveram a luta pela liberdade em sua concretude histórica e, por isso, tiveram experiências práticas muito diferentes, mas que guardam significativas semelhanças.
A despeito das motivações iniciais, os três e os seus liderados foram inexoravelmente levados, pelo sonho libertário que viveram, a enfrentar o poder central do momento.

Zumbi e seu povo, em Palmares, no século XVII, no Brasil colônia, rebelados contra a escravidão e pretendendo estruturar uma organização própria, em liberdade, desencadearam a fúria de um regime escravocrata – o Reino de Portugal – que lhes fez guerra.

Pajeú e sua gente, em Canudos, no século XIX, nos albores da República, reagindo à opressão e aos desmandos que lhes negavam a vida comunitária que queriam, provocaram a ira do poder recém-implantado, que lhes respondeu com guerra.

Osvaldão e seus homens, no Araguaia, no terço final do século XX, com o país já medianamente desenvolvido, mas em tempo de arbítrio, opondo-se à tirania que se alastrava, suscitaram a represália do poder central, sob a forma de guerra.

O traço comum entre Palmares, Canudos e Araguaia: busca da liberdade

Palmares, Canudos e Araguaia foram movimentos pela liberdade social e política.

Palmares foi o primeiro grandioso projeto de vida organizada e livre construído no Brasil por ex-escravos rompidos com o cativeiro. A luta ali era diretamente libertária. O quilombo foi a forma de estruturar, em território livre, a atividade econômica e a resistência.

Canudos foi a promessa de redenção da vida áspera dos sertões através da união com um Conselheiro. Multidões atendiam ao chamado profético por causa das condições dramáticas da exclusão social, da opressão do latifúndio e do atraso gritante do sertão desassistido. A resistência aos ataques desenfreados do governo teve a marca de uma luta contra a opressão e pela libertação social, sob a forma, sobretudo no início, de uma jornada messiânica.

O Araguaia foi o gesto inesperado, de insubmissão decidida, perpetrado por brasileiros rebelados, conscientes da alta missão que tinham de barrar (ou começar a fazê-lo) a marcha do autoritarismo no país, que parecia inexorável. O poder central, ditatorial, era posto em questão, na forma de um movimento local em defesa dos direitos do povo, porém com perspectiva mais ampla.
Esse traço comum – a busca da liberdade – deu aos combatentes das três lutas aquela abnegação desenvolta, doação profunda e espírito de sacrifício, que só apareceram, e aparecem incondicionalmente, nas jornadas grandiosas.

As figuras estóicas de Zumbi, Pajeú e Osvaldão foram plasmadas na luta. Originariamente, nenhum dos três era o vulto central dos movimentos que os notabilizaram.

Em Palmares, a personagem principal no início era o rei Ganga-Zumba. Seu sobrinho, Zumbi, foi escolhido chefe, após a morte do rei, não por ser seu parente, pois o rei tinha filhos, mas por ter conquistado, ao cabo de longas lutas, a liderança inconteste.

Em Canudos, o líder dos primeiros tempos era um beato, Antônio Conselheiro, liderança carismática de grande apelo, que atraía multidões com suas pregações e rebeldia. No curso da guerra foi que apareceu o chefe monumental das operações que a própria guerra forjou – Pajeú.
No Araguaia, Osvaldão tampouco era inicialmente a figura-chave, num contexto em que se encontravam veteranos dirigentes comunistas como Maurício Grabois e Ângelo Arroio, e onde, na fase preparatória, até o próprio João Amazonas esteve. O nome de Osvaldão ocupa a posição de destaque no curso das operações guerreiras, tal qual os outros.

Zumbi, Pajeú e Osvaldão se distinguiram, assim, por qualidades militares descobertas, testadas e desenvolvidas a partir do nada, nas batalhas. Dos três, só Osvaldão tinha curso militar básico, de oficial da reserva do Exército Brasileiro, que lhe tinha dado idéias iniciais de comando.

A qualidade de comando a que os três chegaram, o sentido militar tático e estratégico que desenvolveram, eles demonstraram elevando a um potencial extremamente superior as forças inicialmente precárias que comandavam. Os contingentes legalistas que os enfrentaram, numericamente poderosos e infinitamente mais bem armados, foram por eles contidos, até certo ponto desbaratados, desnorteados. No balanço do potencial de fogo e preparo militar dos combatentes, nas três situações, tudo se passou como se fosse a luta de um Davi contra Golias. E o Golias afinal venceu, mas após muitas perdas, muita demonstração de fraqueza interior, muito apelo a ignomínias e muito tempo.

No quilombo de trezentos anos

Em Palmares, depois de sessenta e dois anos de resistência heróica e vitoriosa, o governo de Pernambuco contratou, para fazer frente ao famoso quilombo, nada menos que um dos mais sanguinários bandidos da época – Domingos Jorge Velho.

Jorge Velho era um paulista que se notabilizara como assassino frio de levas indígenas, um genocida profissional. É claro que não matava “de graça”, mas contratado por autoridade “competente”. Seu serviço tinha nome de respeito, “sertanismo de contrato”. Os grupos que comandava tinham brancos e muitos índios.

Estava Jorge Velho, em 1685, ocupado na missão que lhe deram de dizimar os índios tabajaras, oroazes e cuminharões, no interior do Piauí, quando recebeu o chamado do governador de Pernambuco, Souto Maior, que o encaminhava para outra missão – a de exterminar os palmarinos. Depois de delongas, demora para acertar os termos altamente vantajosos da guerra que iria fazer e tempo para cumprir interpostas missões, como esmagar os índios janduís, Domingos Jorge Velho finalmente chega a Palmares, em dezembro de 1692, ostentando o título de mestre-de-campo.
Na primeira e impetuosa investida feita sobre os mocambos de Palmares, Jorge Velho pagou caro a subestimação dos adversários, os quilombolas, então comandados por seu líder insigne – Zumbi. O mestre-de-campo amargou derrota completa. Com suas forças desbaratadas, recolheu-se a Porto Calvo, à espera de reforços.

Quase um ano após, em novembro de 1693, já reforçado, o sertanista contratado desencadeia nova investida contra Palmares, e de novo é barrado por Zumbi, seus homens e sua tática da “cerca tríplice”. Recua, acampa e, em janeiro de 1694, recebe grandioso apoio, em homens e munições, e até peças de artilharia. O bandoleiro tinha agora sob seu comando três mil homens e canhões.

De novo atirou-se sobre Palmares, que resistiu bravamente. Os homens do bandoleiro-pago-para-matar sitiam o mocambo mais importante, conhecido por Macaco, diretamente defendido por Zumbi. A resistência foi encarniçada. Desigual. Demorou vinte e dois dias. Foram faltando munições aos palmarinos, até que Zumbi tenta uma retirada estratégica. Na madrugada do dia 6 de fevereiro, sorrateiros, centenas de negros procuram romper o cerco inimigo. Infelicidade: foram descobertos. No ato são dizimados cerca de 400; assassinados em seguida em outros mocambos outros tantos; desbaratados feridos e perdidos, centenas. Palmares caiu assim, depois de 65 anos de existência, resistência, luta, vida e glória. Foi o primeiro reino-república de negros fora da África. Tinha uma população de 20 mil pessoas.

Mas, se no dia 6 de fevereiro de 1695, Palmares foi tomada, não o foi com o seu grande líder Zumbi. Este evadiu-se. Pelos meses seguintes, à frente de poucos sobreviventes, continuou a luta, realizando operações de guerrilha, fustigando seus algozes. A partir de informação prestada por um seu auxiliar, barbaramente torturado por Domingos Jorge Velho, foi encontrado. Resistiu indomável com vinte homens, até serem todos mortos. Era o dia 20 de novembro de 1695, há trezentos anos. É por isso que os movimentos negros do Brasil querem ver transformada essa data em Dia Nacional da Consciência Negra. Nada mais justo.

E o sertão viraria mar

Em Canudos, logo no início da República, levas e levas de sertanejos, fugidos da seca, expulsos pelo latifúndio, sem eira nem beira, aglutinavam-se em torno de uma figura carismática de pregador, profeta e organizador social, Antonio Conselheiro. Na força de seu simbolismo, o sertão viraria mar… Negros, egressos da escravatura, “pessoal 13 de maio”, como eram chamados, também para lá se dirigiam em busca de trabalho e do respeito negado nas cidades ao ex-escravo.

Não havia por que fazer-lhes guerra. Não era um ajuntamento de bandoleiros ou de foragidos. Era um grupo numeroso de brasileiros pobres, camponeses atribulados com a dura luta pela vida, sem qualquer apoio, sofrendo as consequências de fenômenos econômicos, políticos e climáticos que transcendiam a sua compreensão, com suas crenças ecléticas e primitivas, com sua moral própria que coibia saques em fazendas, com seus líderes toscos, embora pujantes, e com suas opiniões sobre sistemas de governo – monarquia ou república – inteiramente desprovidas de conteúdo ou consequência.

O esforço extraordinário que desenvolviam estava dando certo, apesar de não contarem com nada, a não ser com unidade em torno de liderança forte e com capacidade de organização. Canudos crescia.
Entretanto, o sistema do latifúndio se sentiu questionado, a Igreja se sentiu desafiada e o Estado se sentiu ameaçado. E uma guerra foi feita contra esse reduto, com mobilização nacional de tropas, participação direta do Exército, as mais modernas armas existentes, sob o comando de generais.

Canudos, a maior aglomeração humana do interior da Bahia na época – 30 mil habitantes – sofreu o assédio de quatro campanhas, uma de tropas estaduais, três de tropas federais, estas totalizando mais de 12 mil homens. O estado de espírito com que enfrentaram Conselheiro e sua gente era o da destruição completa, como patenteia o desejo expresso pelo presidente Prudente de Moraes ao se despedir no Rio de Janeiro de uma força expedicionária que ia aos sertões da Bahia: “(…)que não fique pedra sobre pedra”.

Pajeú foi a figura admirável que despontou dessas campanhas entre o poder e os pobres. Era um homem acima dos prognósticos: audácia acima da coragem, liderança inconteste e golpe de vista tático instantâneo. Quando a quarta campanha se aproximava de Canudos, em cerco mortal, Pajeú sentiu a necessidade de atrair as forças do governo para uma armadilha. Euclides da Cunha conta o episódio: “O inimigo (os homens de Canudos) aparece outra vez. Mas célere, fugitivo… Dirigia-o Pajeú.

O guerrilheiro famoso visava à primeira vista um reconhecimento. Mas, de fato (…) tinha objetivo mais inteligente: provoca um delírio de descargas e um marche-marche doido (…) Desapareceu. Surgiu logo depois, adiante (…) Passou, num relance, acompanhado de poucos atiradores, por diante, na estrada. Não foi possível distingui-los bem. Trocadas algumas balas desapareceram (…) Duas horas depois, ao transpor o general o teso de uma colina, o ataque recrudesceu de súbito (…) O tiroteio frouxo… transmudou-se numa fuzilaria furiosa… Não se via o inimigo (…) metido dentro das trincheiras-abrigos (…) e encoberto nas primeiras sombras da noite que descia. A situação era desesperadora. Triunfara o ardil. Os expedicionários (…) haviam imprudentemente enveredado (…) pela paragem desconhecida, acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que não contavam – Pajeú”.

Quando a última expedição fechava o cerco sobre Canudos, Pajeú, que sempre emboscara o adversário bem antes de Canudos, agora estava ali, vendo seu reduto ser emboscado. De repente, localizou o ponto mais fraco do seu inimigo e lançou sobre ele ataque fulminante. A surpresa e impetuosidade foram tais que o cerco ficou em perigo e, em decorrência, a própria quarta expedição. Os três generais presentes no teatro de operações tiveram de fazer grande concentração de forças para repelir o golpe de Pajeú. Conseguiram. Em 24 de julho de 1897, morreu Pajeú, como morrem os heróis: em meio a uma empreitada intrépida. Foram necessários três generais para abatê-lo…

Sob a proteção do verde

O Araguaia – a guerrilha do Araguaia – foi o gesto mais resoluto que se levantou no Brasil contra o regime ditatorial implantado no país na década de 1960. Simboliza a disposição do povo brasileiro de reagir, a preço do que for necessário, a tentativas tirânicas. Para detê-lo, foi feita a maior mobilização de tropas no Brasil desde a Segunda Guerra Mundial.

Orientados pelo PC do Brasil, à medida que ficavam inviáveis a atividade política e a resistência nas grandes cidades, homens e mulheres, jovens e pessoas de meia idade começaram a se deslocar para o Araguaia (os primeiros, a partir de 1966). Cuidavam de roça, tocavam pequenos comércios, prestavam serviços à população. E, como não tinham ilusões, preparavam-se para a defesa.
De fato, tropas regulares atacaram a região, no dia 12 de abril de 1972. A pretensão era liquidar rapidamente aqueles “subversivos” que, entretanto, responderam com a guerrilha na selva. Ao cabo de quatro meses, o grosso das tropas se retirou. Seu objetivo não fora atingido. A guerrilha do Araguaia estava de pé.

Naqueles ermos bravios da região do Araguaia, nunca se vira contar a história de homens que enfrentaram e ganharam do Exército, apetrechado de tudo, com dois generais, Viana Moog e Antonio Bandeira. Por isso, os “homens da mata” retornaram como heróis.
Houve uma segunda e curta campanha, de dois meses, em que os resultados não foram diferentes. Com baixas, a guerrilha sobreviveu.

No período que se seguiu, de aproximadamente um ano, com o grosso das tropas fora do Araguaia, os “homens da mata” ressurgiram de novo da vastidão verde que os protegia. E desenvolveram intenso trabalho político junto à população.

Para derrotar a guerrilha do Araguaia, as forças armadas governamentais tiveram de fazer uma terceira e aparatosa campanha, de outubro de 1973 a janeiro de 1975, com a participação de inúmeras unidades militares, das três armas e da polícia, e com serviços de engenharia construindo estradas, e tropas de elite, sob o comando do general Hugo de Abreu.

O Araguaia revelou uma figura emblemática, Osvaldo Orlando da Costa. Seu porte atlético de ex-campeão carioca de boxe pelo Botafogo, e seus quase dois metros de altura, justificavam seu apelido, Osvaldão. Mineiro de Passa-Quatro, também era Mineirão.

Soldado atingido por Osvaldão tinha bala cravada na testa ou no coração

Em Osvaldão, funde-se o relato de seus feitos com a imaginação com que o viam. Sua coragem, força, pontaria e bondade, que eram grandes, na boca do povo se tornaram lendas. Espíritos “baixavam” em sessões do “terecô”, o candomblé local, para dizer que Osvaldão era imortal. Alguns testemunhavam ter visto o Saci – da mitologia regional – pessoalmente ajudando Osvaldão a levantar cargas enormes. Soldado atingido por Osvaldão tinha bala cravada no meio da testa, ou bem em cima do coração. Ao comprar de uma mulher aflita por falta de dinheiro o único bem que ela tinha e que estava vendendo, um cachorro, deu-lhe o dinheiro e fez-lhe um pedido – guardar o cachorro até que ele pudesse vir apanhá-lo. A criatividade popular emoldura um personagem com as cores vibrantes das qualidades exageradas, quando quer homenageá-lo. Os poetas também assim procedem, como nesses registros, da poeta Solange Lima sobre Osvaldão: “Percorria a floresta com a habilidade de um Oxóssi caçador, dirigido pelos ventos, protegido pelas águas doces do rio-mar”. “Desapareceu a 25 de dezembro de 1973. Mas, não morre em dia de Natal quem é do povo e nele vive. Renasce nos sonhos das crianças – iluminando-as, ou nas assombrações dos reacionários – acusando-os”. “Zumbi redivivo na dimensão moderna de um guerreiro de raça negra, a mais proletária de todas as raças e por isso vanguarda e sentinela de todas as conquistas libertárias” (1).

A virulência secular

A tradição das classes dominantes no Brasil é de virulência no enfrentamento das lutas por reivindicações sociais. A crueldade é constante. Na análise comparativa de Palmares, Canudos e Araguaia, a despeito da enorme distância que separa essas lutas no tempo, salta aos olhos a utilização dos mesmos métodos torpes empregados pelos legalistas, o que faz desses fatos históricos episódios de guerra suja.

Permeando os grandes momentos dessas guerras de libertação, têm relevo e despertam repugnância as bestialidades consumadas pelas forças legalistas.

Domingos Jorge Velho, o comandante das forças da “ordem” vitoriosas em Palmares, certa feita cortou a cabeça de duzentos índios, simplesmente por não quererem ir à guerra de Palmares. Enquanto esperava reforços do poder central, vestiu diversos negros capturados com roupas infectadas por doenças contagiosas e os remeteu a Palmares. Zumbi, depois de morto, foi degolado. Sua cabeça foi espetada em um poste e ficou exposta por muito tempo na principal praça de Recife, para intimidar quem pretendesse se inspirar no exemplo de luta do grande rei negro. Vã pretensão, trezentos anos depois, Zumbi vai se transformando em um dos maiores heróis da luta pela liberdade no Brasil, fonte de inspiração de levas de brasileiros.

A crueldade contra os sertanejos perpassou toda a guerra de Canudos. Institui-se a gravata vermelha, degola repugnante de todos aqueles em que se conseguiam pôr as mãos. O episódio do Beatinho é doloroso. Na última campanha, antevendo a derrota, Beatinho saiu sozinho e propôs um entendimento com o general Artur Oscar. Tinha um grupo que propunha se entregar em troca da vida. O general deu-lhe a palavra: “A vida será garantida”. César Zama, político e intelectual baiano, contemporâneo dos fatos, conta o resto: “Beatinho voltou ao arraial; reuniu um grupo, superior a mil indivíduos, composto de mulheres, crianças, velhos, feridos, enfermos e, horas depois, com toda essa gente, que até às pedras inspirava compaixão, foi ter ao quartel general. Estavam todos profundamente convencidos de que o compromisso de honra de um general brasileiro seria satisfeito. O que se passou depois não se qualifica… Beatinho e todos os infelizes que o acompanharam, sem exceção de um só, foram friamente degolados. Atrocidades tais não se descrevem, nem se comentam” (2).

Cada campanha militar começava com regime de muito terror

No Araguaia, cada campanha militar começava com a implantação de um regime de terror contra a população camponesa indefesa. Nas áreas de atuação da guerrilha, quase todos os homens válidos foi preso no início da terceira campanha. O espancamento de populares era usual. Os presos eram torturados. Muito choque elétrico. Alguns tomaram tantas pancadas que enlouqueceram (3). Houve um pequeno comerciante que, depois de espancado brutalmente, foi amarrado em um pau e exposto nas ruas de São João do Araguaia (4). Buracos foram abertos, dois metros de profundidade, cobertos de arame farpado, onde os presos, com pés e mão algemados, ficavam depositados. Padres e freiras sofreram também toda sorte de torturas. Relatório da CNBB considera impublicáveis as torturas sofridas pela irmã Maria das Graças, no lugar chamado Palestina (5). E a prática da degola, do corte das cabeças, voltou a ser usada amplamente, como demonstram fotos apresentadas de terríveis interrogatórios realizados à época, em Brasília (6).

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Haroldo Lima, ex-deputado federal pela Bahia, é membro do Comitê Central e da Comissão Executiva do Partido Comunista do Brasil. É o atual presidente da Agência Nacional de Petróleo (ANP). 

Notas

(1) LIMA, Solange. “Herói negro do Araguaia, Zumbo redivivo”, lido da tribuna da Câmara dos Deputados em 13-04-1988.
(2) ZAMA, Cezar. Libelo Republicano acompanhado de Comentários Sobre a Guerra de Canudos, publicação da UFBA, n. 139, p. 38.
(3) Revista Guerrilha do Araguaia, 2ª ed., p. 25, Anita Garibaldi.
(4) PORTELA, Fernando. Guerra de guerrilhas no Brasil, Global, p. 48.
(5) Idem, p. 55.
(6) Idem, p. 62.

Fonte: revista Princípios, Edição 39, 1º de novembro de 1995.