Chegada à Região há sete anos, em operação ‘extra-territorial’ da ONU de caçada à al-Qaeda, a Aliança do Leste está agora ampliando e aprofundando suo moto o próprio “envolvimento”, na esperança de fincar pé como residente permanente no Hindu Kush. Mas o museu de Cabul é cheio de relíquias.

Um sitiado e politicamente combalido Hamid Karzai, presidente afegão, lá apôs humildemente sua assinatura, como parceiro menor, com Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral da OTAN. Capitais regionais tão distantes umas das outras quanto Teerã, Moscou e Islamabad certamente anotaram o gesto.

É absolutamente evidente, apesar do cronograma em fases para que a responsabilidade pela segurança seja entregue ao governo afegão no final de 2014, que as forças da OTAN esperam permanecer no Afeganistão.

O presidente Barack Obama dos EUA disse:

“Estou confiante de que depois de 2014 só teremos de manter uma capacidade [de ação] antiterrorismo [no Afeganistão], até obtermos total certeza de que a al-Qaeda já não seja operativa e não represente qualquer ameaça (…). E será importante para nós continuar a contar com plataformas que nos permitam executar essas operações de contraterrorismo.

Minha meta é assegurar que até 2014 a transição esteja completada, sob liderança dos afegãos, e é também meu objetivo garantir que já não estejamos envolvidos em operações de combate como essas em que estamos hoje envolvidos. Com certeza, nossas pegadas no local [orig. our footprint] terão sido significativamente reduzidas. Mas é difícil antecipar exatamente o que será preciso fazer além disso, para manter seguros os EUA, em 2014. Decidirei sobre isso, quando chegar lá.”

Obama aumentou ainda mais a ambiguidade estratégica, ao confirmar que será assinado um acordo de longo prazo entre EUA e o governo de Karzai. Os EUA encarregaram Ashraf Ghani (ex-funcionário do Banco Mundial que os EUA apoiaram fortemente como possível candidato à presidência nas eleições afegãs de outubro passado) de conduzir a “transição”. Na prática, descartaram Karzai e não fizeram qualquer esforço para disfarçar o gesto.

Obama desconsiderou Karzai publicamente; disse que ele terá de aprender a conviver com as estratégias militares dos EUA, inclusive com os controversos ataques aéreos noturnos, contra os quais Cabul tem protestado com frequência. Deixando de lado seus notórios talentos persuasivos e charme, e ignorando até a cortesia mínima que se espera nos contatos entre Estados, Obama arrasou Karzai:

“Se nós [EUA] pusemos aqui bilhões de dólares, se querem que nossos soldados fiquem aqui para dar segurança aos afegãos e permitir que o presidente Karzai continue a construir e desenvolver seu país (…), ele terá de considerar também os nossos interesses (…) terá de entender que há legiões de jovens americanos e americanas, das menores às maiores cidades dos EUA, todos correndo o risco de morrer em terra estrangeira, obrigados a atravessar terrenos minados, à mercê de incontáveis IEDs [ing. improvized explosive devices, “explosivos de fabricação caseira”], e que todos eles têm de se autoproteger. Se estamos consertando tudo, onde nada conseguiram dos Talibã, além de se porem como alvos fáceis ou interlocutores acessíveis, a resposta [de Karzai] não é aceitável.”

A melhor ‘explicação’ que se pode tentar para o que disse Obama, e para como o disse, é que é possível que estivesse acuado, sob forte pressão e precisando mostrar ‘firmeza’. (Há boatos de que o general David Petraeus, o mais alto comandante dos EUA no Afeganistão, estaria prestes a jogar a toalha.) Seja como for, Obama subestimou a orgulhosa cultura do Hindu Kush e feriu Karzai muito gravemente.

À medida em que as palavras de Obama se difundirem pelo Afeganistão, nos próximos dias e semanas, o prestígio de Karzai despencará; dificilmente se recuperará do violentíssimo ataque de Obama – exceto, talvez, se conseguir produzir manifestações ainda mais audaciosas de sua “afganidade”.

Uma crença dura de crer…

A Declaração de Parceria Duradoura [ing. Declaration on an Enduring Partnership] assinada em Lisboa não permite apenas que a OTAN cumpra um “compromisso de longo prazo” com a segurança, estabilidade e integridade do Afeganistão; também reconhece o Afeganistão como “importante parceiro da OTAN”, por sua contribuição “para a segurança regional”.

Em troca, a “promessa” assinada pelo governo afegão, de que Cabul atuará como “parceiro duradouro da OTAN e assegurará à OTAN a assistência necessária para cumprir as atividades da parceria”, também reconhece “a importância e a relevância de mais amplas cooperação, coordenação e confiança, regionalmente construídas entre todos os parceiros regionais.”

Nos termos da Declaração, OTAN e Afeganistão “reforçarão os contatos consultivos em questões estratégicas” e desenvolverão “medidas efetivas de cooperação”. Para isso, criar-se-ão “mecanismos para diálogos políticos e militares” e para “ligação permanente da OTAN no Afeganistão.”

Apesar de ser “mútuo entendimento” entre as partes que a OTAN não buscará estabelecer “presença militar permanente” e que não usará sua presença no Afeganistão contra outras nações, a cooperação futura entre Cabul e a Aliança será “adequadamente delineada, considerado o arsenal de instrumentos de cooperação da OTAN”.

Muito importante: os dois lados comprometem-se a “iniciar um diálogo sobre um “Acordo sobre o Estado das Forças” [ing. Status of Forces Agreement, SOFA] no prazo de três anos. Apesar de a Declaração ser assinada só por OTAN e Afeganistão, ela cria “a oportunidade” e “estimula” outros países que não sejam membros da OTAN e estão hoje envolvidos na guerra do Afeganistão (por exemplo, Austrália, Japão, Coreia do Sul e outros) a “contribuir para atividades que resultem dessa Declaração”.

Há três coisas a observar. Primeira, Rasmussen trabalhou absoluta e completamente como agente de Washington, o que é normal, dado que os EUA pagam 73% do orçamento da aliança de 28 membros; e quem paga manda. Não cabe qualquer dúvida de que a Declaração OTAN-Afeganistão tem o imprimatur dos EUA. Tudo, aí, absolutamente tudo, tem a ver diretamente com a presença estratégica dos EUA na Ásia Central.

Obama destacou espertamente para o público ocidental a data-limite de 2014, o que sugere que a guerra esteja terminando. Aí, responde também à crescente oposição à guerra, dentro dos EUA. E avançou ao mesmo tempo sobre dois trilhos paralelos, ao inventar acordos para a presença militar de longo prazo no Afeganistão, ao mesmo tempo em que ‘alinhou’ os aliados dos EUA na OTAN aos objetivos futuros dos EUA.

O problema está em que tudo isso pressupõe que seja fato indiscutível e comprovado o que Obama assegurou: “Estamos afinal atingindo nosso objetivo de deter o momentum dos Talibã (…) Creio que alcançaremos plenamente nossa meta”. Não se sabe se a autoconfiança de Obama é tal, que o induza a realmente crer nessa crença. Seja como for, aí está crença muito dura de crer…

Peça de museu?

Em segundo lugar, Karzai não empenhou a própria alma nessa empreitada, e sua angústia apareceu sob diferentes formas ao longo da reunião de Lisboa. Há apenas uma semana, Karzai atacou muito duramente a estratégia dos EUA. Evidentemente, recebeu o troco e um tranco. O fato de Ghani ter sido empossado no comando da “transição” e de, em seguida, Obama ter publicamente ‘destituído’ Karzai são sinais claros de que o presidente afegão não está em momento de forçar a própria sorte. Se interpretará o golpe como um revés da fortuna, ou entenderá o recado, eis a questão.

O bazaar afegão estará atentamente vigilante. Um realinhamento de forças políticas no tabuleiro da política nacional tornou-se agora quase inevitável. Significativamente, o ex-presidente e líder tadjique Burhanuddin Rabbani (chefe do Alto Conselho nomeado por Karzai para negociar com os Talibã) chegou no fim-de-semana a Teerã para consultas.

O Ustad[1] só muito raramente viaja ao exterior. Ao receber Rabbani, o poderoso líder do Parlamento iraniano Ali Larijani manifestou o apoio do Irã à política de conciliação nacional atribuída a Karzai, reconciliação que, como disse Larijani, é também o que deseja o povo afegão. Anunciou-se que o comandante tadjique Mohammed Fahim (primeiro-vice-presidente do Afeganistão) também visitará Teerã “em futuro próximo”.

A Declaração OTAN-Afeganistão é grave obstáculo que surge no caminho do plano de conciliação nacional de Karzai. A declaração – e os dois Acordos SOFA [sobre o Estado das Forças] previstos – deveriam ter acontecido no âmbito de um acordo. Claramente, os EUA só negociam se estão em posição de força. A abordagem da OTAN divulgada em Lisboa reforça a decisão dos EUA de enfraquecer militarmente os Talibã, antes de aceitá-los em mesa oficial de negociações.

Por tudo isso, o período que vai de agora até julho de 2011 (quando começa a retirada de soldados dos EUA) será decisivo. Evidentemente, aconteça o que acontecer, Petraeus é o favorito dos Republicanos, e qualquer estratégia associada a ele conquistará apoios nos dois partidos
em Washington.

Mas o trabalho preliminar de Karzai, até o ponto em que conseguiu chegar, de negociações eventuais com os Talibã, está virtualmente paralisado e não será fácil ressuscitá-lo, pelo menos até que se conheçam os resultados do trabalho de Petraeus – o que só acontecerá no início do verão. Enquanto espera o reinício da “estação de combates”, no começo do verão, Petraeus já trouxe os tanques M1 Abrams, apresentados como sua mais moderna aquisição.

Mas os tanques M1 Abrams não sabem distinguir amigos e inimigos, e os “danos colaterais” continuarão, cada vez mais, como ônus político contra Karzai e bônus político a favor dos Talibã. Além do mais… E se Petraeus fracassar e não derrotar militarmente a guerrilha afegã? Nesse caso, Obama terá perdido até sua última esperança de conseguir negociar de uma posição vencedora. Nesse caso, a Declaração OTAN-Afeganistão virará peça de museu.

Como todos sabemos, o Paquistão não acredita absolutamente em datas, prazos, 2014s etc. No exato momento em que Rasmussen e Karzai levavam as canetas ao papel para assinar a Declaração em Lisboa, guerrilheiros confiscavam, na região de Peshawar, mais um comboio que levava suprimentos para os soldados de Petraeus.

[1] Ustad (ár. “mestre”) é título honorífico (quase sempre para professores e artistas, muitas vezes para músicos) usado por muçulmanos no Sul da Ásia.

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Fonte:  Asia Times Online

http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/LK23Df01.html

Tradução: Caia Fittipaldi