A longa marcha dos direitos sociais
Os direitos, na feliz expressão de Norberto Bobbio, não nascem “todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (1). São, em verdade, categorias históricas, o acervo resultante de sucessivos processos de luta pela dignidade humana.
Convém atentarmos, contudo, para o fato de que, ao contrário do que muitos supõem, a consagração de determinado direito nos textos legislativos, mesmo nos textos constitucionais, não representa um ponto de chegada, senão que, frequentemente, apenas um ponto de partida na longa trajetória conducente a sua plena afirmação (2).
Foi o que sucedeu com os direitos sociais. Embora datem, na história do constitucionalismo, de 1917, quando incorporados à Constituição Mexicana como direitos fundamentais, ao lado das liberdades individuais e dos direitos políticos (3), até hoje aguardam suficiente efetivação.
Como explicar este fenômeno? De que modo é possível combatê-lo?
Refletir sobre estas interrogações é a que nos propomos neste breve ensaio.
É certo que os direitos sociais emergiram no seio das profundas contradições sociais decorrentes da aplicação dos valores liberais, cujas formulações abstratas, descontextualizadas, foram logo desmascaradas.
Seria satisfatório declarar que as pessoas nascem livres e iguais em direitos e obrigações? A história provou que não. Os direitos de liberdade só cobram sentido se acompanhados de mínimas condições materiais para o respectivo gozo, ou, em outras palavras, não existe liberdade desatrelada de emancipação econômica. Admiti-lo seria um exercício de puro cinismo.
Foi, portanto, com o propósito de assegurar as condições materiais indispensáveis ao pleno exercício das liberdades que se engendraram os direitos sociais. Assim, por exemplo, como admitir-se a liberdade de expressão sem o oferecimento de uma educação crítica?
Resulta claro que o conteúdo daquela liberdade estaria complemente esvaziado, redundando em mero adorno para regozijo dos povos ditos “civilizados”. Eis porque se chegou à conclusão de que sem o reconhecimento do caráter interdependente e complementário dos direitos fundamentais teríamos apenas um simulacro de proteção da dignidade humana (4).
Na Constituição brasileira, arrolam-se os direitos fundamentais à luz da tradicional classificação que os aparta em direitos individuais, direitos sociais e direitos políticos. No artigo 6º da Constituição Federal declara-se, solenemente, que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistências aos desamparados.
Apesar deste empenho classificatório, basta uma leitura da Constituição de 1988 para concluir-se que não há qualquer diferença de regime jurídico entre as citadas categorias de direitos fundamentais, ou seja, embora o Constituinte tenha classificado os direitos fundamentais, não estabeleceu que certos direitos fundamentais seriam, a priori, menos consistentes ou que teriam menos garantias que outros.
Se assim o é, como explicar então afirmações de que os direitos individuais e políticos seriam plena e imediatamente exigíveis, ao passo que os direitos sociais dependeriam de intervenção do legislador, de que não gerariam por si sós pretensões contra o Estado, de que seriam princípios de justiça, meras normas programáticas? (5)
O Professor Gerardo Pisarello, ao criticar as diversas perspectivas de análise dos direitos sociais, oferece-nos valiosas considerações a este respeito (6). De uma perspectiva histórica, muitos equívocos defluiriam do caráter linear e excludente que subjaz às leituras geracionais dos direitos, nas quais os direitos sociais são considerados como de reconhecimento tardio e sempre posterior aos direitos civis e políticos, em desatenção à´complexidade ínsita aos processos de afirmação dos direitos. Sob um ângulo filosófico, costuma-se hierarquizar, em termos axiológicos, os direitos fundamentais, subalternizando os direitos sociais em relação aos direitos civis e políticos, sob o argumento de que estes estariam mais estreitamente vinculados a bens fundamentais da pessoa.
Geralmente associada a esta visão também estaria a falsa disjunção consistente em que a implementação dos direitos fundamentais pressuporia uma opção: ou se está com direitos individuais, em detrimento dos direitos sociais; ou se está com os direitos sociais, em detrimento dos direitos individuais. Já sob perspectiva teórica, a erronia estaria na convicção de que entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais mediaria uma insuperável diferença estrutural da qual resultaria, naturalmente, a debilidade dos direitos sociais. Os direitos individuais se apresentariam como direitos negativos, não onerosos e de fácil proteção, enquanto que os direitos sociais seriam direitos positivos, custosos e sempre condicionados às reservas orçamentárias.
Finalmente, a partir de uma ótica dogmática, fortemente influenciada pela suposta diferença estrutural entre os direitos fundamentais, os direitos sociais não seriam autênticos direitos fundamentais, pois desprovidos das garantias reservadas aos direitos individuais, o que significaria a livre configuração dos direitos sociais pelo legislador e a sua debilitada justiciabilidade (7).
Ocioso observar que este exemplário de idéias sobre os direitos sociais é forjado e empregado – confessada ou inconfessadamente, consciente ou inconscientemente – segundo uma matriz ideológica. A ninguém se afigura como novidade o fato de que os direitos sociais traduzem a antítese do neoliberalismo. Friedrich Hayek, um dos arautos do movimento neoliberal, averbava sem cerimônias: “A crença reinante na ‘justiça social’ é provavelmente, em nossos dias, a mais grave ameaça à maioria dos valores de uma civilização livre” (8). É, portanto, no contexto da ideologia neoliberal que encontramos uma explicação aceitável para a dura resistência que enfrentam os direitos sociais.
Mas se no neoliberalismo encontramos a explicação para o fenômeno de que nos ocupamos, as armas para combatê-lo, diferentemente, devem ser buscadas no próprio Direito. Parece-nos que uma rigorosa e conseqüente dogmática (9) dos direitos fundamentais, fundada na ordem constitucional vigente, ostenta uma virtuosa potencialidade, ainda subestimada, de afugentar os aludidos preconceitos que impedem a plena realização dos direitos sociais.
Tendo em vista que nos estreitos limites desta investigação não nos é dado desenvolver com a desejada profundidade esta proposta, limitar- os-emos a apontar algumas conseqüências dela advindas.
Com efeito, de plano estaria afastada a discussão política sobre a conveniência dos direitos sociais ou sobre os deveres do Estado brasileiro para com a justiça social. Nos quadrantes da Constituição de 1988, é dizer, em termos dogmático-jurídicos, seriam discussões cerebrinas e de todo inúteis (10). Isto porque os direitos sociais estão previstos como direitos fundamentais – vinculantes, portanto, e inseridos no núcleo imodificável da Constituição – e ao Estado brasileiro foi assinado como um de seus objetivos fundamentais a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, da Constituição), na qual a ordem econômica “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”.
Repugnaria, de igual modo, a importação irrefletida de modelos jurídicos incompatíveis com a ordem constitucional brasileira, especialmente dos sistemas alemão e estadunidense. Basta mencionar o fato de que nestes dois países as Constituições não apresentam um elenco de direitos sociais, o que, naturalmente, não deixa de ter conseqüências jurídicas (11).
Também ruiria com facilidade a tão proclamada distinção segundo a qual os direitos individuais seriam direitos “negativos”, de defesa, ao passo que os direitos sociais seriam direitos “positivos”, de natureza prestacional. Não demanda grande esforço constatar que assim como se apresentam direitos classificados como individuais de dimensão nitidamente prestacional – exemplo do direito à assistência jurídica integral e gratuita previsto no art. 5º, LXXIV, da Constituição –, há direitos qualificados como sociais de feição estritamente “negativa” – exemplo do direito de greve previsto no art. 9º da Constituição. Acresça-se ainda a natureza “dúplice” de muitos direitos fundamentais, os quais revelam, ao mesmo tempo, direitos de prestação e direitos de abstenção.
Assim, o direito à moradia não se esgota no direito a aceder a uma moradia digna, senão que implica também no direito a não ser desalojado de maneira arbitrária; o direito à saúde, igualmente, não se reduz à prestação estatal de tratamento médico, já que inclui o direito à integridade física.
Por fim, o reconhecimento de que, à luz da Constituição brasileira, todos os direitos fundamentais têm igual dignidade – sendo imprestável em termos jurídicos a classificação constitucional dos direitos fundamentais, reflexo da tradição e não da ciência –, conduziria à seminal discussão sobre a estratégia de positivação de cada um deles, ou seja, o específico modo pelo qual a Constituição outorgou o direito fundamental, evitando os apriorismos que, conforme vimos, sempre militam em desfavor dos direitos sociais. Esta idéia, aliás, não se reveste de qualquer novidade. Já no ano de 1982 o eminente Professor Celso Antônio Bandeira de Mello cuidava de todos os direitos fundamentais sob perspectiva unitária, propondo uma classificação das normas constitucionais quanto à imediata geração
de direitos para os administrados (12).
Iniciamos com Bobbio e com ele encerramos nosso ensaio: “Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações. Já que interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos do homem como um sinal de progresso da humanidade, não será inoportuno repetir que esse crescimento moral não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenções, o inferno está cheio”. (13)
NOTAS
1. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 5.
2. Sem desconhecer situações em que os textos legislativos são manejados, de modo sub-reptício, para adiar, em vez de reforçar, a efetivação de um direito (NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007).
3. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 178.
4. Como adverte judiciosamente Carlos Roberto Siqueira Castro, sem o mínimo assegurado pelos direitos sociais, esvazia-se a maioria das normas constitucionais, ou melhor, cinde-se a eficácia social da Constituição, que passa a operar seletivamente, efetivando-se para uma minoria (A Constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 281).
5. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, vol. V, 3ª ed., p. 411.
6. Los derechos sociales y sus garantias: elementos para uma reconstrucción. Madri: Trotta, 2007.
7. Queremos dizer com “justiciabilidade”, em termos singelos, a possibilidade de um direito receber proteção do Poder Judiciário.
8. HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e economia política, vol. II. São Paulo: Visão, 1985, p. 85.
9. O pensamento dogmático, nos confins do Direito, traduz-se naquele pensamento fechado à problematização dos seus pressupostos, a fim de cumprir sua função de criar condições para a decidibilidade de conflitos
(FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 85).
10. Nunca é demais salientar que a Constituição não é um breviário de boas intenções. Tudo que nela se inscreve obriga a todos, Estado e particulares, não cabendo ao intérprete “selecionar”, segundo suas
convicções políticas, quais normas constitucionais merecem aplicação.
11. NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora: 2010, pp. 71-75.
12. Trata-se do célebre texto da palestra sobre “Aplicabilidade das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”, recentemente convertido, com ligeiros acréscimos e atualizações, no livro denominado “Eficácia das normas constitucionais e direitos sociais” (São Paulo: Malheiros, 2009).
13. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp. 63 e 64.
Rafael Valim é mestre e Doutorando em Direito Administrativo pela PUC-SP, Professor do Curso de Especialização em Direito Administrativo da PUC-SP, Membro do Instituto de Direito Administrativo Paulista – IDAP, da Associação Argentina de Direito Administrativo – AADA e Conselheiro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo.
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Fonte: Carta Maior