A vingança da sombra
“Não me toques nessa dor;ela é tudo o que me sobra/sofrer/vai ser minha última obra”. Estes são versos de um poema de Paulo Leminsky, que Zélia Duncan transformou em canção. E talvez tenha sido a profética e terrível escolha da dor, feita pelo poeta, que preferiu morrer de vodka, a morrer de tédio. E quem sou eu, para julgar a des-qualidade do amor por si mesmo, ou da escolha da morte, por parte do poeta curitibano, perdido na selva selvagem da paulicéia?
Quando somos crianças, acreditamos que ser valente é agir… de preferência, com brutalidade e violência. Quando nos tornamos adultos, descobrimos: a verdadeira coragem se dá quando não resistimos ao momento… e vivemos com deslumbramento o mistério de cada coisa, presente em tudo o que nos acontece. “Deus começa onde cessa o movimento” (Yogananda).
Sim, é vero: há desqualidades do amor, que afrontam toda lógica e toda razão: certas pessoas nos amam enquanto lhes damos coisas, e satisfazemos seus desejos. Tão logo os bens que lhes damos sejam negados, o amor será trocado pelo ódio. Isto quando um tal amor, tão desqualificado de verdade, é só interesse, des-afeto afetado de apego.
Por outro lado, certas pessoas são capazes de cometer crueldades tão piedosas, que fazem espinhos parecerem rosas. Viver onde só há opositores implica em viver em constante tensão: então somos como cordeiros a céu aberto, havendo alcatéias de lobos por perto. Vampiros da alma não descansam, enquanto não vêem suas vítimas exangues, sugadas de seu espírito, entregues à ruína e à degradação.
Há um corpo de memórias, e a trama das circunstâncias. Os dois são camadas da consciência. A trama do que acontece é mero acontecimento, fruto do encadeamento de causalidades mecânicas, colocadas em ação por vício, hábito, ou simples repetição mecânica. São meros efeitos de ações vindas de personas, que não se sabem por quem são, uma vez que acreditam ser as máscaras que usam. Se buscássemos nos guiar pelo Eu Sou (a consciência primordial, que tudo sabe e vê) nada poderia nos tirar a segurança, a serenidade e a paz.
Joseph Murphy assinala, em O poder do subconsciente: “A maioria das pessoas não sabe que a causa de tudo o que lhes acontece é o seu próprio estado de consciência. Um estado de consciência significa o que você pensa, acredita e consente mentalmente”. Assim, pode-se dizer que vive em miséria permanente quem mantém sua consciência em estado de miserabilidade.
No distrair-se dos barulhos do mundo, reside o silêncio essencial, pelo qual se pode enxergar, com olhar límpido, as cristalinas verdades da Vida. Que o olhar do vulgar não pode nem quer perceber, tal é sua ânsia em se perder, nas pobres tramas do Ter. Vemos, assim, que o consciente reprime o inconsciente, e o expulsa do cenário visível da existência. Como se fosse o único morador, ou o mordomo da casa do Ser. Mas aquele que se vê expulso da morada que lhe cabe habitar, por direito inalienável, vinga-se terrivelmente. E nada poderá detê-lo, em sua ira destrutiva.
Pois que o esquizofrênico e alienado olhar do “animau” humano não sabe: a parte de si mesmo que rejeita, sempre dá um jeito de se impor, e de exercer seus direitos, como personagem sombrio e poderoso, do teatro da vida. Não entender, ou rejeitar tal realidade, implica em abrir as portas da existência para terríveis desastres. Isto C.G. Jung já sabia: “A alma primitiva do Homem confina com a vida animal, da mesma forma que as grutas dos tempos primitivos foram habitadas por animais, antes mesmo que os humanos se apoderassem delas”.
Brasigóis Felício, é goiano, nasceu em 1950. Poeta, contista, romancista, crítico literário e crítico de arte. Tem 36 livros publicados entre obras de poesia, contos, romances, crônicas e críticas literárias.