A radicalização entre dois partidos, que naturalmente ocorre num sistema de escolha presidencial em dois turnos, foi muito intensa nas últimas eleições. Uma reforma política comporta todo tipo de discussão, menos a que tem marcado os últimos anos, que simplesmente separa quem é governo de quem é oposição. Até por solidariedade corporativa, é bom que os políticos abram esse debate de uma forma racional, sob pena de prejudicar, em muito, a situação dos gregos e troianos eleitos pelo voto direto e secreto.

Um dos elementos que devem ser colocados na mesa, no debate sobre "refundação" de partidos e sobre reforma política, é o pré-conceito. Desde 1964, e devido à campanha ideológica que desaguou num golpe militar contra um regime democrático, forjou-se a convicção de que política e ética são incompatíveis; os políticos, em regra, são venais; e a política democrática favorece sempre poucos e os mesmos. É uma herança da velha UDN – que, ao mesmo tempo em que consolidava esse entendimento na sociedade, participava ativamente da vida eleitoral do país.

Para a ditadura militar, manter os políticos civis sob o senso comum da venalidade foi um grande negócio. Os eleitos nas urnas eram corruptos e não tinham compromisso com a sociedade brasileira; os militares que suprimiram o poder civil instituído pelo voto democrático eram os salvadores e saneadores da pátria – era esse o discurso do poder autoritário. Para manter apoio das classes médias e das elites brasileiras, todavia, o poder militar usou e abusou de uma estrutura partidária trazida dos partidos tradicionais sepultados pelo AI-2, que instituiu o bipartidarismo, em 1966. As forças políticas que se modernizavam devido à urbanização do país e à expansão de consciência de cidadania e direitos foram retiradas do mapa. Os políticos que viviam do cabresto, do dono de voto e da política tradicional sobreviveram. E o Executivo manteve o poder de coação sobre uns, e de manipulação dos outros.

Na Constituinte de 1988, a questão era garantir a ampla autonomia do Legislativo, um natural resgate das prerrogativas parlamentares usurpadas no período ditatorial. Disso resultaram duas medidas de proteção ao Congresso que, desacompanhadas de equivalente modernização das estruturas partidárias, tiveram um prazo de validade curto em termos de efetividade. Um dos símbolos do restabelecimento das prerrogativas do Poder Legislativo foi a reinstituição de seu poder de decisão sobre o Orçamento Geral da União, que durante toda a ditadura foi uma prerrogativa exclusiva do presidente-general de plantão. Não podia ser emendado no Congresso. O outro foi a instituição do foro privilegiado por prerrogativa de função, que garantiria ao parlamentar, no exercício de seu mandato, proteção contra os poderosos do momento.

As duas medidas, sem a modernização política correspondente, acabaram servindo a uma minoria que usa o mandato como um salvo conduto para proteção contra crimes pregressos ou para seu próprio benefício. O Escândalo dos Anões do Orçamento, em 1992, revelou uma quadrilha de parlamentares montada para usurpar dinheiro público via emendas parlamentares. O escândalo da semana, de Gim Argelo (PTB-DF), mostra que esse quadro, muitos escândalos depois, pouco foi alterado. O foro privilegiado apenas beneficia os culpados. No mínimo, o parlamentar com culpa jamais será julgado por um Supremo Tribunal Federal que não tem vocação para julgamentos criminais. No máximo, poderá servir a manobras protelatórias incontáveis, como a agora feita pelo ex-deputado Jader Barbalho, que renunciou ao mandato para que o processo a que responde, e que entrou na ordem do dia do STF, volte à Justiça comum e recomece do nada, até que um novo mandato parlamentar reenvie o processo de volta ao STF, que começará tudo novamente. Certamente, os que nada devem gostariam de ser julgados e inocentados pela Justiça.

Essa situação tem vários inconvenientes. Em primeiro lugar, mantém o senso comum de que o Congresso é, antes de tudo, venal, que não poupa o mais honesto deputado que sempre cumpriu suas funções. Isso é ruim indistintamente para todos os partidos, e péssimo para a democracia. O Congresso é a instituição por excelência da democracia, onde teoricamente todas as forças políticas estão representadas e têm voz. Na esteira do descrédito do Congresso, outras instituições têm se autodelegado poderes legislativos sem pedir licença – é o caso do STF e do Tribunal Superior Eleitoral – e instituições têm decidido o voto, em última instância – é o caso da confusão jurídica criada em torno dos Fichas-Sujas, cuja validade dos votos será decidida pela Justiça.

O Legislativo tem que deixar de ser chamariz para pessoas encrencadas pela Justiça e a atividade parlamentar deve ter total transparência, em especial quando o assunto é Orçamento. Isso diz respeito a todos os partidos, sob pena de se eternizar o senso comum de que os parlamentares são os demônios da democracia. E essa é uma ideia tão arraigada na política brasileira que é usada pelos próprios políticos em campanha – vide Fernando Collor, que ganhou uma eleição presidencial falando mal dos políticos; e Luiz Inácio Lula da Silva, que tratava todos os congressistas como "picaretas".

Os partidos têm que ter equilíbrio, nesse pós-eleição, para debater profundamente as razões da deterioração da credibilidade do Congresso e convergirem para uma solução que preserve o Legislativo. Este é um assunto que interessa a todo mundo.

Fonte: Valor Econômico