Na falta de um Bin Laden de verdade
Mas, como decidiu manter Nelson Jobim no Ministério da Defesa, vai continuar a conviver com o intenso lobby dos militares, apoiados pela turma conservadora da agricultura, a favor de uma lei que defina como terroristas os líderes de movimentos sociais, inclusive estudantes e atingidos por barragens. E, sobretudo, os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o MST. No governo Lula, a ideia nunca prosperou, o que não desanimou os defensores do projeto.
Um grupo de trabalho montado no governo passou os últimos dois anos debruçado sobre um tema geral – a elaboração de uma nova Lei de Segurança Nacional – para cuidar de outro, específico e mais urgente, a tipificação do crime de terrorismo no Brasil. Entre os integrantes do grupo, criado em 14 de julho de 2008, estavam representantes do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), Casa Civil, Advocacia-Geral da União (AGU), dos ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Planejamento, Ciência e Tecnologia, além dos comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Há cinco meses, e após dez reuniões de trabalho, foi produzido um relatório ambíguo e conflituoso. As discussões, conduzidas pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, desembocaram num texto dividido em quatro eixos: a defesa das instituições democráticas; as ameaças externas; as ameaças às áreas estratégicas econômicas e de infraestrutura; e o combate ao terrorismo.
Nos três primeiros tópicos, salvo poucas questões conceituais, não houve divergências relevantes. No quesito terrorismo, contudo, o coordenador do grupo de trabalho, Felipe de Paula, titular da secretaria, foi obrigado a capitular diante do lobby fardado: cravou, no texto final, a opção preferencial pelo combate ao financiamento ao terrorismo, tese defendida pelo setor civil do grupo, mas viu-se obrigado a relatar a divergência a respeito da necessidade de se tipificar o crime de terrorismo, como queriam os militares comandados por Jobim.
As contradições estabelecidas em torno do tema têm um vício de origem. O grupo de trabalho foi criado no ambiente da chamada Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden) do Conselho de Governo, órgão de assessoramento do presidente da República. O presidente do Creden é o general Jorge Armando Félix, ministro-chefe do GSI e personagem central desse cabo de guerra travado, desde o início do governo Lula, entre os aliados aos movimentos sociais e os setores afinados aos comandantes militares. De 2006 para cá, Félix e sua tropa investiram duas vezes na tentativa de tipificar o terrorismo. Perderam a primeira batalha em 2007, mas conseguiram abrir uma brecha na segunda, em 2010 – e é aí que a posição de Dilma Rousseff será decisiva.
A presidente está na origem do movimento interno, levada a cabo no Palácio do Planalto, que frustrou a primeira tentativa de enquadrar os movimentos sociais como agentes do terrorismo. Em novembro de 2007, após dez meses de estudo, o então ministro Tarso Genro conseguiu matar um anteprojeto que pretendia igualar, em status e infâmia, o líder do MST João Pedro Stedile a Osama bin Laden.
Um ano antes, a ideia de se tipificar o terrorismo havia ganhado corpo no âmbito da chamada Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro (Encla), elaborada em reuniões realizadas, todos os anos, para definir a política brasileira de enfrentamento a esse tipo de crime. Embora o objetivo da Encla nada tenha a ver com terrorismo, o assunto foi colocado na agenda por pressão do GSI. Para tal, formou-se um primeiro grupo de trabalho do qual faziam parte a AGU, a Casa Civil, o Ministério da Defesa, a Polícia Federal, o Ministério Público Federal e a Associação Nacional de Juízes Federais.
À frente das discussões, e à revelia do Ministério da Justiça, o general Félix apressou-se em produzir uma pérola normativa de tal forma genérica que, no fim das contas, poderia transformar em terrorista tanto um genocida como estudantes que invadam reitorias para reivindicar melhora na comida do refeitório da universidade. Era assim o artigo 1º do texto bolado pelo GSI: “Os crimes previstos neste título serão punidos quando cometidos com a finalidade de infundir estado de pânico ou insegurança na sociedade, para intimidar o Estado, organização internacional ou pessoa jurídica, nacional ou estrangeira, ou coagi-los à ação ou omissão”. Nesses termos, até os humoristas do CQC ou do Pânicopoderiam ser presos e autuados como terroristas.
Antes de Genro, Márcio Thomaz Bastos teve o cuidado de engavetar o delírio antiterrorista do GSI sob o argumento de que o texto tinha apenas um objetivo: incriminar os movimentos sociais. Para recolocar o assunto nos trilhos da legalidade, Bastos tirou a discussão da esfera do general Félix e nomeou o então secretário de assuntos legislativos da pasta, Pedro Abramovay, atual secretário nacional de Justiça, para conduzir os trabalhos. Em seguida, decidiu encaminhar ao Congresso uma proposta de emenda ao projeto de lei sobre lavagem de dinheiro com a intenção de somente enquadrar o financiamento a atos de terror no País. O projeto foi aprovado no Senado e espera para ser votado na Câmara.
Descobriu-se, agora, que o governo desagradou não apenas aos militares e os ruralistas, mas os Estados Unidos. De acordo com documentos revelados pelo site WikiLeaks, relatos enviados a Washington pelo então embaixador americano em Brasília, Clifford Sobel, em 2008, demonstram a frustração em relação ao rumo do projeto. Desde os atentados de 11 de Setembro de 2001, os EUA tentam impor ao mundo legislações duras de combate ao terrorismo. Em um dos telegramas, Sobel insinua ter sido Dilma Rousseff, na Casa Civil, a responsável pela articulação que resultou na derrota das teses de Jobim e Félix.
Perdida a primeira batalha, o GSI e o Ministério da Defesa organizaram-se rapidamente para colocar o tema do terrorismo, outra vez, na agenda do governo, mas com o cuidado de não deixar o Ministério da Justiça assumir novamente o protagonismo da discussão. Daí a ideia de, sete meses depois de o anteprojeto elaborado ter sido enviado ao Congresso, em julho de 2008, o general Félix acionar o Creden para elaborar uma nova Lei de Segurança Nacional. Com boa desculpa. A LSN atual, de 1937, turbinada pela ditadura em 1967 e revisada em 1983, é um entulho autoritário em desuso há ao menos duas décadas.
Em outubro de 2008, Félix montou o grupo de trabalho para estudar a nova legislação, agora chamada de Lei para a Defesa da Soberania e do Estado Democrático de Direito. Certo de que teria nas mãos a condução do processo, formou um time no qual, além do GSI e da Defesa, entraram os comandos militares, cada qual com seis representantes – quatro deles oficiais-generais: dois brigadeiros, um almirante e um general. Montar um texto para tipificar o crime de terrorismo seria, portanto, barbada. Não foi. Em outubro de 2009, por pressão de Tarso Genro, a discussão foi enviada novamente pelo presidente Lula ao Ministério da Justiça.
“Nossa preocupação, antes de tudo, é com a questão dos direitos individuais e dos princípios do Estado Democrático”, resume Felipe de Paula, atual secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. À frente da coordenação dos trabalhos, ele conseguiu conter a sanha contra os movimentos sociais. Mas o GSI impôs no texto a existência da divergência sobre a tipificação do terrorismo.
Dilma Rousseff não pretende mexer nesse vespeiro até assumir a Presidência. Até lá, Felipe de Paula estará à frente de um subgrupo de trabalho, montado em agosto deste ano, com o objetivo de redigir o anteprojeto da nova LSN, com base no relatório produzido pelo Creden. Como dificilmente o general Félix permanecerá no GSI – que, inclusive, poderá voltar a ser apenas um Gabinete Militar –, é pouco provável que Jobim, sozinho, consiga transformar os sem-terra em terroristas com o aval da presidente. Isso não significa que ele não tentará.
Fonte: Blog Brasília eu vi