Dona Adalgisa lê o Boletim da Fundação Maurício Grabois

Dona Adalgisa recebeu os representantes da Fundação Maurício Grabóis, Leocir Costa Rosa, diretor administrativo e financeiro; Vandré Fernandes, diretor do vídeo “Camponeses do Araguaia — a Guerrilha vista por dentro”; e Osvaldo Bertolino, editor do Grabois.org e integrante da equipe do documentário, com emoção na manhã de 11 de dezembro, um sábado de sol e forte calor na cidade de São Domingos do Araguaia, no Pará. Relatou as agruras da família, que luta para sobreviver com escassos recursos que precisam dar conta das necessidades da casa e dos remédios para seu Frederico, inválido pelas torturas cruéis sofridas quando convivia com os guerrilheiros.


Leocir Costa Rosa, dona Adalgisa e Vandré Fernandes

Enquanto dona Adalgisa falava, revelando a característica simpatia contagiante, outros camponeses se aproximavam para relatar dramas semelhantes. O auditório do Clube das Acácias, aberto para suportar o calor e organizado com cadeiras de plástico dispostas em fileiras caprichosamente simétricas, começou a ser ocupado por pessoas vindas de diferentes regiões, todas com seus semblantes de trabalhadores que dão duro no campo para tirar o sustento. A maioria de chapéu e boné, outro detalhe que revela o hábito local de uma população acostumada ao trabalho de sol a sol. Os relatos eram invariáveis — perderam terras, plantações, criações, saúde, familiares nas ações criminosas da repressão à Guerrilha.


Camponeses do Araguaia no auditório do Clube das Acácias

Estavam ali para participar do “4º Encontro dos Torturados na Guerrilha do Araguaia”, realizado por quatro anos seguidos (2007, 2008, 2009 e 2010) pela Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia (ATGA). Vieram dos municípios de São João do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Palestina do Pará, Marabá e outros da região. Quando os dirigentes da ATGA José Moraes da Silva, conhecido como Zé da Onça (presidente), e Sezostrys Alves da Costa (vice-presidente) abriram os trabalhos, aproximadamente 150 pessoas estavam presentes. Ouviram o representante da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça explicar detalhes do processo e o advogado que os representa pela ATGA, Ronaldo Fonteles, expor os passos que estão sendo dados na luta contra a liminar.


Leocir, Sezostrys Alves da Costa, Osvaldo Bertolino e José Moraes da Silva (Zé da Onça)

Ouviram também Leocir Costa Rosa saudar a iniciativa da AGTA e reafirmar o compromisso da entidade que leva o nome do comandante da Guerrilha de total apoio às ações que visam a reparação dos prejuízos causados pelos crimes cometidos contra os camponeses pela ditadura. Falaram ainda Micheas Gomes de Almeida, o Zezinho do Araguaia, ex-guerrilheiro e presidente do Instituto de Apoio aos Povos do Araguaia (IAPA); e o deputado estadual pelo PSOL, Edmilson Rodrigues — ex-prefeito de Belém pelo PT. Zezinho expôs as diferentes ações desenvolvidas na região para preservar a memória da luta heróica da Guerrilha com apoio dos camponeses e para reparar as injustiças cometidas pela repressão.

Discurso vibrante

Edmilson Rodrigues fez um discurso vibrante, destacando que aqueles camponeses representavam o símbolo do futuro. Ao lado dos guerrilheiros, eles combateram o que de pior havia naquele tempo histórico, ressaltou. Para o deputado, a negação de uma indenização “mixuruca” é uma afronta, uma atitude que corrobora os crimes ali cometidos. Não há justificativa, disse, para a alegação da liminar de que está defendendo o erário. Edmilson Rodrigues registrou, em entrevista ao Grabois.org, que a decisão de suspender as indenizações tem caráter ideológico e até respalda a apologia à violência cometida contra a população local. Manter essa liminar, enfatizou, é atentar contra a democracia, contra os mais elementares direitos humanos. O deputado recebeu das mãos dos representantes da ATGA minuta do projeto de anistia estadual para os torturados e violados.


Edimilson Rodrigues

Após o evento, os representantes da Fundação Maurício Grabóis entregaram em mãos cópias do documentário “Camponeses do Araguaia — a Guerrilha vista por dentro” aos presentes que concederam depoimentos para o vídeo. À noite, o mesmo auditório abrigou cerca de 50 pessoas para assistir ao documentário. Antes da exibição, o diretor Vandré Fernandes falou à platéia. Disse que a concepção do filme surgiu quando a Comissão de Anistia decidiu promover uma caravana em São Domingos do Araguaia para anistiar os camponeses. A partir dali, informou, tomou-se a decisão de colher depoimentos para o documentário. O resultado, disse, é uma obra de valor reconhecido pela boa classificação nos festivais internacionais de cinema do Rio de Janeiro e de São Paulo.
 
Medidas jurídicas e políticas

No domingo (12) aconteceu a segunda parte do evento em São Geraldo do Araguaia (PA), cidade locazidada aproximadamente 160 quilômetros de distância de São Domingos do Araguaia, às margens do Rio Araguaia, que tem no outro lado a cidade de Xambioá (TO). A mesma programação foi cumprida. Uma comissão foi indicada para acompanhar o desenrolar das medidas jurídicas e políticas a fim de reverter a suspensão das indenizações. No final da tarde, o documentário foi exibido para os camponeses locais. Mais uma vez foi possível observar a expressão de indignação nos rostos marcados pelo trabalho duro e pela revolta com a decisão contra o pagamento das indenizações determinadas pela Comissão de Anistia.


Zezinho do Araguaia fala aos camponeses em São João do Araguaia

A frustração e a indignação atingiram tanto os contemplados em junho de 2009 quanto os que ainda teriam seus processos julgados. No mês de setembro do mesmo ano, a liminar que suspendeu as indenizações foi expedida pelo juiz José Carlos Zebulum, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro. A decisão é resultado de uma ação popular provocada por um assessor do então deputado estadual pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PP-RJ), filho do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) — conhecido apologista dos crimes da ditadura. Este mesmo cidadão ingressou com outra ação popular que suspendeu a anistia de Carlos Lamarca, concedida em 2007.

Perdas irreparáveis

A ação contra as vítimas da repressão à Guerrilha do Araguaia já causou perdas irreparáveis, como o não recebimento das indenizações por cinco camponeses que perderam suas vidas nesse período. Possivelmente, com os recursos que lhes pertenciam teriam condições de um melhor tratamento. A esperança também era de que a concessão do benefício abrisse caminho para outras reparações. Tanto mais que na ocasião estiveram presentes em São Domingos do Araguaia, onde os resultados da anistia foram anunciados, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, e a governadora do Estado do Pará, Ana Júlia Carepa. Foi anunciada a anistia para 44 camponeses araguaianos.


Vandré Fernandes entrega documentário a Eduardo Santos, vítima da ditadura

Tarso Genro fez um pedido oficial de desculpas a todos os camponeses vítimas dos crimes cometidos pelo Estado a mando da ditadura. A governadora Ana Júlia Carepa disse que aquela era uma data histórica, que resgatava o ideal democrático que moveu bravos patriotas que ali caíram. Para Paulo Abrão, a anistia era o reconhecimento pelo Estado de que ele errou contra cidadãos brasileiros. "Estamos falando de um episódio que envolveu a maior operação militar do Brasil desde a Segunda Guerra Mundial", lembrou. "E foi uma operação do Brasil contra brasileiros", afirmou. No total, o Ministério da Justiça recebeu 304 pedidos de anistia, sendo 26 de militantes e 278 de camponeses. Depois da caravana, restaram ainda 191 processos a serem analisados.

Esperança e sofrimento

As indenizações variam de R$ 83 mil a R$ 142 mil. São valores irrisórios, que certamente não oneram o erário. “O juiz concedeu a liminar sem sequer ouvir previamente a Comissão. Estamos recorrendo da decisão”, diz Paulo Abrão. Segundo ele, a Comissão de Anistia continuará a apreciar os demais requerimentos. “Temos ainda pedidos para estudar e apreciar e não suspenderemos nossas atividades regulares em matéria da Guerrilha do Araguaia. Nosso árduo trabalho resultou na colheita de mais de 300 depoimentos in loco, filmados e gravados, na região do Araguaia em 3 incursões que lá fizemos em 2008 e 2009, acompanhados de convidados da sociedade civil, de outras áreas do governo e do movimento dos perseguidos políticos”, destacou.


Camponeses assistem documentário em São João do Araguaia

Andar pela região onde a Guerrilha atuou é como dar passos em direção ao passado de esperança e sofrimento daqueles camponeses. Como disse Zezinho do Araguaia no documentário “Camponeses do Araguaia — a Guerrilha vista por dentro”, ali foi semeado “amor libertário”. Os primeiros anos de convivência com os guerrilheiros despertaram na população local a esperança de um mundo melhor, baseado na democracia e na justiça. Eles manifestam essa visão que tinham do futuro em cada palavra do documentário. A chegada da repressão soterrou essa esperança e pôs no lugar brutalidades inaceitáveis contra guerrilheiros e camponeses. Esses dois sentimentos estão estampados em cada rosto das vítimas da ditadura. As lágrimas e os abraços apertados de dona Adalgisa ao receber os representantes da Fundação Maurício Grabóis são o retrato mais fiel dessa constatação.