A política externa na era Lula
As condições iniciais
O governo Lula começou sob pressão de grandes acontecimentos mundiais, que exigiram, desde logo, atenção, e ação, do Itamaraty e diretamente do próprio Lula. O primeiro deles foi imediato, inusitado e ameaçador: tratava-se do golpe de Estado organizado pela direita venezuelana em 11 de abril de 2002 – incluindo aí altos oficiais das FFAA, o empresariado organizado na Fedecámaras, parte do clero, ligado a organização fundamentalista Opus Dei, e da burocracia da PDVSA (a estatal petroleira do país). Em plena campanha eleitoral no Brasil, com a indústria de boatos e do medo fabricado funcionando a todo vapor, o golpe na Venezuela era uma ameaça e um balão de ensaio assustador.
A ideia de que governos de eleitos de caráter reformista, de esquerda e/ou populares poderiam, mais uma vez, serem derrubados por “pronunciamientos” dos quartéis constituía-se numa nuvem negra sobre os resultados das eleições brasileiras. A forte resposta do PT e seu candidato, e diga-se claramente, do governo FHC, recusando-se a reconhecer o regime “de fato” de Pedro Carmona – presidente da associação de empresários venezuelana denominada Fedecámaras – foi fundamental para isolar o regime golpista. Ao contrário dos Estados Unidos, da Espanha (sob o governo de Aznar, do direitista Partido Popular) e do Vaticano, a maioria dos países americanos recusou-se a reconhecer o golpe. Este acontecimento irá marcar fortemente o governo Lula. Em plena campanha, ficava patente que a direita quando derrotada democraticamente não teria pudores em apelar (como sempre fizera naAmérica Latina) para o golpe.
Lula defensor da legalidade no continente
Assim, logo após eleito, no seu primeiro ato relevante, Lula ordenou o envio de combustível para a Venezuela, ameaçada por um lock out energético pelos opositores de Hugo Chávez.
Embora houvesse, desde cedo, forte solidariedade entre o novo governo do Brasil e as propostas reformistas e populares de Chávez, para Lula – assessorado pelo professor e especialista em América Latina Marco Aurélio Garcia – e o Itamaraty havia, em verdade, uma preocupação maior. Tratava-se de evitar, para sempre, o retorno do golpismo no continente. Durante mais de um século, desde 1810 junto aos nossos vizinhos e especial a partir de 1930 para nós – os golpes – militares ou civis – foram uma triste realidade latino-americana.
O compromisso de Lula foi, desde então, banir a tolerância e mesmo a cumplicidade com tais práticas. Tal situação repetiu-se em claras ameaças no Paraguai, na Bolívia e mais tristemente em Honduras.
A crise em Honduras
Este pequeno país da América Central foi o motivo do mais intenso debate em Relações Internacionais no Brasil durante o governo Lula. Desde a hora zero do evento o Itamaraty caracterizou os acontecimentos em Tegucigalpa como golpe. Em virtude disso, acionou a Carta Democrática das Américas, parte integrante do arsenal jurídico da OEA (assinada por todos os países do continente em 11/09/2001, em alusão ao Golpe de Pinochet no Chile), exigindo firme condenação dos golpistas. A posição brasileira foi endossada pela maioria dos países americanos, como Argentina, Peru, Equador e Venezuela. Entretanto, os Estados Unidos (seguidos por um silêncio complacente do México) recusaram-se a aceitar a natureza evidente dom golpe.
A atuação americana, e mexicana, de tolerância ao golpe foi fundamental para assegurar o sucesso dos grupos oligárquicos hondurenhos. Sendo ambos os países, em especial os EUA (em virtude do envio de divisas dos trabalhadores hondurenhos nos EUA) parceiros estratégicos, a complacência destes assegurava o sucesso e impunidade dos golpistas. Além disso, era uma ótima ocasião para Washington reduzir a projeção externa do Brasil. O Itamaraty manteve-se, entretanto, firme na condenação do golpe e, ao mesmo tempo, na tentativa de evitar radicalizações, em especial por parte de Chávez.
E a WikiLeaks disse…
Hoje se sabe, graças a Julian Assange e a WikiLeaks, que a própria diplomacia norte-americana considerava inequivocamente o evento como golpe. Apenas Barack Obama (com Hillary a tiracolo) não ousava contrariar um punhado de deputados republicanos ultraconservadores, para quem a democracia na América Latina nada importa ou nada vale. Com certeza a atuação de Obama desencadeou o desencanto de muitos intelectuais latinos com a “Obamamania” e, no fundo, nada valeu para as pretensas alianças do presidente norte-americano com os setores conservadores do congresso americano.
Para o Brasil, para Lula e os diplomatas do Itamaraty, tratava-se de criar uma garantia de não retorno ao triste passado latino-americano, no qual muitas vezes Washington foi a “mão invisível” por trás dos acontecimentos.
Infelizmente boa parte da mídia brasileira, valendo-se do comportamento rocambolesco de Zelaya, preferiu ficar ao lado dos golpistas de Washington. O que será que sentiram ao ler os documentos da WikiLeaks dando conto da caracterização golpista feita secretamente pela diplomacia norte-americana? Possivelmente nada!
A desconcentração das relações internacionais
Ao longo dos últimos oito anos o Brasil criou mais de sessenta novas representações diplomáticas no exterior. Ao mesmo tempo o presidente Lula fez o mais amplo périplo de um presidente brasileiro ao exterior, visitando países onde um chefe de Estado brasileiro nunca estivera antes e dando especial atenção aos países emergentes e aos países africanos.
Claro que este interesse em “desencravar” o país gerou forte crítica, e mesmo deboches, por parte de opositores. Ora, as viagens de um presidente são parte fundamental da politica de um país. No caso de Lula, a maioria das viagens embutia negócios, contratos e a abertura de mercados para produtos e serviços brasileiros. Ou seja, o presidente agia visando aumentar as vendas e trocas brasileiras no exterior e com isso gerar mais emprego e renda no país. Os resultados positivos de tal politica externa vieram de imediato, no bojo da crise mundial de 2008/09, quando o país – ao contrário, por exemplo, do México – não ficou à mercê de relações comerciais de mão única.
Democratizando as relações internacionais
O governo Lula foi, desde o seu início, um forte crítico da concentração do poder mundial. Após o fim a Guerra Fria (1991) os EUA puseram em marcha uma política fortemente “unilateralista”, recorrendo à força, ameaças e mesmo chantagens econômicas para promover seus interesses (Afeganistão, Iraque, denúncia de acordos internacionais, etc…). A postura brasileira foi de buscar parcerias fora do eixo tradicional de poder – em verdade já abalado e depois em crise desde 2008 – visando promover os interesses nacionais e escapar de uma subordinação unilateral aos interesses estrangeiros.
Neste sentido, a recusa brasileira em aceitar a proposta da ALCA foi premonitória. Malgrado a falta de visão de boa parte da sociedade brasileira, incluindo aí até membros do governo Lula, a atuação firme do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, evitou para o Brasil um processo de dependência e subordinação “mexicanizado” nos moldes do NAFTA.
Para atingir esta meta buscou-se uma forte desconcentração da política externa brasileira e do comércio exterior. A velha fixação das elites brasileiras na Europa e nos Estados Unidos foi contrabalançada com a abertura de novos canais com mercados emergentes, grandes comparadores como a China, índia, Países árabes, Rússia e a própria América do Sul. Com outros países, como na África ou o Haiti, praticou-se uma politica de solidariedade e de cooperação, com a doação de esforços, recursos e, no limite, de vidas brasileiras, como dos valorosos homens das FFAA brasileiras no Haiti.
Os novos agrupamentos
Na América do Sul consolidamos, e avançamos na institucionalização do MERCOSUL. Trata-se de um projeto de cooperação e de integração continental que, malgrado os críticos, é altamente vantajoso para o Brasil (que possui superávits com todos os países-membros). A experiência do MERCOSUL permitiu, e criou as condições, para iniciativas mais amplas, como a UNASUL e o Conselho Regional de Defesa da América do Sul.
Avançamos também na transformação do BRIC de simples acróstico em um grupo funcional, com reuniões periódicas e uma disposição clara em ampliar o papel de novos atores no cenário mundial. Da mesma forma, o IBAS – agrupamento formado pela Índia, Brasil e África do Sul desde 2003– começou sua trajetória de institucionalização.
Neste contexto escolheu o Itamaraty ter relações mais estreitas e proveitosas, do ponto de vista da sociedade brasileira, com todos os países do mundo, incluindo aí o Irã. Isto gerou outra polêmica, em vista do caráter antidemocrático daquele regime e de claros atentados contra os direitos fundamentais da pessoa humana, como no Caso Sakineh. Contudo, a diplomacia brasileira foi clara: o chanceler Celso Amorim interveio em favor da vítima, bem como no caso de jovens americanas aprisionadas e do cineasta Jafar Panahi – infelizmente condenado, como outros dissidentes, a seis anos de prisão e impossibilitado, por vinte anos, de trabalhar. Somente a má vontade poderia supor que o governo Lula aceitara a violação dos direitos humanos. O Itamaraty, como em outros casos (vide as relações Brasil-Venezuela conforme os documentos da WikiLeaks) mantém sua preferência em aconselhar e usar seus bons ofícios por canais diplomáticos e não através da mídia.
Contudo, tanto no caso da Venezuela, como do Irã, o Brasil assumiu um papel e moderador, mediador e buscou a solução de conflitos pelos canais diplomáticos.
Claro, certa hipocrisia e a o clima de oposição não permitiram, muitas vezes (como no caso de Honduras) de se ver a questão em seu conjunto. Ou por outra, muitas vezes continua a dominar o duplo jogo de países como os Estados Unidos: primeiro parceiro comercial da Arábia Saudita e da China Popular. Ora, são estes países mais democráticos que a Venezuela ou Irã? No caso do Irã os EUA, através de empresas de fachada estabelecidas no Caribe, é o grande fornecedor de bens e equipamentos para a indústria do petróleo iraniana.
Reequipando o Brasil
Da mesma forma o governo Lula entendeu que um país mais atuante e mais soberano num mundo certamente inseguro necessitava de uma ampla revisão de sua politica de defesa. Assim, de forma democrática (através de um amplo debate coma sociedade civil, com especialistas e, por fim, com o debate e a aprovação do parlamento) o país optou por uma politica de dissuasão de ameaças. Para o governo a integridade e soberania na Amazônia, a defesa da biodiversidade e dos bens naturais, incluindo aí os recursos hídricos e energéticos, são itens fundamentais da segurança do país. Para dar credibilidade o país resolveu modernizar suas FFAA, tanto do ponto de vista técnico, doutrinário quanto de equipamentos. Contudo, para desagrado do tradicional fornecedor brasileiro (os EUA) o Brasil optou pela incorporação/transferência de tecnologia, pelo maior índice de produção nacional e a produção local máxima possível de aviões, navios, submarinos e helicópteros. Tratava-se assim de não só promover o desenvolvimento tecnológico nacional, como ainda de gerar emprego e renda no interior do país.
Por fim, nas conferências internacionais do clima – em Copenhague e Cancun – o Brasil tornou-se um país líder no combate ao aquecimento global, estabelecendo metas autônomas e espontâneas, bem ao contrário dos como EUA e China Popular, que agora sabemos (graças, mais uma vez, ao WikiLeaks), tentaram sabotar as conferências.
Evidentemente ficou muito por fazer, em especial no campo da consolidação do MERCOSUL, na maior identificação com a luta em prol dos direitos humanos e no desarmamento mundial. Estas serão, sem dúvida, importantes tarefas do novo ministro do exterior Antonio Patriota.
(*) Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Fonte: Carta Maior