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    Comunicação

    Estudo para uma Bailadora Andaluza

    1 Dir-se-ia, quando aparece dançando por siguiriyas, que com a imagem do fogo inteira se identifica. Todos os gestos do fogo que então possui dir-se-ia: gestos das folhas do fogo, de seu cabelo, sua língua; gestos do corpo do fogo, de sua carne em agonia, carne de fogo, só nervos, carne toda em carne viva. […]

    1

    Dir-se-ia, quando aparece
    dançando por siguiriyas,
    que com a imagem do fogo
    inteira se identifica.

    Todos os gestos do fogo
    que então possui dir-se-ia:
    gestos das folhas do fogo,
    de seu cabelo, sua língua;

    gestos do corpo do fogo,
    de sua carne em agonia,
    carne de fogo, só nervos,
    carne toda em carne viva.

    Então, o caráter do fogo
    nela também se adivinha:
    mesmo gosto dos extremos,
    de natureza faminta,

    gosto de chegar ao fim
    do que dele se aproxima,
    gosto de chegar-se ao fim,
    de atingir a própria cinza.

    Porém a imagem do fogo
    é num ponto desmentida:
    que o fogo não é capaz
    como ela é, nas siguiriyas,

    de arrancar-se de si mesmo
    numa primeira faísca,
    nessa que, quando ela quer,
    vem e acende-a fibra a fibra,

    que somente ela é capaz
    de acender-se estando fria,
    de incendiar-se com nada,
    de incendiar-se sozinha.

    2

    Subida ao dorso da dança
    (vai carregada ou a carrega?)
    é impossível se dizer
    se é a cavaleira ou a égua.

    Ela tem na sua dança
    toda a energia retesa
    e todo o nervo de quando
    algum cavalo se encrespa.

    Isto é: tanto a tensão
    de quem vai montado em sela,
    de quem monta um animal
    e só a custo o debela,

    como a tensão do animal
    dominado sob a rédea,
    que ressente ser mandado
    e obedecendo protesta.

    Então, como declarar
    se ela é égua ou cavaleira:
    há uma tal conformidade
    entre o que é animal e é ela,

    entre a parte que domina
    e a parte que se rebela,
    entre o que nela cavalga
    e o que é cavalgado nela,

    que o melhor será dizer
    de ambas, cavaleira e égua,
    que são de uma mesma coisa
    e que um só nervo as inerva,

    e que é impossível traçar
    nenhuma linha fronteira
    entre ela e a montaria:
    ela é a égua e a cavaleira (…)

    João Cabral de Melo Neto – Obra Completa – Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994, pág. 219.

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